segunda-feira, agosto 31, 2020

"Tenet", de Christopher Nolan
— as aventuras de um novo realismo

Com o seu filme Tenet, Christopher Nolan convoca-nos para uma história em que o tempo se tornou reversível: este é um mundo semelhante a um jogo de video, assombrado por “factos alternativos” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Agosto).

Encontro no YouTube um fragmento de uma conversa com Christopher Nolan, registada por altura do lançamento de Interstellar (2014). Referindo-se ao “ecrã verde” que permite inserir um determinado cenário virtual por trás dos actores e, de um modo geral, aos poderes figurativos dos modernos efeitos especiais, Nolan reconhece a sua utilidade para “intensificar” algumas situações. O que não exclui um fundamental princípio de trabalho: a opção, sempre que possível, por cenários físicos, fabricados para serem registados na própria rodagem (“in camera”, como ele diz).
A meu ver, a mais significativa contribuição de Nolan para o cinema dos últimos vinte anos — a sua primeira longa-metragem, Following, tem data de 1998 — não estará tanto nos artifícios associados ao universo dos super-heróis (com a trilogia de Batman, protagonizada por Christian Bale), mas sim nessa obstinação realista.
O que nos conduz a um curioso impasse, motivador e sedutor: como falar de realismo a propósito de filmes que nos projectam em dimensões mais ou menos “fantásticas”, porventura “transcendentais”? Interstellar não será uma aventura galáctica de humanos confrontados com os poderes indizíveis de um buraco negro?
Com uma inteligência plena de didactismo, o novo filme de Nolan, Tenet, recoloca-nos perante tal impasse, valendo a pena aceitar o desafio protagonizado pelo excelente John David Washington. O que está em jogo é, no limite, um drama profundamente social. A saber: a nossa capacidade de pensar os realismos (no plural, precisamente) para lá da utilização das imagens como instrumentos de policiamento descritivo do real.
Lembremos a ideologia “purificadora” que se consagrou na tecnologia do video-árbitro do futebol. Segundo o realismo do VAR, as imagens servem apenas para reduzir os acontecimentos a uma dicotomia sem alternativa (“legal” ou “ilegal”). Nolan é um resistente: as imagens não encerram definitivamente os sentidos do real, antes o fazem explodir, literal ou simbolicamente, num labirinto de significações cuja dimensão, em grande parte, nos escapa. Nesta perspectiva, Tenet parece-me ser um parente próximo de Ready Player One (2018), o filme de Steven Spielberg sobre um mundo “futuro” em que o real passou a ser vivido e, por assim dizer, habitado como um jogo de video.
Como tem sido amplamente divulgado, o título de Tenet provém do célebre e ancestral Quadrado Sator, uma espécie de “palavras cruzadas”, com cinco palavras latinas que, em conjunto, formam um palíndromo: estão dispostas de modo a poderem ser lidas da esquerda para a direita e da direita para a esquerda. “Tenet” é o palíndromo perfeito: uma palavra-espelho.
Com calculada ironia, as palavras desse quadrado surgem integradas na acção (por exemplo, Sator serve de apelido à personagem do oligarca russo interpretado por Kenneth Branagh). Mas a herança do latim não funciona como “chave” de leitura do que quer que seja. O que interessa Nolan é sugerir ao espectador que está a assistir a uma narrativa em que o tempo, além de não ser linear, existe num regime de total reversibilidade.
Há um sofisticado humor em tudo isto, até porque o filme não se limita a repetir a lógica das tradicionais viagens no tempo, à maneira de Regresso ao Futuro (1985), de Robert Zemeckis. Aí, Michael J. Fox recuava e avançava no calendário para “emendar” incidentes passados que podiam alterar o futuro, isto é, o presente que servira como ponto de partida. Agora, o futuro já está inscrito no presente — como alguém diz, um e-mail que se envia é algo que fica automaticamente no futuro, podendo regressar a qualquer momento ao presente. De tal modo que o passado a que se regressa pode coexistir com o futuro que já aconteceu.
Confuso? Em boa verdade, trata-se apenas de contar uma fábula contemporânea, tão labiríntica como um jogo de video, tão assombrada pela ameaça dos “factos alternativos” como a nossa frágil existência quotidiana. Tenet não é uma história imaginária sobre o futuro, mas um conto sobre o imaginário do nosso presente. Está lá tudo: a vertigem do espectáculo e o realismo do medo.

