Convidado pelo produtor David O. Selznick, Alfred Hitchcock estreou-se na produção de Hollywood com Rebecca, adaptado do romance homónimo de Daphne Du Maurier — a estreia ocorreu há 80 anos, no dia 21 de março de 1940 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Março).
A memória corrente de Alfred Hitchcock (1899-1980) surge frequentemente marcada por um desconcertante equívoco: ele seria o símbolo perfeito dos classicismo de Hollywood, essa sofisticada arte narrativa concebida, fabricada e aplicada pelos autores nascidos nos EUA. É verdade que o “mestre do suspense” ocupa um lugar central na história de Hollywood. O certo é que foi apenas em 1955 que se tornou cidadão americano, tendo nascido em Inglaterra, aí criando o primeiro e fundamental capítulo da sua filmografia (mais de duas dezenas de longas-metragens, incluindo algumas mudas). O seu primeiro título “made in USA”, Rebecca, estreou-se há 80 anos, no dia 21 de março de 1940.
Ao longo das décadas de 40/50, Hitchcock assinou alguns dos filmes mais perfeitos, e também mais populares, da idade de ouro de Hollywood. Exemplos incontornáveis serão Difamação (1946), Janela Indiscreta (1954) e Vertigo (1958). No seu renovado fascínio, Rebecca não será um dos casos mais reveladores da sua visão do mundo, mas não deixa de ser o mais consagrado de toda a sua carreira — isto porque recebeu o Oscar de melhor filme de 1940 (tendo valido uma outra estatueta dourada a George Barnes, na categoria de melhor fotografia a preto e branco).
Como muitos outros criadores britânicos e, genericamente, europeus, Hitchcock partiu para os EUA em 1939, ano do início da Segunda Guerra Mundial. No seu caso, porém, a motivação surgiu antes do começo da guerra: David O. Selznick (1902-1965), personalidade fulcral nos anos de consolidação do cinema sonoro, convidou-o para integrar o seu estúdio — Selznick International Pictures —, sendo Rebecca a sua primeira tarefa de realizador [trailer].
O menos que se pode dizer é que a produção de Rebecca não foi um mar de rosas. Por um lado, Hitchcock tinha já apurado e depurado o seu “touch” no período inglês — através de títulos tão admiráveis como O Homem que Sabia Demasiado (1934) e Desaparecida (1938) —, encarando a adaptação do romance homónimo de Daphne du Maurier como uma sugestiva hipótese de continuar a explorar os limites e contradições de um clássico par romântico, para mais contando com Joan Fontaine e Laurence Olivier como protagonistas. Por outro lado, Selznick queria seguir o seu conceito de um cinema “maior que a vida”, servido por elementos de grande intensidade cenográfica e espectacular — convém lembrar, aliás, que no período de rodagem de Rebecca, Selznick ia gerindo a sua produção mais ambiciosa, E Tudo o Vento Levou, título que, em boa verdade, por si só, lhe iria garantir um lugar na história do cinema.
As desinteligências de Selznick e Hitchcock entraram para a mitologia de Hollywood como sintoma revelador das tensões “produtor/realizador”. Para Selznick, o retrato da mulher (Fontaine) que se casa com o aristocrata (Olivier) devia seguir a lógica de um conto gótico em que Rebecca, a primeira mulher do protagonista, falecida em circunstâncias mal esclarecidas, seria o fantasma de todas as relações. Hitchcock não negava tal possibilidade — a figura de Rebecca é mesmo uma perturbante ausência… sempre presente —, ainda que apostando num registo mais “psicológico” em que a personagem de Mrs. Danvers (Judith Anderson), a governanta que servira Rebecca, emerge como figura de metódica ambivalência sexual.
Feitas as contas, não nos podemos queixar: Rebecca não será uma concretização emblemática dos valores de espectáculo segundo Selznick, mas também não é, de modo algum, um Hitchcock banal. Os dois continuaram ligados durante os sete anos estipulados pelo contrato inicialmente estabelecido, ainda que a sua aliança só tenha gerado mais dois filmes: A Casa Encantada (1945) e O Caso Paradine (1947).
Com Rebecca, Hitchcock obteve a sua primeira nomeação para o Oscar de melhor realizador, proeza que repetiria com Um Barco e Nove Destinos (1944), A Casa Encantada, Janela Indiscreta e Psico (1960) — nunca ganhou; em 1968, recebeu o prémio honorário Irving G. Thalberg [video].