terça-feira, março 31, 2020

A IMAGEM: Brian Bowen Smith, 2006

BRIAN BOWEN SMITH
Carolyn Murphy
2006

"Western Stars" — o filme

Aos 70 anos, Bruce Springsteen apostou em recriar o seu álbum Western Stars através de um belo concerto que funciona também como uma viagem introspectiva e confessional: o resultado é um filme já disponível em DVD e Blu-ray — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Março).

Nestes tempos tão singulares e dramáticos, o filme Western Stars, de e com Bruce Springsteen, não chegou às salas portuguesas. Mas não por causa da conjuntura pandémica que estamos a viver: a sua edição directa em DVD (e também Blu-ray, aliás numa transcrição de imaculada qualidade) já estava prevista, não se repetindo, assim, o que aconteceu no mercado dos EUA, onde o filme cumpriu uma breve passagem pelo circuito tradicional de exibição (em outubro/novembro de 2019).
Estamos perante um objecto cujo propósito esquemático — registar as canções de um novo álbum — não deixa de ser formalmente sedutor, além de comercialmente atípico. Springsteen apostou em revisitar os temas de Western Stars (o seu 19º álbum de estúdio, lançado em junho do ano passado), num registo que não corresponde à convencional abordagem de um “making of”: por um lado, descobrimo-lo num concerto de características muito especiais, recriando as 13 canções do álbum (desembocando na evocação final de Like a Rhinestone Cowboy, tema clássico de Glen Campbell); por outro lado, há nesta cândida deambulação a vontade explícita de desenhar um esboço auto-biográfico, em particular percorrendo algumas memórias do seu prolongado período de depressão. O facto de Springsteen assinar a realização do filme (partilhada com Thom Zimny, velho amigo e colaborador) é, afinal, um sintoma claro da sua postura confessional.


“Passei 35 anos a tentar aprender como me libertar das componentes destrutivas da minha pessoa”, confessa o autor de Born in the USA, acrescentando: “E ainda tenho dias em que luto com isso.” Pontuando as imagens do filme, tais palavras são, afinal, um eco da singela dimensão confessional que, porventura com alguma surpresa, tínhamos descoberto no livro auto-biográfico Born to Run (edição portuguesa: Elsinore, 2016). Através das histórias que as suas canções têm contado, muitas vezes encenando personagens à procura da sua própria identidade, Springsteen encenava também as angústias e o desejo de redenção do seu destino.
Western Stars é um reflexo vivo de tudo isso, uma verdadeira reinvenção identitária, sustentada por uma magnífica performance ao vivo. Nesta perspectiva, parece existir um efeito de continuidade entre esta experiência cinematográfica e o espectáculo “Springsteen on Broadway”, também ele de características auto-biográficas, que esteve em cena no Walker Kerr Theatre, Nova Iorque, em 2017/18, vindo a ser distinguido com um prémio Tony (o respectivo registo está disponível num álbum homónimo, lançado em finais de 2018).
Tudo se passa no celeiro da quinta de Springsteen, no estado de New Jersey, próximo da cidadezinha de Long Branch, onde ele nasceu há pouco mais de 70 anos (a 23 de setembro de 1949). Em boa verdade, trata-se de um celeiro, também ele atípico, transfigurado em requintada sala de concertos, com uma particularidade que o proprietário destaca com orgulho: a muito bem conservada estrutura de madeira favorece uma sonoridade de rara pureza e envolvimento.
Com o acompanhamento de uma orquestra de 30 elementos (predominam os violinos, tão essenciais ao belo som “sinfónico” do álbum Western Stars), Springsteen lidera um brilhante conjunto de músicos — incluindo a sua mulher, Patti Scialfa, ela própria uma talentosa intérprete de country-rock —, capazes de proporcionar um evento de sofisticada competência profissional sem alienar a sua vibração intimista. O ziguezague entre canções e extractos de filmes de família (incluindo um delicioso momento burlesco na companhia de Scialfa, por certo da época do seu casamento, em 1991) transforma Western Stars num pessoalíssimo bloco-notas, partilhado com o espectador. Fica uma sensação amarga e doce: o filme merecia ser visto no grande ecrã de uma sala escura (até pelas qualidades da direcção fotográfica, assinada por Joe DeSalvo), mas não se pode ter tudo.

segunda-feira, março 30, 2020

Michael Stipe, em quarentena

Michael Stipe mantém-se em actividade... Depois de Drive to the Ocean, aí está mais uma canção, para a sua/nossa quarentena: chama-se No Time for Love Like Now, arrisca na sedução romântica, convoca o pragmatismo realista, e foi feita com a colaboração do guitarrista e teclista Aaron Dessner (The National).

There’s no time for dancing
There’s no time for undecideds
No time for love like now

Krzysztof Penderecki (1933 - 2020)

[Wikipedia]
Criador marcante na história da música da segunda metade do século XX, o compositor e maestro polaco Krzysztof Penderecki faleceu no dia 29 de Março, em Cracóvia, na sequência de doença prolongada — contava 86 anos.
Obras como Trenodia às Vítimas de Hiroshima, para 52 instrumentos de cordas, a oratória Paixão Segundo São Lucas (1965) ou a Sinfonia nº 3 (1988-1995), composta para comemorar centenário da Münchner Philharmoniker, podem exemplificar o risco experimental do seu trabalho, retomando uma herança plural que passa por compositores como Webern ou Stravinsky. Curiosamente, o cinema contribuiu também para a divulgação da sua obra, a partir do momento em que William Friedkin integrou vários fragmentos de obras de Penderecki em O Exorcista (1973); Stanley Kubrick, em Shining (1980), David Lynch em Um Coração Selvagem (1990) e Inland Empire (2006), ou Peter Weir, em Sem Medo de Viver (1993), foram outros realizadores que usaram extractos das suas composições.
A fundamental dimensão política do seu trabalho encontrou uma concretização muito especial em Lacrimosa (1980), encomenda do sindicato Solidariedade de homenagem às vítimas da revolta nos estaleiros de Gdansk, em 1970. Lacrimosa seria objecto de vários desenvolvimentos, o último dos quais em 2005, com um derradeiro andamento em memória de João Paulo II — a obra passou a designar-se Requiem Polaco.