Ariana Grande & Justin Bieber
— "Stuck with U" premiado pela MTV

Tempo de pandemia: os prémios MTV tiveram como insólita, mas muito realista, categoria o "melhor video feito em casa". Ganhou Stuck with U, canção de Ariana Grande e Justin Bieber, lançada em Maio, cujas receitas se destinam à First Responders Children's Foundation (organização de apoio às crianças de trabalhadores envolvidos no combate ao COVID-19).
Eis um caso exemplar de fusão do ecumenismo social com a energia pop — lista de premiados nos MTV Awards no USA Today.

sábado, agosto 29, 2020

Que cultura cinematográfica?

Cartaz italiano de Blow-up (1966):
os clássicos também fazem parte das leis da oferta e da procura
As salas de cinema estão a enfrentar uma dramática crise de frequência. De qualquer modo, a pandemia não explica tudo: há factores de fragilização do mercado que têm várias décadas — este texto, anterior ao lançamento de Tenet, foi publicado no Diário de Notícias (22 Agosto).

Através dos números oficiais do Instituto do Cinema e do Audiovisual, sabemos que, com a pandemia, a frequência das salas de cinema baixou de forma drástica. E sabemos também que, ironicamente, alguns dos clássicos que têm sido repostos estão a conseguir performances muito acima da média.
Eis um exemplo, dos dados referentes ao fim de semana de 13/16 Agosto: Sonic - o Filme, adaptação de um conhecido jogo de video, com Jim Carrey, foi projectado em 13 sessões, tendo sido visto por 63 espectadores; Blow-up, o clássico de 1966 que o italiano Michelangelo Antonioni rodou em Londres, teve apenas uma sessão para a qual foram vendidos 68 bilhetes.
Escusado será dizer que tais números não legitimam nenhuma generalização sobre o carácter mais ou menos “popular” de um filme ou outro (aliás, importa lembrar que Sonic se estreou ainda antes da situação de pandemia, tendo acumulado quase 150 mil espectadores). Vale a pena, isso sim, atentar no valor sintomático da situação global do mercado.
Assim, mesmo com naturais dificuldades, as chamadas salas independentes, directa ou indirectamente ligadas a distribuidores que trabalham com produtos que não provêm dos grandes estúdios dos EUA, têm conseguido manter uma frequência interessante. Ao mesmo tempo, em termos proporcionais, as outras salas (genericamente, as que existem em multiplexes de grandes superfícies comerciais) têm tido frequências muito menores.
Como é óbvio, o problema está longe de ser exclusivamente português. Sabemos, aliás, que o novo filme de Christopher Nolan, Tenet, tem servido de ponto de fuga de todos estes dramas, sendo apontado como um lançamento que poderá impulsionar o regresso de muitos espectadores às salas (a estreia em vários países da Ásia e Europa, incluindo Portugal, ocorrerá na quinta-feira, dia 26). Sem esquecer que esse lançamento tem estado a ser preparado através da reposição de outro filme de Nolan, Inception/A Origem (2010), que entre nós, também no último fim de semana, apenas conseguiu 2413 espectadores em 304 sessões (contas redondas: oito espectadores por sessão).
Espero que o leitor não leia de modo precipitado estas notas: sou também dos espectadores ansiosos por descobrir Tenet e, para lá dos resultados concretos de cada um dos seus filmes, considero Nolan um dos mais ousados experimentadores do cinema contemporâneo (americano ou não). Creio, aliás, que chegou a altura de reconhecermos que nenhuma destas questões se pode descrever — ainda menos compreender — através dos “gostos” seja de quem for. Importa perguntar, isso sim, que cultura cinematográfica dominante se consolidou no mercado das salas ao longo dos últimos anos. Na certeza de que tal pergunta é também (é mesmo sobretudo) comercial: não são os críticos de cinema que definem os parâmetros do consumo cinematográfico, mas sim os distribuidores e exibidores, aplicando os seus legítimos poderes de programação, fazendo as suas escolhas, definindo destaques e omissões.
Digamo-lo, por isso, com todas as letras: ao longo das últimas décadas — repito: não anos, mas décadas —, o mercado tem sido comandado por uma lógica de distribuição/exibição que, no essencial, depende dos chamados “blockbusters”, directa ou indirectamente ligados aos grandes estúdios americanos (alguns absolutamente prodigiosos, não é isso que está em causa).
Acontece que, mesmo com grandes sucessos pelo meio, o comércio, isto é, a cultura dos “blockbusters” não criou uma relação estável com os espectadores. Gerou, isso sim, um laço frágil que decorre apenas das práticas dominantes do “marketing”: investir muito (cada vez mais) nas campanhas para lançar um pequeno número de filmes por ano, secundarizando a promoção de quase todos os outros.
Esperemos que Tenet possa ser um grande sucesso — além do mais, estão em jogo os empregos de muitas pessoas. Em todo o caso, o mais rudimentar bom senso justifica que lembremos que, por mais esmagador que seja esse sucesso, não resolverá, por si só, os desequilíbrios de um mercado que nem sempre tem sabido favorecer a pluralidade de oferta, rentabilizando a diversidade da procura.

