sábado, agosto 29, 2020

Que cultura cinematográfica?

Cartaz italiano de Blow-up (1966):
os clássicos também fazem parte das leis da oferta e da procura
As salas de cinema estão a enfrentar uma dramática crise de frequência. De qualquer modo, a pandemia não explica tudo: há factores de fragilização do mercado que têm várias décadas — este texto, anterior ao lançamento de Tenet, foi publicado no Diário de Notícias (22 Agosto).

Através dos números oficiais do Instituto do Cinema e do Audiovisual, sabemos que, com a pandemia, a frequência das salas de cinema baixou de forma drástica. E sabemos também que, ironicamente, alguns dos clássicos que têm sido repostos estão a conseguir performances muito acima da média.
Eis um exemplo, dos dados referentes ao fim de semana de 13/16 Agosto: Sonic - o Filme, adaptação de um conhecido jogo de video, com Jim Carrey, foi projectado em 13 sessões, tendo sido visto por 63 espectadores; Blow-up, o clássico de 1966 que o italiano Michelangelo Antonioni rodou em Londres, teve apenas uma sessão para a qual foram vendidos 68 bilhetes.
Escusado será dizer que tais números não legitimam nenhuma generalização sobre o carácter mais ou menos “popular” de um filme ou outro (aliás, importa lembrar que Sonic se estreou ainda antes da situação de pandemia, tendo acumulado quase 150 mil espectadores). Vale a pena, isso sim, atentar no valor sintomático da situação global do mercado.
Assim, mesmo com naturais dificuldades, as chamadas salas independentes, directa ou indirectamente ligadas a distribuidores que trabalham com produtos que não provêm dos grandes estúdios dos EUA, têm conseguido manter uma frequência interessante. Ao mesmo tempo, em termos proporcionais, as outras salas (genericamente, as que existem em multiplexes de grandes superfícies comerciais) têm tido frequências muito menores.
Como é óbvio, o problema está longe de ser exclusivamente português. Sabemos, aliás, que o novo filme de Christopher Nolan, Tenet, tem servido de ponto de fuga de todos estes dramas, sendo apontado como um lançamento que poderá impulsionar o regresso de muitos espectadores às salas (a estreia em vários países da Ásia e Europa, incluindo Portugal, ocorrerá na quinta-feira, dia 26). Sem esquecer que esse lançamento tem estado a ser preparado através da reposição de outro filme de Nolan, Inception/A Origem (2010), que entre nós, também no último fim de semana, apenas conseguiu 2413 espectadores em 304 sessões (contas redondas: oito espectadores por sessão).
Espero que o leitor não leia de modo precipitado estas notas: sou também dos espectadores ansiosos por descobrir Tenet e, para lá dos resultados concretos de cada um dos seus filmes, considero Nolan um dos mais ousados experimentadores do cinema contemporâneo (americano ou não). Creio, aliás, que chegou a altura de reconhecermos que nenhuma destas questões se pode descrever — ainda menos compreender — através dos “gostos” seja de quem for. Importa perguntar, isso sim, que cultura cinematográfica dominante se consolidou no mercado das salas ao longo dos últimos anos. Na certeza de que tal pergunta é também (é mesmo sobretudo) comercial: não são os críticos de cinema que definem os parâmetros do consumo cinematográfico, mas sim os distribuidores e exibidores, aplicando os seus legítimos poderes de programação, fazendo as suas escolhas, definindo destaques e omissões.
Digamo-lo, por isso, com todas as letras: ao longo das últimas décadas — repito: não anos, mas décadas —, o mercado tem sido comandado por uma lógica de distribuição/exibição que, no essencial, depende dos chamados “blockbusters”, directa ou indirectamente ligados aos grandes estúdios americanos (alguns absolutamente prodigiosos, não é isso que está em causa).
Acontece que, mesmo com grandes sucessos pelo meio, o comércio, isto é, a cultura dos “blockbusters” não criou uma relação estável com os espectadores. Gerou, isso sim, um laço frágil que decorre apenas das práticas dominantes do “marketing”: investir muito (cada vez mais) nas campanhas para lançar um pequeno número de filmes por ano, secundarizando a promoção de quase todos os outros.
Esperemos que Tenet possa ser um grande sucesso — além do mais, estão em jogo os empregos de muitas pessoas. Em todo o caso, o mais rudimentar bom senso justifica que lembremos que, por mais esmagador que seja esse sucesso, não resolverá, por si só, os desequilíbrios de um mercado que nem sempre tem sabido favorecer a pluralidade de oferta, rentabilizando a diversidade da procura.