>>> Polymorphia (1961), banda sonora de O Exorcista.


>>> O Despertar de Jacob (1974), banda sonora de Shining.


>>> Penderecki dirige a Orquestra de Câmara da Coreia, interpretando o seu Concerto para Violino nº 2 'Metamorphosen' (1992-95); violino: Juyoung Baek — Seul, 18 Dezembro 2013.


>>> Obituário no jornal The Guardian.
>>> Site oficial de Krzysztof Penderecki.
>>> Krzysztof Penderecki na NPR.

domingo, março 29, 2020

Mécia de Sena (1920 - 2020)

[FOTO: Fernando Lemos, 1949 — FCG]
Escritora, professora, investigadora, foi também a admirável gestora e divulgadora da obra do seu marido, Jorge de Sena (1919-1978): Mécia de Sena faleceu no dia 28 de Março, em Los Angeles — completara 100 anos a 16 de Março.
Formou-se em Ciências Histórico-Filosóficas, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo também o curso do Conservatório de Música do Porto. Foi professora do ensino secundário e, depois do casamento, em 1949, "colaboradora literária" de Jorge de Sena. A morte prematura do marido fez dela a principal guardiã do respectivo espólio, inclusive das cartas trocadas por ambos durante o exílio brasileiro do escritor [Correspondência Jorge de Sena e Mécia de Sena (Brasil, 1959-1965), de Maria Otília Pereira Lage, ed. Afrontamento]. Nas suas palavras cristalinas, a vida do casal fundamentou-se na rejeição do "caminho mais fácil", nessa medida gerando "uma confiança e uma identificação que dificilmente poderão ter paralelo".

>>> Início de uma entrevista de Jorge de Sena, registada na Universidade da Califórnia (Santa Barbara), no dia 4 de Maio de 1978 — Sena faleceu um mês mais tarde.


>>> Obituário no Diário de Notícias.

Distância social [Audi]

O anúncio da Audi tem assinatura da NRG Brands, agência de publicidade da Bulgária — eis um exemplo de serena sabedoria na promoção da ideia de distância social, recriando e, por assim dizer, "corrigindo" um emblema de reconhecimento internacional. Mais simples não seria possível. E mais pedagógico também não.

>>> Outro anúncio da Audi, neste caso em filme, realizado pela NRG Brands em 2017.

sábado, março 28, 2020

Gerhard Richter — uma exposição

GERHARD RICHTER
Auto-retrato, 1996
Os 150 anos do MET (Metropolitan Museum of Art), de Nova Iorque, estão a ser comemorados com diversas exposições que têm agora, mais do que nunca, uma importante vida virtual. É o caso da retrospectiva do alemão Gerhard Richter (n. 1932), até 5 de Julho, com o belo título 'Painting after all' — qualquer coisa como "afinal é sempre pintura". Assim é, de facto: da abstracção à reconversão pictórica de representações fotográficas, Richter é um admirável criador e crítico das imagens como entidades que expõem as fronteiras do visível, tanto quanto nos podem confrontar com o que permanece ausente das representações correntes do mundo. Ou até mesmo com o que, historicamente, resistiu ao testemunho das imagens — há vários trabalhos que envolvem ecos do Holocausto e, mais especificamente, de Auschwitz-Birkenau.
Para descobrir no site do MET. Aqui em baixo, um breve video de apresentação da exposição.

Roland Barthes, aqui e agora

Na sequência de um acidente, Roland Barthes faleceu no dia 26 de março de 1980, fez ontem 40 anos. A obra do autor de O Prazer do Texto, Fragmentos de um Discurso Amoroso e A Câmara Clara não perdeu actualidade nem sedução — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Março).