quinta-feira, agosto 27, 2020

The Waterboys, Opus 14

Afinal de contas, The Waterboys lançaram This Is the Sea há quase 35 anos (foi a 16 de Setembro de 1985). Muita água correu sob as pontes desde que a banda do escocês Mike Scott se assumiu como a derradeira maravilha do rock... sinfónico (?), integrando de tudo um pouco, da herança folk aos despojos do punk. Dito de outro modo: Good Luck, Seeker, 14º álbum da banda (a contagem varia, conforme se consideram, ou não, os registos de Scott em nome próprio) talvez não pudesse ser outra coisa que não fosse esta colagem de contrastes, combinando fascínio e frustração através de um circuito de deambulações sempre motivadoras — incluindo uma canção de homenagem a Dennis Hopper.


* * * * *

A edição Deluxe contém um segundo CD com algumas sugestivas derivações instrumentais, e ainda esta vibrante "versão vocal" de My Wanderings in the Weary Land; em baixo, a canção tal como está no primeiro CD.



Billie Eilish na NPR (ou quase...)

Mesmo não podendo abrir os estúdios aos músicos, a NPR tem mantido os seus 'Tiny Desk Concerts' em versão caseira. Ainda assim, no caso de Billie Eilish, o seu 'Tiny Desk (Home) Concert', na companhia do irmão Finneas, parece ter acontecido no cenário habitual... Para além das duas belíssimas canções — "my future" e "everything i wanted" —, recomenda-se, por isso, a visão do video até às imagens finais.

quarta-feira, agosto 26, 2020

"Tenet" na China

Tenet está a chegar aos ecrãs de todo o mundo, incluindo a China (hoje, 26 de Agosto, em Portugal). A sua aposta na aventura decorre, afinal, de uma insubstituível conjugação de valores: o gosto da sala escura, o prazer do grande ecrã, o fundamental envolvimento dos sons. É isso mesmo que Christopher Nolan diz aos espectadores chineses neste video que, de alguma maneira, resume a dimensão cultural e comercial de tudo aquilo que está em jogo. A saber: a reconquista da dimensão mais primitiva do espectáculo cinematográfico — por uma vez, graças a Nolan, o marketing convoca-nos para o essencial.

segunda-feira, agosto 24, 2020

Filmes do confinamento
— um blog

Três minutos e vinte segundos — eis a duração objectiva, de uma só vez afectiva e lendária, das bobinas de Super 8, formato que entrou na história como modelo de uma ideia paradoxal de criatividade, feita de privacidade e partilha pública dos gestos através dos quais o cinema acontece.
Daí a designação deste blog de alunos do curso de Cinema da Escola Superior de Teatro e Cinema, nascido para dar a ver pequenos filmes realizados em tempos de confinamento: 03m 20s. Ao mesmo tempo, sugerem-se hipóteses de reflexão em torno de temas relançados pela actualidade da pandemia:
— o que é, ou pode ser, filmar em confinamento;
— a evolução das relações privado/público;
— percorrendo a fronteira documentário/ficção;
— etc.

A vida secreta das abelhas
ou as emoções do documentário

O documentário Honeyland dá-nos a conhecer as dramáticas condições de vida numa zona montanhosa da Macedónia do Norte; obteve duas nomeações para os Oscars referentes à produção de 2019 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Agosto).

