domingo, setembro 30, 2018

Aretha Franklin — um retrato inédito

Eis um retrato inédito de Aretha Franklin, obtido em 1977, em Los Angeles, na casa da cantora, pelo fotógrafo Bruce W. Talamon — ele próprio recorda, na revista Time, as circunstâncias em que nasceu tão tocante imagem.
Nas décadas de 1970/80, Talamon era um jovem fotógrafo afro-americano do jornal SOUL. Com acesso a espectáculos e bastidores, foi uma testemunha da idade de ouro da soul, R&B e funk, registando imagens de artistas, além de Aretha Franklin, como Earth, Wind & Fire, Marvin Gaye, Diana Ross, Gil Scott-Heron, James Brown ou The Jackson Five. Agora, com chancela da Taschen, o seu excepcional portfolio surge no álbum Soul. R&B. Funk. Photographs 1972-1982.

sexta-feira, setembro 28, 2018

"Slow Disco", ainda mais slow

Belíssima canção: Slow Disco. E momento emblemático dos concertos de St. Vincent na sequência do lançamento do álbum Masseduction. De tal modo que, a certa altura, decidiu acelerar a sua estrutura, tendo nascido Fast Slow Disco. Agora, chegou a altura de conter a velocidade, celebrar uma lentidão mais sensual do que nunca e propor uma versão (ainda mais) encantatória — aí estão os sons de Slow Slow Disco.

quinta-feira, setembro 27, 2018

António Escudeiro (1933 - 2018)

É um nome fundamental e emblemático na história da arte fotográfica no interior do cinema português: António Escudeiro faleceu no dia 21 de Setembro, em Lisboa — contava 85 anos.
Como outros profissionais directa ou indirectamente ligados à geração do Cinema Novo, foi, em parte, na publicidade que encontrou um contexto especial de aprendizagem e experimentação. Assinou a fotografia de títulos como Os Demónio de Alcácer-Quibir (1977) e Kilas, o Mau da Fita (1980), ambos de José Fonseca e Costa, Antes do Adeus (1977), de Rogério Ceitil, O Rei das Berlengas (1978), de Artur Semedo, ou Matar Saudades (1988), de Fernando Lopes. Este último, a meio caminho entre ficção e documentário, pode servir de símbolo exemplar da sua capacidade para trabalhar com fontes de luz natural, em especial, justamente, no domínio documental — fotografou, por exemplo, Ma Femme Chamada Bicho (1978), de José Álvaro Morais, sobre Maria Helena Vieira da Silva, e A Ilha de Moraes (1984), sobre Wenceslau de Moraes, uma realização de Paulo Rocha paralela ao seu A Ilha dos Amores (1982).
No trabalho de Escudeiro como realizador, por vezes assumindo também as tarefas de direcção fotográfica, destaca-se Adeus, Até Amanhã (2007), filme de regresso aos cenários de Angola onde viveu a primeira metade da sua vida — nasceu a 2 de Julho de 1933, na cidade de Lobito. Entre os títulos que dirigiu incluem-se também, por exemplo, Mombasa e Goa (ambos de 1980), e ainda Para Josefa (1981), produção televisiva sobre Josefa d'Óbidos. A sua derradeira realização seria a curta-metragem de ficção Velocidade de Sedimentação (2008). Era sócio honorário da Associação de Imagem Portuguesa [AIP].

>>> Obituário no Diário de Notícias.
>>> Trailer de Adeus, Até Amanhã.


>>> Cópia de Ma Femme Chamado Bicho disponível no YouTube.

Ian McEwan, o realismo e os filmes

Ian McEwan
A estreia de A Balada de Adam Henry, baseado num romance de Ian McEwan, justifica a evocação de um filme marcante na abordagem da era Thatcher — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Setembro), com o título 'O pequeno teatro da política'.