Roland Barthes faleceu no dia 26 de março de 1980 — faz hoje 40 anos. Nesse mesmo ano, lançara aquele que continua a ser, por certo, um dos seus livros mais lidos, não só pelo grande público, mas também em contextos de estudo da fotografia e do cinema: chama-se A Câmara Clara e nele o autor discute as transparências e mistérios da imagem fotográfica, quer convocando os grandes mestres (Nadar, Cartier-Bresson, Mapplethorpe, etc.), quer citando registos da sua história familiar, em particular uma fotografia emblemática da sua mãe.
A notícia da sua morte foi um choque. Nascido a 12 de novembro de 1915, em Cherburgo, Barthes era um nome central no pensamento europeu e, além do mais, uma personalidade muito activa nos domínios da escrita e do ensino, na altura integrando o corpo docente do Collège de France, em Paris. Foi, aliás, a caminho das suas aulas, no dia 25 de fevereiro desse ano, que foi atropelado por um camião, num acidente que se revelaria fatal.
Barthes desempenhou um papel fundamental na revolução dos estudos semiológicos da década de 60, tendo publicado os seus Ensaios Críticos e Elementos de Semiologia, respectivamente em 1964 e 1965. A agilidade do seu pensamento, combinando o rigor analítico com o risco filosófico, teve uma influência tanto maior quanto a sua escrita nunca se confinou aos mais clássicos domínios de investigação (a começar pela literatura), abrindo espaços de reflexão sobre os objectos, comportamentos e valores da chamada “sociedade de consumo”.
Dois livros podem ilustrar essa sua atenção às vibrações específicas da nossa vida social, desmontando ideias feitas (sobretudo mal feitas) que circulam a propósito de tudo aquilo que, precipitadamente, consideramos “banal” ou “indiferente”. Um deles, Sistema da Moda (1967), tem a estrutura de uma tese universitária e desmonta o discurso (da moda, precisamente) sobre o que vestimos, o que escolhemos vestir ou nos é dito que devemos vestir. O outro é, ainda hoje, o título mais popular da sua vasta bibliografia: Mitologias (1957) observa com precisão semiológica, e também um delicioso e contagiante humor, os mais variados temas do imaginário social, da publicidade dos produtos de limpeza à iconografia da Volta à França em Bicicleta, passando pelos lugares-comuns dos discursos populistas da época.
Escusado será dizer que, hoje em dia, a obra de Barthes será tudo o que se quiser menos um objecto esquecido num qualquer recanto de curiosidades museológicas. Para além dos muitos estudos, análises e releituras que continua a suscitar, a sua vida foi tratada numa monumental biografia assinada por Tiphaine Samoyault (Roland Barthes, ed. Seuil, 2015).
À excepção desta biografia, a maior parte dos seus livros estão disponíveis no mercado português (com chancela das Edições 70). Eis mais três hipóteses de descoberta ou redescoberta:
[Seuil]
— O PRAZER DO TEXTO (1973): é um dos seus trabalhos mais breves (cerca de uma centena de páginas) e também um dos mais influentes. Trata-se de perguntar como se escreve e, mais do que isso, como lemos aquilo que se escreve. O seu título envolve a tensão entre as linguagens que aprendemos e a possibilidade de protagonizarmos, descobrirmos e inventarmos outras linguagens. No admirável prefácio da primeira edição portuguesa (escrito a 14 de maio de 1974), Eduardo Prado Coelho definia tal tensão a partir de duas frentes: “a guerra das linguagens e a paz dos textos”.
— FRAGMENTOS DE UM DISCURSO AMOROSO (1977): Barthes parte da “extrema solidão” do discurso amoroso, convoca autores como Balzac, Goethe e Freud, propondo uma originalíssima digressão através dos sobressaltos da paixão. Entre os seus fragmentos e alíneas encontramos, por exemplo, “carta”, “ciúme”, “eu amo-te”, “obsceno” e “verdade”.
— LIÇÃO (1978): texto breve, por excelência, não mais que quatro dezenas de páginas sublimes. Nas palavras da lição inaugural da disciplina de Semiologia Literária do Collège de France (proferida a 7 de janeiro de 1977), Barthes fala da aventura de ensinar, da transmissão do saber e dessa revelação visceral, profundamente sensual, que faz com que o saber se transfigure em sabor.

>>> Roland Barthes por Philippe Sollers [Tel Quel, nº 47, Outono 1971].

sexta-feira, março 27, 2020

Bob Dylan apresenta a sua primeira canção original desde 2012. E é uma obra-prima!



Este é o primeiro tema original que Dylan nos dá a ouvir desde o álbum Tempest, de 2012. Desde então os vários novos discos que lançou foram, todos eles, feitos de versões. Murder Most Foul tem perto de 17 minutos, recorda o assassinato de John F. Kennedy em Dallas, em 1963... e é simplesmente assombroso!

Melanie C: uma obra-prima

Com metódica energia, Melanie C continua a celebrar a herança das Spice Girls, agora com um teledisco que fica, desde já, como uma das obras-primas do audiovisual de 2020. Além de ser um delicioso bombom pop, Who I Am, com realização de Sylvie Webber, apresenta-se como um inusitado exercício de figuração em que tudo vacila — corpo, imagem, representação —, ao mesmo tempo que tudo parece regressar a uma harmonia primordial. Verdadeiramente mágico.

quinta-feira, março 26, 2020

Imagem & poder

A fotografia surgiu no Libération: Vladimir Putin anunciando as suas medidas para contenção do COVID-19 e o adiamento da votação popular sobre a reforma constitucional. Ou como a imagem da política é "coisa" que manuseamos todos os dias, confundindo a sua identidade com os rituais da nossa sobrevivência. Ou ainda: o poder como imagem passou a fazer parte do álbum virtual de imagens sobre as quais não temos qualquer poder — a não ser o de consumi-las.

quarta-feira, março 25, 2020

A utopia de Cannes

Por causa do COVID-19, o Festival de Cannes foi adiado (talvez para Junho/Julho). Lembramo-nos, por isso, da edição de 1968, o ano em que o certame começou… mas não acabou — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Março).

