terça-feira, março 31, 2020

"Western Stars" — o filme

Aos 70 anos, Bruce Springsteen apostou em recriar o seu álbum Western Stars através de um belo concerto que funciona também como uma viagem introspectiva e confessional: o resultado é um filme já disponível em DVD e Blu-ray — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Março).

Nestes tempos tão singulares e dramáticos, o filme Western Stars, de e com Bruce Springsteen, não chegou às salas portuguesas. Mas não por causa da conjuntura pandémica que estamos a viver: a sua edição directa em DVD (e também Blu-ray, aliás numa transcrição de imaculada qualidade) já estava prevista, não se repetindo, assim, o que aconteceu no mercado dos EUA, onde o filme cumpriu uma breve passagem pelo circuito tradicional de exibição (em outubro/novembro de 2019).
Estamos perante um objecto cujo propósito esquemático — registar as canções de um novo álbum — não deixa de ser formalmente sedutor, além de comercialmente atípico. Springsteen apostou em revisitar os temas de Western Stars (o seu 19º álbum de estúdio, lançado em junho do ano passado), num registo que não corresponde à convencional abordagem de um “making of”: por um lado, descobrimo-lo num concerto de características muito especiais, recriando as 13 canções do álbum (desembocando na evocação final de Like a Rhinestone Cowboy, tema clássico de Glen Campbell); por outro lado, há nesta cândida deambulação a vontade explícita de desenhar um esboço auto-biográfico, em particular percorrendo algumas memórias do seu prolongado período de depressão. O facto de Springsteen assinar a realização do filme (partilhada com Thom Zimny, velho amigo e colaborador) é, afinal, um sintoma claro da sua postura confessional.


“Passei 35 anos a tentar aprender como me libertar das componentes destrutivas da minha pessoa”, confessa o autor de Born in the USA, acrescentando: “E ainda tenho dias em que luto com isso.” Pontuando as imagens do filme, tais palavras são, afinal, um eco da singela dimensão confessional que, porventura com alguma surpresa, tínhamos descoberto no livro auto-biográfico Born to Run (edição portuguesa: Elsinore, 2016). Através das histórias que as suas canções têm contado, muitas vezes encenando personagens à procura da sua própria identidade, Springsteen encenava também as angústias e o desejo de redenção do seu destino.
Western Stars é um reflexo vivo de tudo isso, uma verdadeira reinvenção identitária, sustentada por uma magnífica performance ao vivo. Nesta perspectiva, parece existir um efeito de continuidade entre esta experiência cinematográfica e o espectáculo “Springsteen on Broadway”, também ele de características auto-biográficas, que esteve em cena no Walker Kerr Theatre, Nova Iorque, em 2017/18, vindo a ser distinguido com um prémio Tony (o respectivo registo está disponível num álbum homónimo, lançado em finais de 2018).
Tudo se passa no celeiro da quinta de Springsteen, no estado de New Jersey, próximo da cidadezinha de Long Branch, onde ele nasceu há pouco mais de 70 anos (a 23 de setembro de 1949). Em boa verdade, trata-se de um celeiro, também ele atípico, transfigurado em requintada sala de concertos, com uma particularidade que o proprietário destaca com orgulho: a muito bem conservada estrutura de madeira favorece uma sonoridade de rara pureza e envolvimento.
Com o acompanhamento de uma orquestra de 30 elementos (predominam os violinos, tão essenciais ao belo som “sinfónico” do álbum Western Stars), Springsteen lidera um brilhante conjunto de músicos — incluindo a sua mulher, Patti Scialfa, ela própria uma talentosa intérprete de country-rock —, capazes de proporcionar um evento de sofisticada competência profissional sem alienar a sua vibração intimista. O ziguezague entre canções e extractos de filmes de família (incluindo um delicioso momento burlesco na companhia de Scialfa, por certo da época do seu casamento, em 1991) transforma Western Stars num pessoalíssimo bloco-notas, partilhado com o espectador. Fica uma sensação amarga e doce: o filme merecia ser visto no grande ecrã de uma sala escura (até pelas qualidades da direcção fotográfica, assinada por Joe DeSalvo), mas não se pode ter tudo.