Há filmes que entram para a história por razões mais ou menos estatísticas. Estreado no Festival de Sundance, em 2019, Honeyland, agora lançado no mercado português com o subtítulo A Terra do Mel, é um desses filmes: em representação da República da Macedónia do Norte conseguiu ser o primeiro filme na história dos Oscars a ser nomeado nas categorias de melhor documentário e melhor filme internacional (sucedâneo da categoria de melhor filme estrangeiro).
Não ganhou, é verdade. Em todo o caso, a sua importância está para lá de tal proeza, decorrendo, justamente, da sensibilidade documental que lhe confere tão delicadas emoções. A dupla de realizadores, Tamara Kotevska e Ljubomir Stefanov, passou cerca de três anos na região de Bekirlja, numa zona montanhosa de difícil acesso e cruéis condições de vida. O filme segue a existência de Hatidze Muratova, uma mulher de cinquenta e poucos anos que vive com a mãe doente, tratando com infinita paciência e carinho as suas colmeias.
No início, Honeyland foi concebido como uma curta-metragem. O certo é que o aparecimento de uma família de novos vizinhos de Hatidze, quebrando a solidão da sua vida com a mãe, trouxe ao projecto inesperados elementos dramáticos. Estamos, afinal, perante um fresco sobre uma região de extrema pobreza em que a sobrevivência é uma luta diária, feita de rotinas austeras, muitas formas de angústia e também comoventes sinais de compaixão.
A breve cena em que Hatidze visita a capital Skopje reflecte, com inesperado humor, as singularidades da sua existência. Assim, por um lado, ela tenta vender pelo melhor preço os seus frascos de mel, obtido através de um conhecimento ancestral da vida secreta das abelhas; ao mesmo tempo, por outro lado, essa venda permite-lhe comprar coisas para ela preciosas, como as bananas (de que a mãe tanto gosta) ou um produto para pintar o cabelo.
Neste tempo de heróis digitais e aventuras galácticas, Honeyland oferece-se como um pedagógico testemunho da vocação mais ancestral do cinema. A saber: dar-nos a conhecer personagens e lugares que conhecemos mal ou que, pura e simplesmente, ignoramos. Nesta perspectiva, estamos apenas (mas este “apenas” é essencial) perante um filme que vive da energia primitiva das imagens e dos sons — imagens de uma grandiosidade de inusitada beleza, sons que nos ajudam a sentir a trágica pulsação de um universo longe da civilização urbana.

domingo, agosto 23, 2020

PSG - Bayern
— uma imagem depois do jogo

Eis uma fotografia encontrada a partir da página de acompanhamento do jogo PSG-Bayern feito pelo jornal Le Monde [proveniente do Twitter do jornalista Ulysse Bellier]: no final do jogo, uma viatura em fogo numa rua de Paris, a presença de elementos das forças policiais...
A imagem arrasta um efeito simbólico difícil de contornar: em primeiro lugar, o funcionamento do futebol como permanente factor de ruptura do quotidiano; depois, a institucionalização de uma militarização desse mesmo quotidiano que, através do futebol, precisamente, encontra muitas vezes a sua expressão mais "natural".
É apenas uma imagem — tanto mais perturbante quanto a crueza do evento que testemunha não autoriza generalizações ideológicas nem conclusões moralistas. É tão só um fragmento do social exposto como coisa intratável, porventura ilusória.

sábado, agosto 22, 2020

Os cinco sentidos de um whisky

De vez em quando, a publicidade produz as suas voláteis e fascinantes obras-primas. É o caso deste anúncio do whisky Woodford, concebido e executado pela agência BBDO. Dir-se-ia um breve ensaio sobre as nuances dos cinco sentidos humanos — espectacular, elegante, quase saboroso.

quarta-feira, agosto 19, 2020

O fundamentalismo da HBO Max
revisto por Jimmy Fallon

Mais um episódio na ideologia de "purificação" que ameaça transformar a vida cultural — e, em particular, a existência dos filmes — num cenário policial em que o espectador é reduzido a um verme que não pensa e não sente, a não ser que os "especialistas" lhe venham recordar o "contexto" em que cada filme foi feito. Qual a missão de que se dizem responsáveis? Pois bem, apontar a esse incauto espectador os "perigos" que pode envolver a representação dos negros, das mulheres ou de qualquer outro grupo implicitamente definido como uma massa amorfa de indivíduos que necessitam de piedosa "protecção"...
Depois da "correção" a que foi sujeito E Tudo o Vento Levou (1939), a HBO Max achou por bem informar os seus assinantes das atribulações que enfrentam quando decidem ver Blazing Saddles/Balbúrdia no Oeste (1974), a paródia de Mel Brooks ao "western" clássico [The Hollywood Reporter]. Felizmente, ainda há quem não confunda o acto de pensar com uma denúncia pública dos "hereges": eis Jimmy Fallon numa deliciosa paródia a esta onda do mais triste fundamentalismo anti-cinéfilo.

domingo, agosto 16, 2020

Drive-in — nostalgia & actualidade

Los Angeles
9 Setembro 1934
Eis uma imagem que, vista agora, cruza nostalgia e actualidade. De facto, a situação de pandemia conferiu nova pertinência — cultural & económica — ao consumo do cinema em drive-in, revalorizado agora como modelo premonitório de "distanciamento social". Publicada por The Hollywood Reporter, a fotografia testemunha a abertura do "Drive-in Theatre", em Los Angeles, no dia 9 de Setembro de 1934 — em qualquer caso, a cidade pioneira destes espaços foi Camden, New Jersey, com o primeiro drive-in do mundo inaugurado a 6 de Junho de 1933.

sábado, agosto 15, 2020

A propósito do racismo

Mary Badham — Scout, em To Kill a Mockingbird
Ver ou rever um filme como To Kill a Mockingbird pode ser um sugestivo exercício de reflexão sobre o nosso presente: são memórias do começo da década de 1960, tendo por base o romance clássico de Harper Lee — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 Agosto).