Em 1968, em França, o ministro da Cultura era André Malraux. Mais exactamente: ministro de Estado encarregado dos Assuntos Culturais. No dia 25 de março desse ano, na qualidade de delegado geral do Festival de Cannes, Favre Le Bret dirigiu uma carta a Malraux, convidando-o a presidir à abertura do certame, a 10 de maio, numa sessão de homenagem a Vivien Leigh, incluindo a projecção da nova cópia, em 70mm, de E Tudo o Vento Levou (1939), de Victor Fleming; em alternativa, Le Bret sugeria ao ministro que se deslocasse a Cannes para o encerramento oficial, duas semanas mais tarde, dia 24.
André Malraux
Por estes dias, estas são memórias recobertas por uma nostalgia amarga e doce. Porquê? Desde logo, porque aconteceu o impensável: Cannes/1968 não chegou ao fim… Agora, na convulsão global que estamos a viver por causa da pandemia do coronavírus, soubemos (quinta-feira, dia 19) que Cannes/2020 está adiado. E convenhamos que, embora reconhecendo o fulgor de tão nobre evento, parece quase impossível concretizar a hipótese formulada pela equipa do festival: “Várias opções estão a ser analisadas no sentido de preservar o acontecimento, das quais a principal seria um simples adiamento para Cannes, em finais de junho, princípio de julho de 2020.”
Lição paradoxal: com o encerramento de salas de cinema em todo o mundo, a actual crise, ainda que envolvendo como absoluta prioridade a saúde pública, não pode deixar de nos levar a especular sobre a conjuntura em que o cinema, arte ou indústria (aliás, arte e indústria), passou a existir. Este é, de facto, um tempo marcado pela tensão entre as formas clássicas de difusão dos filmes (as salas escuras, precisamente) e o crescimento exponencial do nosso consumo digital (as plataformas de “streaming”). Sintomaticamente, as últimas três edições de Cannes ficaram marcadas por um ziguezague de aproximações e rupturas entre a organização e a Netflix. E pressentia-se que 2020 seria (ou será) um novo e importante capítulo na respectiva evolução.
Escusado será dizer que, na história de Cannes, não há qualquer semelhança entre o drama cinematográfico e cinéfilo agora instalado e as convulsões do tempo de Malraux. O festival de 1968 arrancou numa altura em que as suas opções na área da gestão cultural estavam muito longe de ser consensuais. Em fevereiro desse ano, Malraux tentara afastar da direcção da Cinemateca Francesa o seu fundador, o lendário Henri Langlois, desencadeando uma reacção de tal modo enérgica de toda a profissão cinematográfica que se viu compelido a recuar (Langlois manteria o seu cargo até à morte, em 1977).
Isto sem esquecer que, em 1966, a possível interdição do filme A Religiosa, de Jacques Rivette, baseado na obra de Diderot, tinha colocado Malraux no centro de uma polémica que teve como expressão mais célebre a carta aberta que Jean-Luc Godard lhe dirigiu, apelidando-o de “ministro da Kultura” (o filme passara, curiosamente, na edição desse ano em Cannes, tendo chegado às salas francesas, depois de um agitado processo jurídico, no verão de 1967).
Mais do que tudo isso (e por causa de tudo isso), o encerramento do Festival de Cannes ficou como um dos episódios marcantes do Maio 68 francês. A abertura do certame com o clássico E Tudo o Vento Levou acabou por ter um perverso simbolismo, já que tudo o que aconteceu depois esteve longe de ser a ilustração do imaginário do “entertainment” segundo Hollywood.
Foi a 18 de maio, na projecção de Peppermint Frappé, de Carlos Saura, que eclodiu um protesto envolvendo nomes emblemáticos do cinema francês, incluindo Godard, François Truffaut e Claude Lelouch. Argumentando que a França estava a viver um capítulo dramático da sua história, com muitas greves e drásticas limitações nos transportes, os protagonistas dessa acção defenderam o imediato fim do festival, tendo, aliás, recebido o apoio de personalidades envolvidas no certame, incluindo três elementos do júri oficial: Monica Vitti, Roman Polanski e Louis Malle. A 19 de maio, ao meio-dia, a organização encerrava o festival e, por uma vez, Cannes ficou sem palmarés. Mais de meio século depois, somos confrontados com a possibilidade de nem sequer podermos ter algo parecido com essa “metade” de um festival… Reviver as gloriosas imperfeições de 1968 volta a ser uma utopia.

terça-feira, março 24, 2020

Albert Uderzo (1927 - 2020)

É um dos lendários criadores do universo de Astérix e Obélix: o francês Albert Uderzo faleceu no dia 24 de Março, na sua casa de Neuilly-sur-Seine, de um ataque cardíaco não relacionado com a pandemia de COVID-19 — contava 92 anos.
A trajectória criativa de Uderzo envolveu, desde muito cedo, a colaboração com o seu amigo René Goscinny (1926-1977). Foi na lendária revista de BD franco-belga Pilote, fundada em 1959, que surgiu Astérix, com histórias de Goscinny e desenhos de Uderzo: o retrato da pequena comunidade gaulesa, liderada por Astérix, tendo sempre a seu lado o fiel Obélix, fazendo frente às hostes do imperador romano Júlio César, rapidamente se transformou num fenómeno universal — a partir de 1961, com a publicação do álbum Astérix, o Gaulês, as histórias adquiriram autonomia editorial, tendo já vendido mais de 350 milhões de livros em todo o mundo.
O cinema, primeiro na animação, depois com actores de carne e osso, tem sido também um espaço de recriação das suas aventuras — o título mais recente é Astérix e Obélix: Ao Serviço de sua Majestade (2012), realização de Laurent Tirard protagonizada por Edouard Baer e Gérard Depardieu, respectivamente como Astérix e Obélix. Depois da morte de Goscinny, Uderzo assumiu também a escrita das histórias, acabando por se retirar em 2009, altura em que vendeu os seus direitos à editora Hachette.

>>> Uderzo a desenhar (video da revista Le Point, 2013).


>>> Trailer de Astérix e Obélix: Ao Serviço de sua Majestade.


>>> Obituário no jornal Le Figaro.
>>> Desenhos de Uderzo no jornal de Le Monde.
>>> Site oficial de Astérix [onde está publicado o desenho de Uderzo, aqui reproduzido].

