quarta-feira, março 25, 2020

A utopia de Cannes

Por causa do COVID-19, o Festival de Cannes foi adiado (talvez para Junho/Julho). Lembramo-nos, por isso, da edição de 1968, o ano em que o certame começou… mas não acabou — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Março).

Em 1968, em França, o ministro da Cultura era André Malraux. Mais exactamente: ministro de Estado encarregado dos Assuntos Culturais. No dia 25 de março desse ano, na qualidade de delegado geral do Festival de Cannes, Favre Le Bret dirigiu uma carta a Malraux, convidando-o a presidir à abertura do certame, a 10 de maio, numa sessão de homenagem a Vivien Leigh, incluindo a projecção da nova cópia, em 70mm, de E Tudo o Vento Levou (1939), de Victor Fleming; em alternativa, Le Bret sugeria ao ministro que se deslocasse a Cannes para o encerramento oficial, duas semanas mais tarde, dia 24.
André Malraux
Por estes dias, estas são memórias recobertas por uma nostalgia amarga e doce. Porquê? Desde logo, porque aconteceu o impensável: Cannes/1968 não chegou ao fim… Agora, na convulsão global que estamos a viver por causa da pandemia do coronavírus, soubemos (quinta-feira, dia 19) que Cannes/2020 está adiado. E convenhamos que, embora reconhecendo o fulgor de tão nobre evento, parece quase impossível concretizar a hipótese formulada pela equipa do festival: “Várias opções estão a ser analisadas no sentido de preservar o acontecimento, das quais a principal seria um simples adiamento para Cannes, em finais de junho, princípio de julho de 2020.”
Lição paradoxal: com o encerramento de salas de cinema em todo o mundo, a actual crise, ainda que envolvendo como absoluta prioridade a saúde pública, não pode deixar de nos levar a especular sobre a conjuntura em que o cinema, arte ou indústria (aliás, arte e indústria), passou a existir. Este é, de facto, um tempo marcado pela tensão entre as formas clássicas de difusão dos filmes (as salas escuras, precisamente) e o crescimento exponencial do nosso consumo digital (as plataformas de “streaming”). Sintomaticamente, as últimas três edições de Cannes ficaram marcadas por um ziguezague de aproximações e rupturas entre a organização e a Netflix. E pressentia-se que 2020 seria (ou será) um novo e importante capítulo na respectiva evolução.
Escusado será dizer que, na história de Cannes, não há qualquer semelhança entre o drama cinematográfico e cinéfilo agora instalado e as convulsões do tempo de Malraux. O festival de 1968 arrancou numa altura em que as suas opções na área da gestão cultural estavam muito longe de ser consensuais. Em fevereiro desse ano, Malraux tentara afastar da direcção da Cinemateca Francesa o seu fundador, o lendário Henri Langlois, desencadeando uma reacção de tal modo enérgica de toda a profissão cinematográfica que se viu compelido a recuar (Langlois manteria o seu cargo até à morte, em 1977).
Isto sem esquecer que, em 1966, a possível interdição do filme A Religiosa, de Jacques Rivette, baseado na obra de Diderot, tinha colocado Malraux no centro de uma polémica que teve como expressão mais célebre a carta aberta que Jean-Luc Godard lhe dirigiu, apelidando-o de “ministro da Kultura” (o filme passara, curiosamente, na edição desse ano em Cannes, tendo chegado às salas francesas, depois de um agitado processo jurídico, no verão de 1967).
Mais do que tudo isso (e por causa de tudo isso), o encerramento do Festival de Cannes ficou como um dos episódios marcantes do Maio 68 francês. A abertura do certame com o clássico E Tudo o Vento Levou acabou por ter um perverso simbolismo, já que tudo o que aconteceu depois esteve longe de ser a ilustração do imaginário do “entertainment” segundo Hollywood.
Foi a 18 de maio, na projecção de Peppermint Frappé, de Carlos Saura, que eclodiu um protesto envolvendo nomes emblemáticos do cinema francês, incluindo Godard, François Truffaut e Claude Lelouch. Argumentando que a França estava a viver um capítulo dramático da sua história, com muitas greves e drásticas limitações nos transportes, os protagonistas dessa acção defenderam o imediato fim do festival, tendo, aliás, recebido o apoio de personalidades envolvidas no certame, incluindo três elementos do júri oficial: Monica Vitti, Roman Polanski e Louis Malle. A 19 de maio, ao meio-dia, a organização encerrava o festival e, por uma vez, Cannes ficou sem palmarés. Mais de meio século depois, somos confrontados com a possibilidade de nem sequer podermos ter algo parecido com essa “metade” de um festival… Reviver as gloriosas imperfeições de 1968 volta a ser uma utopia.