No cinema Nimas, em Lisboa, por iniciativa da Medeia Filmes, tem estado a decorrer um ciclo sobre o racismo [terminou no dia 5 de Agosto]. Aliás, a designação exacta do evento é “A propósito do racismo e da escravatura”. Aí tive oportunidade de rever o belíssimo To Kill a Mockingbird (1962), de Robert Mulligan, baseado no romance homónimo de Harper Lee — o filme chamou-se entre nós Na Sombra e no Silêncio (foi relançado em DVD há poucos anos, com chancela Universal), estando o livro actualmente disponível com o título Mataram a Cotovia (ed. Relógio d’Água).
Trata-se de um caso modelar de transposição cinematográfica, tendo, aliás, valido a Horton Foote o Oscar de melhor argumento adaptado. No filme como no livro, é o ponto de vista da pequena Scout que prevalece como fio condutor da acção. Simplificando (e simplificando muito), ela acompanha a saga do pai, Atticus Finch, advogado de defesa de um homem negro acusado de ter violado uma mulher branca. No contexto em que tudo acontece — uma cidadezinha do Alabama, nos anos da Grande Depressão —, o trabalho de Atticus suscita o desagrado de alguns cidadãos que o insultam por simpatizar com os negros (“nigger-lover”), no pressuposto de que o acusado, com ou sem julgamento, é automaticamente culpado.
A actualidade do filme é fascinante. E não só por razões temáticas, ainda que a mais rudimentar pedagogia política nos recorde que as formas contemporâneas de racismo não podem ser descritas como meras “duplicações” do que aconteceu há 90 anos, ou mesmo há 60 (o romance foi lançado em 1960). Essa actualidade é também especificamente cinematográfica, já que nos compele a reconhecer e revalorizar o cinema como história e património.
Recordemos, por isso, as muitas formas de celebração que, em 2018, enquadraram o protagonismo de Chadwick Boseman no filme Black Panther. Não quero esconder que o filme me parece ser (mais) uma variação banal das narrativas de super-heróis formatadas pelos estúdios Marvel; e quero também lembrar que, nos mais diversos contextos, houve gente muito séria a defender Black Panther com toda a convicção. Não é isso que está em causa. O que se discute é o facto de, em alguns casos, a performance de Boseman ter sido incensada como um acontecimento ímpar, até mesmo pioneiro, na figuração das personagens de pele negra no interior da produção de Hollywood.
Enfim, digamos que este ciclo de filmes pode servir de primeiro desmentido de tão disparatada asserção — Blackboard Jungle/Sementes de Violência (1955), de Richard Brooks, ou O Sargento Negro (1960), de John Ford, são alguns dos títulos que ainda vão ser exibidos [passaram a 1 e 3 de Agosto, respectivamente]. A par de uma pergunta que, creio, faz sentido relançar: porque é que algumas formas de militância política são levadas a assumir-se como acontecimento “fundador” da sua causa, a ponto de recalcarem a própria história que as fundamenta ou devia fundamentar?
Neste caso, não é possível esquecer que a dinâmica do cinema de Hollywood está toda ela marcada pelas convulsões da história dos afro-americanos. O exemplo do filme de Mulligan é tanto mais significativo quanto ele foi um nome essencial de uma geração que soube herdar e transformar um complexo património clássico, geração de que também fazem parte Alan J. Pakula (produtor de To Kill a Mockinbird, futuro realizador de Os Homens dos Presidente, sobre o escândalo Watergate e a queda de Richard Nixon), Sydney Pollack, John Frankenheimer ou Sidney Lumet.
Assim, a riqueza temática do filme não decorre da “ilustração” de uma determinada temática, antes da sua configuração humana. E se a interpretação de Gregory Peck na personagem de Atticus é, em si mesma, um clássico da história de Hollywood (ganhou o Oscar de melhor actor), lembremos também o misto de candura e inteligência com que a maravilhosa Mary Badham compõe a figurinha rebelde de Scout. A sua herança é também preciosa, em particular face a algumas ficções contemporâneas em que as crianças estão condenadas a ser pitorescas, patetas ou insuportavelmente moralistas. Decididamente, o cinema do passado é o cinema do presente.

quarta-feira, agosto 12, 2020

Futebol & portugalidade (cont.)