Um poema de Bernardo Pinto de Almeida

PAUL CÉZANNE
Natureza morta com cortina (1895)
Sinais, mensagens e imaginação destes tempos de reclusão/comunicação: um poema de Bernardo Pinto de Almeida, lido por Pedro Lamares — ou como as palavras se intensificam no nosso quotidiano de ambíguas ausências.

segunda-feira, março 23, 2020

"EverydayCovid" — Instagram de fotógrafos

Ponta Delgada, Açores (19-03-20)
[FOTO: Rui Soares]
Assim vai o mundo: vemo-nos uns aos outros, mas há barreiras (físicas ou imateriais) que não podemos, nem devemos, ultrapassar... Dito de outro modo: a arte de olhar o mundo à nossa volta é mais preciosa do que nunca. Daí que um grupo de fotógrafos profissionais (cuja actividade obviamente se mantém) se tenha organizado para ir partilhando connosco alguns exemplos do seu labor. Do drama à ironia, são testemunhos de dias difíceis — a descobrir no Instagram: EverydayCovid.

Norah Jones & Jeff Tweedy

Pick Me Up Off The Floor, assim se chama o oitavo álbum de estúdio de Norah Jones, com lançamento previsto para o mês de Maio. Jeff Tweedy, líder dos Wilco, colaborou em duas canções, uma das quais já foi divulgada em teledisco — ei-los em sofisticada aliança, interpretando I'm Alive.

"Rebecca", 80 anos

Convidado pelo produtor David O. Selznick, Alfred Hitchcock estreou-se na produção de Hollywood com Rebecca, adaptado do romance homónimo de Daphne Du Maurier — a estreia ocorreu há 80 anos, no dia 21 de março de 1940 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Março).

A memória corrente de Alfred Hitchcock (1899-1980) surge frequentemente marcada por um desconcertante equívoco: ele seria o símbolo perfeito dos classicismo de Hollywood, essa sofisticada arte narrativa concebida, fabricada e aplicada pelos autores nascidos nos EUA. É verdade que o “mestre do suspense” ocupa um lugar central na história de Hollywood. O certo é que foi apenas em 1955 que se tornou cidadão americano, tendo nascido em Inglaterra, aí criando o primeiro e fundamental capítulo da sua filmografia (mais de duas dezenas de longas-metragens, incluindo algumas mudas). O seu primeiro título “made in USA”, Rebecca, estreou-se há 80 anos, no dia 21 de março de 1940.
Ao longo das décadas de 40/50, Hitchcock assinou alguns dos filmes mais perfeitos, e também mais populares, da idade de ouro de Hollywood. Exemplos incontornáveis serão Difamação (1946), Janela Indiscreta (1954) e Vertigo (1958). No seu renovado fascínio, Rebecca não será um dos casos mais reveladores da sua visão do mundo, mas não deixa de ser o mais consagrado de toda a sua carreira — isto porque recebeu o Oscar de melhor filme de 1940 (tendo valido uma outra estatueta dourada a George Barnes, na categoria de melhor fotografia a preto e branco).
Como muitos outros criadores britânicos e, genericamente, europeus, Hitchcock partiu para os EUA em 1939, ano do início da Segunda Guerra Mundial. No seu caso, porém, a motivação surgiu antes do começo da guerra: David O. Selznick (1902-1965), personalidade fulcral nos anos de consolidação do cinema sonoro, convidou-o para integrar o seu estúdio — Selznick International Pictures —, sendo Rebecca a sua primeira tarefa de realizador [trailer].


O menos que se pode dizer é que a produção de Rebecca não foi um mar de rosas. Por um lado, Hitchcock tinha já apurado e depurado o seu “touch” no período inglês — através de títulos tão admiráveis como O Homem que Sabia Demasiado (1934) e Desaparecida (1938) —, encarando a adaptação do romance homónimo de Daphne du Maurier como uma sugestiva hipótese de continuar a explorar os limites e contradições de um clássico par romântico, para mais contando com Joan Fontaine e Laurence Olivier como protagonistas. Por outro lado, Selznick queria seguir o seu conceito de um cinema “maior que a vida”, servido por elementos de grande intensidade cenográfica e espectacular — convém lembrar, aliás, que no período de rodagem de Rebecca, Selznick ia gerindo a sua produção mais ambiciosa, E Tudo o Vento Levou, título que, em boa verdade, por si só, lhe iria garantir um lugar na história do cinema.
As desinteligências de Selznick e Hitchcock entraram para a mitologia de Hollywood como sintoma revelador das tensões “produtor/realizador”. Para Selznick, o retrato da mulher (Fontaine) que se casa com o aristocrata (Olivier) devia seguir a lógica de um conto gótico em que Rebecca, a primeira mulher do protagonista, falecida em circunstâncias mal esclarecidas, seria o fantasma de todas as relações. Hitchcock não negava tal possibilidade — a figura de Rebecca é mesmo uma perturbante ausência… sempre presente —, ainda que apostando num registo mais “psicológico” em que a personagem de Mrs. Danvers (Judith Anderson), a governanta que servira Rebecca, emerge como figura de metódica ambivalência sexual.
Feitas as contas, não nos podemos queixar: Rebecca não será uma concretização emblemática dos valores de espectáculo segundo Selznick, mas também não é, de modo algum, um Hitchcock banal. Os dois continuaram ligados durante os sete anos estipulados pelo contrato inicialmente estabelecido, ainda que a sua aliança só tenha gerado mais dois filmes: A Casa Encantada (1945) e O Caso Paradine (1947).
Com Rebecca, Hitchcock obteve a sua primeira nomeação para o Oscar de melhor realizador, proeza que repetiria com Um Barco e Nove Destinos (1944), A Casa Encantada, Janela Indiscreta e Psico (1960) — nunca ganhou; em 1968, recebeu o prémio honorário Irving G. Thalberg [video].

