Mary Badham — Scout, em To Kill a Mockingbird |
Ver ou rever um filme como To Kill a Mockingbird pode ser um sugestivo exercício de reflexão sobre o nosso presente: são memórias do começo da década de 1960, tendo por base o romance clássico de Harper Lee — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 Agosto).
No cinema Nimas, em Lisboa, por iniciativa da Medeia Filmes, tem estado a decorrer um ciclo sobre o racismo [terminou no dia 5 de Agosto]. Aliás, a designação exacta do evento é “A propósito do racismo e da escravatura”. Aí tive oportunidade de rever o belíssimo To Kill a Mockingbird (1962), de Robert Mulligan, baseado no romance homónimo de Harper Lee — o filme chamou-se entre nós Na Sombra e no Silêncio (foi relançado em DVD há poucos anos, com chancela Universal), estando o livro actualmente disponível com o título Mataram a Cotovia (ed. Relógio d’Água).
Trata-se de um caso modelar de transposição cinematográfica, tendo, aliás, valido a Horton Foote o Oscar de melhor argumento adaptado. No filme como no livro, é o ponto de vista da pequena Scout que prevalece como fio condutor da acção. Simplificando (e simplificando muito), ela acompanha a saga do pai, Atticus Finch, advogado de defesa de um homem negro acusado de ter violado uma mulher branca. No contexto em que tudo acontece — uma cidadezinha do Alabama, nos anos da Grande Depressão —, o trabalho de Atticus suscita o desagrado de alguns cidadãos que o insultam por simpatizar com os negros (“nigger-lover”), no pressuposto de que o acusado, com ou sem julgamento, é automaticamente culpado.
A actualidade do filme é fascinante. E não só por razões temáticas, ainda que a mais rudimentar pedagogia política nos recorde que as formas contemporâneas de racismo não podem ser descritas como meras “duplicações” do que aconteceu há 90 anos, ou mesmo há 60 (o romance foi lançado em 1960). Essa actualidade é também especificamente cinematográfica, já que nos compele a reconhecer e revalorizar o cinema como história e património.
Recordemos, por isso, as muitas formas de celebração que, em 2018, enquadraram o protagonismo de Chadwick Boseman no filme Black Panther. Não quero esconder que o filme me parece ser (mais) uma variação banal das narrativas de super-heróis formatadas pelos estúdios Marvel; e quero também lembrar que, nos mais diversos contextos, houve gente muito séria a defender Black Panther com toda a convicção. Não é isso que está em causa. O que se discute é o facto de, em alguns casos, a performance de Boseman ter sido incensada como um acontecimento ímpar, até mesmo pioneiro, na figuração das personagens de pele negra no interior da produção de Hollywood.
Enfim, digamos que este ciclo de filmes pode servir de primeiro desmentido de tão disparatada asserção — Blackboard Jungle/Sementes de Violência (1955), de Richard Brooks, ou O Sargento Negro (1960), de John Ford, são alguns dos títulos que ainda vão ser exibidos [passaram a 1 e 3 de Agosto, respectivamente]. A par de uma pergunta que, creio, faz sentido relançar: porque é que algumas formas de militância política são levadas a assumir-se como acontecimento “fundador” da sua causa, a ponto de recalcarem a própria história que as fundamenta ou devia fundamentar?
Neste caso, não é possível esquecer que a dinâmica do cinema de Hollywood está toda ela marcada pelas convulsões da história dos afro-americanos. O exemplo do filme de Mulligan é tanto mais significativo quanto ele foi um nome essencial de uma geração que soube herdar e transformar um complexo património clássico, geração de que também fazem parte Alan J. Pakula (produtor de To Kill a Mockinbird, futuro realizador de Os Homens dos Presidente, sobre o escândalo Watergate e a queda de Richard Nixon), Sydney Pollack, John Frankenheimer ou Sidney Lumet.
Assim, a riqueza temática do filme não decorre da “ilustração” de uma determinada temática, antes da sua configuração humana. E se a interpretação de Gregory Peck na personagem de Atticus é, em si mesma, um clássico da história de Hollywood (ganhou o Oscar de melhor actor), lembremos também o misto de candura e inteligência com que a maravilhosa Mary Badham compõe a figurinha rebelde de Scout. A sua herança é também preciosa, em particular face a algumas ficções contemporâneas em que as crianças estão condenadas a ser pitorescas, patetas ou insuportavelmente moralistas. Decididamente, o cinema do passado é o cinema do presente.