Neymar com legendas... Eis mais uma das muitas peculiaridades com que o mundo do futebol nos vai encantando. Haverá, por certo, uma enxurrada de justificações mais ou menos oficiais, técnicas e logísticas, para cena tão insólita. De qualquer modo, o facto aí está em todo o esplendor: no final do Atalanta-PSG, em Lisboa, o jogador brasileiro surge acompanhado de legendas, já que, representando uma equipa francesa, estava a falar... espanhol.

COVID-20
— um blog sobre o COVID-19

Para além das especificidades e, como é óbvio, da continuidade do SOUND+VISION, permito-me apresentar uma derivação pessoal, também em forma de blog — chama-se COVID-20.

terça-feira, agosto 11, 2020

Futebol & portugalidade

Pequena lição sobre o infantilismo simbólico gerado pelo pós-modernismo. Algo fora de tempo, por certo, mas esclarecedora: antecipando a fase final da Liga dos Campeões em Lisboa, o jornal francês L'Équipe encena uma galeria de jogadores das equipas participantes "duplicando" as figuras do Padrão dos Descobrimentos, em Belém. Já não são "descobridores", mas "conquistadores"... Perverso realismo que, agora, internamente, surge promovido como vitória da portugalidade. Quem disse que o futebol não é a linguagem dominante?

segunda-feira, agosto 10, 2020

"Sunset Boulevard"
— os deuses fazem 70 anos

O cartaz original de Sunset Boulevard apresenta a mais primitiva matéria simbólica do cinema — a película perfurada — enredada num nó. Assim era: o filme de Billy Wilder com uma estrela decadente interpretada por Gloria Swanson, contracenando com a personagem fúnebre de William Holden, corresponde a um momento de dramática transfiguração da história de Hollywood — "A Hollywood Story", sublinha o mesmo cartaz —, contemplando a decomposição da sua própria história mitológica. Daí o título português, longe do original, mas por uma vez não atraiçoando o seu espírito: Crepúsculo dos Deuses.
Sunset Boulevard teve a sua estreia no dia 10 de Agosto de 1950 — faz hoje 50 anos.
Em Abril de 1951, em França, surgiria o nº1 da revista Cahiers do Cinéma — na capa está o mesmo filme.

domingo, agosto 09, 2020

Miles, 5 de Novembro de 1971

Cerca de um ano depois de The Lost Quintet, de novo com chancela de Sleepy Night Records, aí está The Lost Septet: o álbum duplo de Miles Davis é uma preciosidade escutada apenas uma vez, quando da sua realização e transmissão radiofónica. Aconteceu no dia 5 de Novembro de 1971, em território austríaco, na Wiener Konzerthaus. Nele encontramos um testemunho exemplar da época de todas as fusões, rock'n'roll & electrónicas, de algum modo definida a partir de In a Silent Way (1969) — recorde-se que o emblemático Live-Evil seria editado poucos dias mais tarde, a 17 de Novembro. Eis a colecção de notáveis...

* Miles Davis (trompete)
* Gary Bartz (saxofones, soprano e alto)
* Keith Jarrett (piano eléctrico, orgão)
* Michael Henderson (baixo eléctrico)
* Ndugu Leon Chancler (bateria)
* Charles Don Alias (percussão)
* James Mtume Foreman (percussão)

... e o tema Honky Tonk.

sexta-feira, agosto 07, 2020

Elise LeGrow
— uma sala vazia, cheia com uma canção

Tempos de pandemia. Ou seja: imaginem esta sala vazia. Aliás, não é necessário: Elise LeGrow encheu o Roy Thomson Hall, em Toronto, com a sua mais recente canção, Evan, talvez o prelúdio para um segundo álbum — não havia um único espectador e, no entanto, não faltou o esplendor da música, o requinte da voz e a sofisticação da pose.

quarta-feira, agosto 05, 2020

A música de Téchiné

Poderíamos, talvez, dizer que O Adeus à Noite é, no mercado português, um dos filmes maiores destes tempos de pandemia. Mas não precisamos de criar rótulos só... porque sim... Aliás, a mais recente longa-metragem de André Téchiné foi revelada há mais de um ano, no Festival de Berlim, em Fevereiro de 2019, tendo estreado em França poucas semanas depois, em Abril. É a oitava colaboração do cineasta com Catherine Deneuve, desta vez a interpretar a proprietária de uma escola de equitação que suspeita que o seu neto quer militar nas fileiras do Estado Islâmico... Há em Téchiné uma musicalidade dos afectos e suas contradições que, como sempre, encontra um eco exemplar na banda sonora. Para já, fiquemo-nos pelo tema-título da música, composta por Alexis Rault.