domingo, março 22, 2020

O fim da era Trump [citação]

>>> No começo da semana passada, a era Trump — que a si mesma se definiu através de uma sinistra celebração de "factos alternativos", desprezo pela ciência e assalto a instituições globais e ao "estado administrativo" — chegou ao fim. Lamentavelmente, Donald Trump mantém-se no poder, mas, pelo menos para já, parece ter cedido à evidência: não lhe é possível sobrepor as suas fantasias às mais cruas realidades do mundo. O coronavírus, agressivo e mortal, não se mostra impressionado nem dominado pela algazarra de um vigarista. Ainda assim, o demorado processo de assunção de humildade por parte de Trump, o tempo que demorou a reconhecer o poder da pandemia global que esvaziou as nossas ruas, colocou em risco um incalculável número de americanos.

DAVID REMNICK
'How the Coronavirus Shattered Trump’s Serene Confidence'
in The New Yorker (22 Março 2020)

Kenny Rogers (1938 - 2020)

Senhor de uma voz grave e, ao mesmo tempo, cristalina, triunfou como símbolo popular da música "country": Kenny Rogers faleceu no dia 20 de Março, de causas naturais, na sua casa de Sandy Springs, Georgia — contava 81 anos.
Depois de passar pelos universos do jazz e do psicadelismo, começou a construir uma carreira de sucesso, em 1976, com o seu primeiro registo a solo, Love Lifted Me. Com mais de três dezenas de álbuns e 24 primeiros lugares na tabela de singles dos EUA, evoluiu de modo suficientemente ágil para cruzar as suas raízes "country" com elementos do pop rock. Entre as suas canções mais célebres incluem-se Coward of the county, Laura (What’s he got that I ain’t got), The gambler e We’ve got tonight, esta num dueto com Sheena Easton, lançado em 1983 [video].


>>> Obituário na Rolling Stone.

sábado, março 21, 2020

No centenário de Eric Rohmer

Eric Rohmer nasceu no dia 21 de Março de 1920 — foi há 100 anos (faleceu a 11 de Janeiro de 2010). E se é verdade que o seu cinema, de A Minha Noite em Casa de Maud (1969) a A Inglesa e o Duque (2001), passando por A Mulher do Aviador (1981), vive da arte suprema das palavras, suas significações e silêncios, não é menos verdade que há no seu trabalho um gosto da imagem que a faz oscilar entre a vinheta clássica e o realismo quase táctil que os meios cinematográficos contêm, sugerem ou atraem — três fotogramas para não nos esquecermos do visual segundo Rohmer.

>>> O Joelho de Claire (1970) + O Amor às Três da Tarde (1972) + A Marquesa d'O (1976).


>>> Eric Rohmer no site 'New Wave'.

Zé Povinho

Caldas da Rainha, 19 Março 2020
[FOTO: Miguel A. Lopes]
O povo. Aqui e agora, o que significa a palavra povo?
Estranho e sarcástico simbolismo: antes mesmo da pandemia, este Zé Povinho gigante estava já em quarentena no seu imaculado aquário de vidro. A imperiosa desinfecção lembra-nos que, para lá da urgência primeira de preservar a vida dos vivos, importa também não menosprezar a vida dos símbolos: Rafael Bordalo Pinheiro, algures, ri-se, não de nós, mas para nós — e há ternura no seu olhar.

sexta-feira, março 20, 2020

Teatro Aberto está online

O teatro acontece no território mágico de um palco. Sim, e por estes dias sentimos a falta dessa sensação muito física de estarmos perante um espaço que se transfigura em múltiplo da nossa existência, reproduzindo-a, aliás, reinventando-a. Para lidarmos com essa falta, o Teatro Aberto dá o exemplo, disponibilizando no seu site o registo de algumas das suas produções — em cena está, até dia 25 de Março, a peça A Mentira, de Florian Zeller, com encenação de João Lourenço, interpretada por Joana Brandão, Miguel Guilherme, Patrícia André e Paulo Pires. Seguir-se-ão:

A Verdade - 26 Mar a 1 Abr
Vermelho - 2 a 8 Abr
Noite Viva - 9 a 15 Abr
O Preço - 16 a 22 Abr
Amor e Informação - 23 a 29 Abr

Informações (e espectáculos) no site do Teatro Aberto.

quinta-feira, março 19, 2020

Bruce Springsteen: "London Calling"

Aconteceu a 28 de Junho de 2009: Bruce Springsteen e a E Street Band deram um concerto, em Londres, que entrou para a história sob o signo de The Clash: London Calling: Live in Hyde Park. Editado em DVD e Blu-ray, em 2010, foi agora disponibilizado em diversas plataformas (incluindo o YouTube). Objectivo: ilustrar a duplicidade da nossa actual existência de cidadãos e consumidores — "distância social & streaming". Eis uma amostra exuberante e esclarecedora: The Promised Land (do álbum Darkness on the Edge of Town, 1978).

quarta-feira, março 18, 2020

Concertos & futebol [Portugalex]

No Portugalex (Antena 1/Antena 3) António Machado e Manuel Marques viajam na paisagem social do COVID-19, ponderando a transcendência da música em concertos caseiros e também as angústias dos comentadores sem futebol — uma preciosidade para escutar no RTP Play.

terça-feira, março 17, 2020

Quarentena [citação]


>>> Contar com a lenta tomada de consciência dos cidadãos é uma aposta. Todos os profissionais de saúde o dizem: está a decorrer uma corrida de velocidade contra a doença e a morte. Para não submergir os serviços de saúde e para diminuir o número de contaminações, é imperativo que as medidas de quarentena sejam imediatas, massivas e durem o tempo que for necessário. A conclusão é clara: se a pedagogia não for suficiente, será preciso mudar rapidamente de registo.

