Com o seu filme Tenet, Christopher Nolan convoca-nos para uma história em que o tempo se tornou reversível: este é um mundo semelhante a um jogo de video, assombrado por “factos alternativos” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Agosto).
Encontro no YouTube um fragmento de uma conversa com Christopher Nolan, registada por altura do lançamento de Interstellar (2014). Referindo-se ao “ecrã verde” que permite inserir um determinado cenário virtual por trás dos actores e, de um modo geral, aos poderes figurativos dos modernos efeitos especiais, Nolan reconhece a sua utilidade para “intensificar” algumas situações. O que não exclui um fundamental princípio de trabalho: a opção, sempre que possível, por cenários físicos, fabricados para serem registados na própria rodagem (“in camera”, como ele diz).
A meu ver, a mais significativa contribuição de Nolan para o cinema dos últimos vinte anos — a sua primeira longa-metragem, Following, tem data de 1998 — não estará tanto nos artifícios associados ao universo dos super-heróis (com a trilogia de Batman, protagonizada por Christian Bale), mas sim nessa obstinação realista.
O que nos conduz a um curioso impasse, motivador e sedutor: como falar de realismo a propósito de filmes que nos projectam em dimensões mais ou menos “fantásticas”, porventura “transcendentais”? Interstellar não será uma aventura galáctica de humanos confrontados com os poderes indizíveis de um buraco negro?
Com uma inteligência plena de didactismo, o novo filme de Nolan, Tenet, recoloca-nos perante tal impasse, valendo a pena aceitar o desafio protagonizado pelo excelente John David Washington. O que está em jogo é, no limite, um drama profundamente social. A saber: a nossa capacidade de pensar os realismos (no plural, precisamente) para lá da utilização das imagens como instrumentos de policiamento descritivo do real.
Lembremos a ideologia “purificadora” que se consagrou na tecnologia do video-árbitro do futebol. Segundo o realismo do VAR, as imagens servem apenas para reduzir os acontecimentos a uma dicotomia sem alternativa (“legal” ou “ilegal”). Nolan é um resistente: as imagens não encerram definitivamente os sentidos do real, antes o fazem explodir, literal ou simbolicamente, num labirinto de significações cuja dimensão, em grande parte, nos escapa. Nesta perspectiva, Tenet parece-me ser um parente próximo de Ready Player One (2018), o filme de Steven Spielberg sobre um mundo “futuro” em que o real passou a ser vivido e, por assim dizer, habitado como um jogo de video.
Como tem sido amplamente divulgado, o título de Tenet provém do célebre e ancestral Quadrado Sator, uma espécie de “palavras cruzadas”, com cinco palavras latinas que, em conjunto, formam um palíndromo: estão dispostas de modo a poderem ser lidas da esquerda para a direita e da direita para a esquerda. “Tenet” é o palíndromo perfeito: uma palavra-espelho.
Com calculada ironia, as palavras desse quadrado surgem integradas na acção (por exemplo, Sator serve de apelido à personagem do oligarca russo interpretado por Kenneth Branagh). Mas a herança do latim não funciona como “chave” de leitura do que quer que seja. O que interessa Nolan é sugerir ao espectador que está a assistir a uma narrativa em que o tempo, além de não ser linear, existe num regime de total reversibilidade.
Há um sofisticado humor em tudo isto, até porque o filme não se limita a repetir a lógica das tradicionais viagens no tempo, à maneira de Regresso ao Futuro (1985), de Robert Zemeckis. Aí, Michael J. Fox recuava e avançava no calendário para “emendar” incidentes passados que podiam alterar o futuro, isto é, o presente que servira como ponto de partida. Agora, o futuro já está inscrito no presente — como alguém diz, um e-mail que se envia é algo que fica automaticamente no futuro, podendo regressar a qualquer momento ao presente. De tal modo que o passado a que se regressa pode coexistir com o futuro que já aconteceu.
Confuso? Em boa verdade, trata-se apenas de contar uma fábula contemporânea, tão labiríntica como um jogo de video, tão assombrada pela ameaça dos “factos alternativos” como a nossa frágil existência quotidiana. Tenet não é uma história imaginária sobre o futuro, mas um conto sobre o imaginário do nosso presente. Está lá tudo: a vertigem do espectáculo e o realismo do medo.