terça-feira, agosto 04, 2020

Roger Waters
— uma memória de "The Final Cut"

Memória recuperada em tempos de pandemia: do mais maldito álbum dos Pink Floyd — The Final Cut, o último com Roger Waters —, eis Two Suns in the Sunset. A gravação é do próprio Waters, em tempos de reclusão, austero e didáctico, muito bem acompanhado por Dave Kilminster (guitarra), Joey Waronker (bateria), Lucius-Jess Wolfe e Holly Laessig (vozes), Gus Seyffert (baixo), Jonathan Wilson (guitarra), Jon Carin (piano e teclas), Bo Koster (Hammond) e Ian Ritchie (saxofone).

In my rear view mirror the sun is going down
Sinking behind bridges in the road
And I think of all the good things
That we have left undone
And I suffer premonitions
Confirm suspicions
Of the holocaust to come.

The wire that holds the cork
That keeps the anger in
Gives way
And suddenly it's day again.
The sun is in the east
Even though the day is done.
Two suns in the sunset
Could be the human race is run.

Like the moment when the brakes lock
And you slide towards the big truck
"Oh no!"
"Daddy, Daddy!"
You stretch the frozen moments with your fear.
And you'll never hear their voices
And you'll never see their faces
You have no recourse to the law anymore.

And as the windshield melts
My tears evaporate
Leaving only charcoal to defend.
Finally I understand the feelings of the few.
Ashes and diamonds
Foe and friend
We were all equal in the end.

A IMAGEM: Johanna Jaskowska, 2020

JOHANNA JASKOWSKA
"Augmented senses"
Vogue Italia, Junho 2020

segunda-feira, agosto 03, 2020

Na morte de Olivia De Havilland

[Trailer de E Tudo o Vento Levou]
A. Um pouco por todo o lado, a notícia da morte de Olivia De Havilland, a 26 de Julho, contava 104 anos [obituário: NYT], foi comentada como o desaparecimento da derradeira glória da idade de ouro de Hollywood. Assim é, de facto — a classificação é tanto mais respeitável quanto envolve uma admiração genuinamente cinéfila.

B. Em todo o caso, valerá a pena acrescentar que aquilo que desapareceu, mais do que as estrelas dessa época realmente dourada, foi Hollywood como comunidade, indústria e comércio em que a star ocupava um lugar central. O triunfo de uma nova iconografia da fama — simbolizada pelo imaginário dos "efeitos especiais" imposto pelos estúdios Marvel — relegou os actores e actrizes para a condição de figurantes humanos na feira dos heróis digitais.

C. Há excepções como Charlize Theron ou Tom Cruise, embora cada um deles "obrigado" a cumprir outros protocolos profissionais — o recente "blockbuster" de Theron, A Velha Guarda, produzido pela Netflix, é mesmo um objecto de embaraçosa mediocridade. São excepções que confirmam a regra: uma entidade (Hollywood) que cedeu as rédeas da sua criatividade aos tecnocratas do marketing para quem um filme não é uma narrativa, nem sequer uma forma específica de espectáculo, apenas um produto.

domingo, agosto 02, 2020

Bugs Bunny, 80 anos

Muito esperto, elegante e sarcástico, Bugs Bunny é o coelho mais célebre da história dos desenhos animados, povoando o imaginário de várias gerações de espectadores — este texto foi publicado no Diário de Notícias no dia 27 de Julho (data em que se assinalaram os 80 anos de estreia da sua primeira curta-metragem).

Tudo começou com um intrépido caçador a caminhar lentamente, no meio de uma floresta. Evitando fazer ruídos comprometedores, virava-se para a assistência, solicitando a nossa cumplicidade: “Não façam barulho… Ando à caça de coelhos…” Até que aparecia mesmo uma toca de coelho. O caçador, de seu nome Elmer Fudd, especialista em transformar o som “r” em “w”, colocava uma cenoura à entrada da toca. Mantendo a espingarda apontada, ia esconder-se à espera de que o pobre animal não resistisse ao apelo de tão sedutora iguaria… Evitando perturbar as almas mais sensíveis, digamos, para simplificar, que o coelho não só não morreu, como superou a situação com eficácia e elegância. O seu nome: Bugs Bunny.
Tudo isso aconteceu num filmezinho de desenhos animados, com oito minutos de duração, intitulado A Wild Hare (à letra: “Um coelho selvagem”), estreado há exactamente 80 anos — foi no dia 27 de Julho de 1940.