Editorial
17 Março 2020

Pânico [citação]

>>> Nunca vivi um tal grau de inquietação por causa de uma doença infecciosa e, aliás, de nenhuma outra.
E, todavia, não estou inquieto quanto às consequências médicas do coronavírus. Nada nos números actuais sobre a mortalidade e a propagação do vírus justifica o pânico mundial e, sobretudo, económico.
As medidas adoptadas são adequadas e eficazes, permitindo controlar a epidemia. É já o caso da China, lugar inicial e de longe o mais importante deste agente infeccioso, onde a epidemia está a caminho da extinção.
O futuro próximo dirá se me enganei.

GILBERT DERAY
Hôpital Pitié-Salpêtrière, Paris

Coronavirus, attention danger, mais pas celui que vous croyez.
Depuis 30 ans, de mon observatoire hospitalier, j’ai vécu de nombreuses crises sanitaires, HIV, SRAS, MERS, résurgence de la tuberculose, bactéries multi-résistantes, nous les avons gérées dans le calme et très efficacement.
Aucune n’a donné lieu à la panique actuelle.
Je n’ai jamais vécu un tel degré d’inquiétude pour une maladie infectieuse et d’ailleurs pour aucune autre.
Et pourtant, je ne suis pas inquiet quant aux conséquences médicales du Coronavirus. Rien dans les chiffres actuels sur la mortalité et la diffusion du virus ne justifie la panique mondiale sanitaire et surtout économique.
Les mesures prises sont adaptées et efficaces et elles permettront le contrôle de l’épidémie. C’est déjà le cas en Chine, foyer initial et de loin le plus important de cet agent infectieux, ou l’épidémie est en train de s’éteindre.
L’avenir proche dira si je me suis trompé.
Par contre,
• Je suis inquiet des vols de masques et que ceux nécessaires à la protection des personnels soignants et des personnes à risque, nos anciens et celles déjà malades, en particulier les patients immunodéprimés, soient distribués pour une efficacité nulle dans les aéroports, les cafés et les centres commerciaux.
• Je suis inquiet des vols de gels nettoyants.
• Je suis inquiet de ces rixes pour acheter du papier toilette et des boîtes de riz et de pates.
• Je suis inquiet de cette terreur qui conduit à faire des stocks obscènes de nourriture dans des pays où elle est disponible dans une abondance tout aussi obscène.
• Je suis inquiet pour nos anciens déjà seuls et qu’il ne faut plus ni voir ni toucher de peur de les tuer. Ils mourront plus vite mais « seulement « de solitude. Nous avions l’habitude de ne pas rendre visite à nos parents et grands-parents si nous avions la grippe, pas de les éviter « au cas où » et pour une durée indéterminée, ce n’est en rien différent pour le coronavirus
• Je suis inquiet que la santé ne devienne un objet de communication belliqueuse et de conflit comme un autre, alors qu’elle devrait être une cause ultime de lutte dans le rassemblement.
• Je suis inquiet que notre système de santé, déjà en grandes difficultés, soit prochainement débordé par un afflux de malades au moindre signe de syndrome grippal. Ce sont alors toutes les autres maladies que nous ne pourrons prendre en charge. Un infarctus du myocarde ou une appendicite ce sont toujours des urgences, un virus rarement.
La couverture médiatique sur le coronavirus est très anxiogène et elle participe à l’affolement de chacun.
Cela conduit aux théories du complot les plus folles du genre, « ils nous cachent quelque chose».  Rien n’est obscur, c’est impossible en médecine dans ce monde du numérique ou la connaissance scientifique est immédiate et sans filtre.
Le coronavirus ne tue (presque) que les organismes déjà fragiles.
Je suis inquiet que ce minuscule être vivant ne fasse que dévoiler les immenses fractures et fragilités de nos sociétés. Les morts qui se compteront alors par millions seront ceux de l’affrontement des individus dans l’indifférence totale de l’intérêt collectif.

Gilbert DERAY
Hôpital Pitié-Salpêtrière, Paris
13-03-2020

"Libération" oferece edição

Num gesto de saudável agilidade, profissional e social, o Libération de hoje oferece a sua edição aos leitores, solicitando apenas a assinatura da respectiva newsletter diária — a edição de hoje inclui o New York Times (semanal, internacional).

"O amor — e o ódio — no tempo
do coronavírus"

Eis uma epidemia que, para além do seu poder devastador, vem "ajustar-se a algumas das assombrações mais lúgubres da época" — notável texto de Bernard-Henri Lévy (publicado originalmente na revista Le Point), ou como a sobrevivência humana envolve sempre a construção política do mundo.

segunda-feira, março 16, 2020

COVID-19: "o estado de inconsciência"

O que é, como funciona, esse "estado de inconsciência" que o Libération identifica na capa da sua edição de hoje? Que faz com que o domingo seja vivido com a naturalidade (?) testemunhada pela fotografia [aqui em baixo] do Quai des Célestins, em Paris?
Em boa verdade, talvez devamos repensar situações deste teor como qualquer coisa que transcende aquela pergunta muito básica: "será que muitas pessoas já nem acreditam nas informações mais essenciais, e também mais fundamentadas, do jornalismo sério?"
Dir-se-ia que os protagonistas desta inconsciência festiva perderam qualquer relação com o colectivo em que estão inseridos — são mesmo indiferentes a qualquer questão que envolva o contrato social em que, apesar de tudo, estão a viver. A palavra "inconsciência" é mesmo para ser tomada à letra: vazio sem consciência.

domingo, março 15, 2020

Lelouch revisita Lelouch

Jean-Louis Trintignant + Anouk Aimée
[1966 + 2019]
Em 1966, Claude Lelouch filmou Um Homem e uma Mulher, com Jean-Louis Trintignant e Anouk Aimée. Agora, em Os Melhores Anos da Nossa Vida, os actores regressam para interpretar as mesmas personagens e celebrar o romantismo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Março), com o título 'Memórias nostálgicas de um lendário filme de 1966'.

