domingo, agosto 02, 2020

Bugs Bunny, 80 anos

Muito esperto, elegante e sarcástico, Bugs Bunny é o coelho mais célebre da história dos desenhos animados, povoando o imaginário de várias gerações de espectadores — este texto foi publicado no Diário de Notícias no dia 27 de Julho (data em que se assinalaram os 80 anos de estreia da sua primeira curta-metragem).

Tudo começou com um intrépido caçador a caminhar lentamente, no meio de uma floresta. Evitando fazer ruídos comprometedores, virava-se para a assistência, solicitando a nossa cumplicidade: “Não façam barulho… Ando à caça de coelhos…” Até que aparecia mesmo uma toca de coelho. O caçador, de seu nome Elmer Fudd, especialista em transformar o som “r” em “w”, colocava uma cenoura à entrada da toca. Mantendo a espingarda apontada, ia esconder-se à espera de que o pobre animal não resistisse ao apelo de tão sedutora iguaria… Evitando perturbar as almas mais sensíveis, digamos, para simplificar, que o coelho não só não morreu, como superou a situação com eficácia e elegância. O seu nome: Bugs Bunny.
Tudo isso aconteceu num filmezinho de desenhos animados, com oito minutos de duração, intitulado A Wild Hare (à letra: “Um coelho selvagem”), estreado há exactamente 80 anos — foi no dia 27 de Julho de 1940.


É bem provável que os espectadores com menos de 40 anos de idade só tenham descoberto Bugs Bunny numa longa-metragem que se impôs como uma referência revolucionária na história dos desenhos animados e, mais do que isso, na combinação da animação clássica com actores de carne osso. Foi em 1988: Quem Tramou Roger Rabbit?, de Robert Zemeckis, encenava em tom de comédia policial a difícil sobrevivência das figurinhas clássicas da animação. Aí se cruzavam, por exemplo, lendas do universo Disney como Mickey e Donald, a par de Daffy Duck, outro companheiro regular de Bugs Bunny.
Alguns anos mais tarde, Bugs Bunny surgiria como verdadeiro protagonista, contracenando com Michael Jordan em Space Jam (1996), sob a direcção de Joe Pytka. O mundo do basquetebol servia de pano de fundo a uma aventura burlesca que, afinal, ilustrava o triunfo (técnico e comercial) de novas formas de animação cinematográfica, cada vez mais dependentes da aplicação de sofisticados programas de computador.


Escusado será dizer que, durante muitos anos, o universo de Bugs Bunny existiu de modo bem diferente. E não apenas porque a sua história clássica é inseparável das técnicas tradicionais de desenho e, em particular, da utilização das cores radiosas do sistema Technicolor. Para várias gerações de espectadores, os pequenos filmes de Bugs Bunny começaram por ser um evento obrigatório e suculento das salas de cinema: o “filme de fundo” (expressão que desapareceu da linguagem cinéfila) era precedido de algumas curtas-metragens (“complementos” que incluíam também, com frequência, “jornais de actualidades”), sendo os desenhos animados uma fundamental presença.
Bugs Bunny pertence aos estúdios da Warner Bros., neste campo um dos tradicionais concorrentes do império fundado por Walt Disney — recorde-se que os estúdios Disney também foram pioneiros na produção de muitas curtas-metragens de animação, nomeadamente do rato Mickey, tendo lançado a primeira longa em 1937 (Branca de Neve e os Sete Anões). Dito de outro modo: Bugs Bunny não é uma excepção na paisagem de Hollywood em que surgiu, antes uma personagem emblemática de um universo que também tinha o seu “star system”. Aliás, Mickey e Bugs Bunny continuam a surgir como símbolos e mascotes dos respectivos estúdios.
Curiosamente, o coelho observador, sarcástico, sempre mais esperto que os seus oponentes, teve uma primeira versão em 1938, ainda a preto e branco, na curta Porky’s Hare Hunt. Perseguido por Porky, o porquinho gago, o coelho (sem nome) é habitualmente apontado como um primeiro esboço de Bugs Bunny — só com A Wild Hare começaria, de facto, a sua história oficial.
Igualmente à vontade ao natural, nas paisagens campestres, ou envergando um impecável “smoking” preto, Bugs Funny triunfou como uma presença nuclear das séries “Looney Tunes” e “Merry Melodies” — foram mais de mil curtas-metragens de animação que a Warner produziu ao longo de quatro décadas, do começo dos anos 30 até 1969. Muito antes das plataformas de “streaming”, geraram genuínos fenómenos de popularidade, primeiro nas salas escuras, depois nos ecrãs de televisão. Tal popularidade levou mesmo à criação de histórias em que Bugs Bunny e outras personagens surgiam nas respectivas versões infantis.
Mas a imagem não basta para caracterizar o fenómeno. É preciso não esquecer o som. A começar, claro, pela célebre expressão de interrogação e curiosidade, indissociável da postura irónica de Bugs Bunny, com que ele tentava saber “o que está a acontecer”: “What’s up, Doc?”. Ou seja: importa recordar a voz de Mel Blanc (1908-1989), talento tão invulgar e versátil que foi capaz de dar voz a algumas centenas de personagens daquelas séries, incluindo, precisamente, Bugs Bunny — por alguma razão, ficou conhecido como “o homem das 1000 vozes”. Na pedra tumular de Mel Blanc está inscrita a frase com que fechavam os filmezinhos da Warner: “That’s all folks!”