É bem provável que os espectadores com menos de 40 anos de idade só tenham descoberto Bugs Bunny numa longa-metragem que se impôs como uma referência revolucionária na história dos desenhos animados e, mais do que isso, na combinação da animação clássica com actores de carne osso. Foi em 1988: Quem Tramou Roger Rabbit?, de Robert Zemeckis, encenava em tom de comédia policial a difícil sobrevivência das figurinhas clássicas da animação. Aí se cruzavam, por exemplo, lendas do universo Disney como Mickey e Donald, a par de Daffy Duck, outro companheiro regular de Bugs Bunny.
Alguns anos mais tarde, Bugs Bunny surgiria como verdadeiro protagonista, contracenando com Michael Jordan em Space Jam (1996), sob a direcção de Joe Pytka. O mundo do basquetebol servia de pano de fundo a uma aventura burlesca que, afinal, ilustrava o triunfo (técnico e comercial) de novas formas de animação cinematográfica, cada vez mais dependentes da aplicação de sofisticados programas de computador.


Escusado será dizer que, durante muitos anos, o universo de Bugs Bunny existiu de modo bem diferente. E não apenas porque a sua história clássica é inseparável das técnicas tradicionais de desenho e, em particular, da utilização das cores radiosas do sistema Technicolor. Para várias gerações de espectadores, os pequenos filmes de Bugs Bunny começaram por ser um evento obrigatório e suculento das salas de cinema: o “filme de fundo” (expressão que desapareceu da linguagem cinéfila) era precedido de algumas curtas-metragens (“complementos” que incluíam também, com frequência, “jornais de actualidades”), sendo os desenhos animados uma fundamental presença.
Bugs Bunny pertence aos estúdios da Warner Bros., neste campo um dos tradicionais concorrentes do império fundado por Walt Disney — recorde-se que os estúdios Disney também foram pioneiros na produção de muitas curtas-metragens de animação, nomeadamente do rato Mickey, tendo lançado a primeira longa em 1937 (Branca de Neve e os Sete Anões). Dito de outro modo: Bugs Bunny não é uma excepção na paisagem de Hollywood em que surgiu, antes uma personagem emblemática de um universo que também tinha o seu “star system”. Aliás, Mickey e Bugs Bunny continuam a surgir como símbolos e mascotes dos respectivos estúdios.
Curiosamente, o coelho observador, sarcástico, sempre mais esperto que os seus oponentes, teve uma primeira versão em 1938, ainda a preto e branco, na curta Porky’s Hare Hunt. Perseguido por Porky, o porquinho gago, o coelho (sem nome) é habitualmente apontado como um primeiro esboço de Bugs Bunny — só com A Wild Hare começaria, de facto, a sua história oficial.
Igualmente à vontade ao natural, nas paisagens campestres, ou envergando um impecável “smoking” preto, Bugs Funny triunfou como uma presença nuclear das séries “Looney Tunes” e “Merry Melodies” — foram mais de mil curtas-metragens de animação que a Warner produziu ao longo de quatro décadas, do começo dos anos 30 até 1969. Muito antes das plataformas de “streaming”, geraram genuínos fenómenos de popularidade, primeiro nas salas escuras, depois nos ecrãs de televisão. Tal popularidade levou mesmo à criação de histórias em que Bugs Bunny e outras personagens surgiam nas respectivas versões infantis.
Mas a imagem não basta para caracterizar o fenómeno. É preciso não esquecer o som. A começar, claro, pela célebre expressão de interrogação e curiosidade, indissociável da postura irónica de Bugs Bunny, com que ele tentava saber “o que está a acontecer”: “What’s up, Doc?”. Ou seja: importa recordar a voz de Mel Blanc (1908-1989), talento tão invulgar e versátil que foi capaz de dar voz a algumas centenas de personagens daquelas séries, incluindo, precisamente, Bugs Bunny — por alguma razão, ficou conhecido como “o homem das 1000 vozes”. Na pedra tumular de Mel Blanc está inscrita a frase com que fechavam os filmezinhos da Warner: “That’s all folks!”

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sábado, agosto 01, 2020

O futuro segundo Billie Eilish


Ainda a caminho dos 19 anos, Billie Eilish está de volta à actualidade. De onde nunca saíu, é verdade, embora a sua canção para o novo filme de James Bond, No Time to Die, tenha ficado "suspensa" devido ao adiamento da respectiva estreia. Aí está um novo tema (lançado no dia do 23º aniversário de Finneas, seu irmão e colaborador): chama-se My Future e encena um suave e contagiante optimismo em teledisco discretamente nipónico.