Vivemos um tempo de muitas nostalgias. E também de futurismos mais ou menos especulativos. Mas apesar da nossa ânsia de perscrutar o futuro — ou talvez por isso mesmo —, a nostalgia ajuda-nos a não deixar morrer as memórias, a reter as lições do tempo que passa.
Acontece agora com um filme tecido a partir de memórias de outro filme. Ou seja: o francês Claude Lelouch, 84 anos, faz Os Melhores Anos da Nossa Vida como um revisitação de Um Homem e uma Mulher, por certo o seu título mais emblemático, e também mais lendário, vencedor da Palma de Ouro de Cannes em 1966.
Em Um Homem e uma Mulher, Lelouch encenava a relação romântica das personagens interpretadas por Jean-Louis Trintignant e Anouk Aimée — ele um piloto de automóveis, ela uma assistente do mundo do cinema, ambos viúvos. Conhecem-se porque a filha dela e o filho dele frequentam a mesma escola, acabando por protagonizar uma convulsiva história de amor.


Em Os Melhores Anos da Nossa Vida, o par regressa, de novo interpretado por Jean-Louis Trintignant e Anouk Aimée — ela visita-o num lar para a terceira idade e o seu reencontro envolve um misto de desencanto e burlesco. Isto porque a passagem dos anos marcou de forma indelével os olhares e os corpos, ainda que a sua relação surja temperada por um desconcertante humor, habitado por um ancestral desejo de viver e partilhar afectos e ideias com o outro.


Apesar da sua imensa filmografia (este é o seu 49º filme), Lelouch fica quase sempre esquecido, para não dizer maltratado, quando se aborda a produção francesa dos anos 60/70. A sua obra, convenhamos, está longe de ter a importância histórica e simbólica dos seus contemporâneos da Nova Vaga (Godard, Truffaut, Rivette, etc.). O certo é que alguns dos seus filmes, a começar por Um Homem e uma Mulher, precisamente, são ilustrações ágeis de um contexto de muitas transformações nos modos de fazer cinema, a começar pela utilização de câmaras mais ligeiras, susceptíveis de gerar ficções marcadas por derivações de carácter documental.
Há, sobretudo, em Lelouch um gosto pelas singularidades dos actores que, a meu ver, neste nosso presente de muitas futilidades digitais, corresponde a um fundamental valor humano. Dito de outro modo: Os Melhores Anos da Nossa Vida [também revelado em Cannes] devolve-nos o prazer de contemplarmos a vulnerabilidade dos intérpretes face a uma câmara. É uma dádiva que Trintignant e Aimée assumem como uma celebração do amor pelo cinema.

Coronavírus [BBC]

A Torre Eiffel é um dos símbolos universais a exibir também os efeitos do surto do novo coronavírus — neste caso, as imagens e informações provêm da BBC.

sábado, março 14, 2020

Memórias de 2Pac

Na curta vida de 2Pac, aliás Tupac Shakur (1971-1996), Me Against the World, terceiro de uma discografia de quatro álbuns, ocupa um lugar emblemático, funcionando como espelho da sua existência atribulada (estava na prisão na altura do respectivo lançamento) e registo confessional, em particular na evocação da mãe — recordemos, aqui em baixo, o exemplo de Dear Mama.
Me Against the World chegou às lojas no dia 14 de Março de 1995 — faz hoje 25 anos.

A IMAGEM: Ruo Bing Li, 2020

RUO BING LI
Harper's Bazaar China
Março 2020

Haim em "The Tonight Show"

Do próximo álbum das Haim (24 Abril), já são conhecidos vários temas, incluindo The Steps e Summer Girl. Cantaram-nos agora no programa de Jimmy Fallon, The Tonight Show — renovadas lições pop, simplicidade & sofisticação.



sexta-feira, março 13, 2020

Liberdade [citação]

[ The Paris Review ]

>>> E se a minha noção de contenção e liberdade é medíocre, isso cria mais um problema real, problema pelo menos vagamente sentido por milhões de pessoas: a invenção da liberdade.

SUSAN SONTAG
Penguin, 2018

A IMAGEM: Madonna, 2020

Here I am — Flesh and Blood
instagram.com/madonna/
2 Março 2020

Tyrannosaurus Rex (antes dos T. Rex)

Antes de serem os T. Rex, chamaram-se Tyrannosaurus Rex. Óbvio? Sim, obviamente histórico. Como tal gravaram quatro álbuns, o último dos quais, A Beard of Stars, foi lançado no dia 13 de Março de 1970 — faz hoje 50 anos.
Do respectivo alinhamento, eis Elemental Child; em baixo, Salamanda Palaganda, do segundo álbum (Prophets, Seers & Sages: The Angels of the Ages, 1968), num registo da televisão francesa, a 27 de Junho de 1969.