A estreia de A Balada de Adam Henry, o belo filme de Richard Eyre inspirado no romance homónimo de Ian McEwan (ed. Gradiva), adaptado pelo próprio, recorda-nos um valor que tantas vezes esquecemos: há uma tradição do cinema britânico, intransigentemente realista, que sempre se empenhou em lidar com as convulsões sociais. Não para gerar grandes abstracções dramáticas, antes para nos mostrar como os verdadeiros dramas podem ser lidos e compreendidos nos seus lugares mais restritos e fechados, numa palavra, individuais.
Lembrei-me, assim, da primeira realização cinematográfica de Eyre, também com argumento de McEwan (neste caso, escrito directamente para cinema). Foi há 35 anos, em 1983. Tem o sugestivo título original The Ploughman’s Lunch, ou seja, à letra, “O almoço do lavrador”. A expressão, corrente na língua inglesa, surge no filme associada a um truque publicitário: trata-se de conceber uma campanha para vender ao consumidor urbano refeições que, através de um simbolismo paternalista, são associadas a uma “verdade” popular.
Tal mentira simbólica funciona como uma espécie de espelho da falsidade moral de um jornalista da BBC, de seu nome James Penfield (interpretado pelo excelente Jonathan Pryce), tentando singrar num contexto histórico marcado por duas componentes fundamentais: a Guerra das Malvinas e a consolidação apoteótica de Margaret Thatcher no poder. Em jogo estão, afinal, as possíveis ambivalências ou perversidades no tratamento jornalístico dos factos. Daí o título com que The Ploughman’s Lunch foi lançado nas salas portuguesas: A Verdade dos Factos.
Lembrei-me, sobretudo, de uma sequência admirável, capaz de bater aos pontos muitas “ousadias” que se vão fazendo através do suposto cruzamento de “documentário” e “ficção”. Assim, a certa altura, acompanhado por dois colegas de trabalho, Penfield vai fazer a cobertura jornalística da Conferência do Partido Conservador, em Brighton (Outubro 1982) [quadro de Paul Brason]. Mas não se trata de encenar algures, porventura em estúdio, alguns momentos dessa cobertura, alternando-os com imagens da própria conferência. Nada disso: Eyre arranjou maneira de colocar os seus actores no interior do cenário da conferência, instalando uma fascinante duplicidade: continuamos a seguir a história que o filme nos está a contar, experimentando, em absoluta simultaneidade, a sensação de recebermos materiais de reportagem da própria conferência (incluindo imagens de Thatcher — ver a partir de 03m 48s).


Admirável agilidade realista, invulgar pragmatismo filosófico, do grande cinema britânico: o que assim se mostra é a condição prática da política como pequeno teatro e, nessa medida, o poder de representação que o cinema lhe pode contrapor.
Não se trata de favorecer qualquer espontaneísmo banalmente televisivo, antes de mostrar que, quando contamos histórias, não estamos a afastar-nos do real: de forma mais ou menos consciente, integramo-lo nas formas decorrentes do nosso trabalho, quer dizer, da nossa responsabilidade narrativa — grande lição de cinema, preciosa pedagogia sobre a singularidade das imagens e as muitas faces da sua existência.

quarta-feira, setembro 26, 2018

Helena Almeida (1934 - 2018)

Pintura habitada
(1975)
Nome fundamental da arte portuguesa do último meio século, Helena Almeida faleceu no dia 25 de Setembro, na sua casa de Sintra — contava 84 anos.
O título da sua exposição em Serralves, 2015, pode resumir a subtil intensidade da sua obra: 'A minha obra é o meu corpo, o meu corpo é a minha obra'. Por um lado, da pintura à fotografia, o seu universo questiona incessantemente essa ambivalência moderna que se desenha entre corpo e identidade, de algum modo ecoando o princípio de trabalho de Roland Barthes, quando definia o prazer do texto como esse momento "em que o meu corpo vai seguir suas próprias ideias, porque o meu corpo não tem as mesmas ideias que eu"; por outro lado, expondo-se como modelo dos seus "retratos pintados", num jogo de muitos fragmentos corporais, Helena Almeida não parou de questionar a possibilidade de dizer "eu", de alguma maneira expondo a clivagem primordial entre natureza e linguagem — por alguma razão, ela gostava de lembrar que, mesmo havendo um desejo de auto-representação nos seus objectos, isso não significa que eles sejam uma colecção de auto-retratos.

>>> Obituário no Diário de Notícias.
>>> Página sobre Helena Almeida no Museu Calouste Gulbenkian.
>>> Video de apresentação de uma exposição em Paris (Jeu de Paume, 2016), comissariada por João Ribas e Marta Moreira de Almeida.


Sem título
(2004)
Seduzir
(2002)

"Libération" suspende comentários dos leitores

1. Talvez não tenha sido a via mais filosófica para encarar o problema, mas aconteceu. E ainda bem: há poucas semanas, na sequência de um problema técnico, o Libération tinha dado conta daquilo que seria uma momentânea ausência de comentários dos leitores; agora, o jornal francês veio anunciar que o problema técnico (que persiste) não explica tudo: porque "os comentários mais interessantes são muitas vezes anulados por uma enxurrada de comentários menos interessantes, ou que simplesmente nada têm a ver com o assunto", a redacção decidiu suspender a sua publicação, remetendo uma nova resolução para "daqui a alguns meses".

2. É um gesto importante, tanto no plano jornalístico, como em termos simbólicos. Por uma razão dialéctica: primeiro, manter uma atitude de abertura à pluralidade de pontos de vista de que se faz a dinâmica do tecido social constitui um valor intrínseco da imprensa no interior de uma democracia; segundo, tal abertura não pode ceder — em última instância, anulando-se — através do favorecimento pueril de um espaço cego de circulação de "opiniões" em que a irresponsabilidade argumentativa, o anti-humanismo militante ou a mais cruel estupidez comandam todas as formas de descrição e percepção da complexidade do mundo à nossa volta.

3. Ninguém terá uma solução mágica para gerir o dramatismo desta conjuntura. O certo é que não nos fará mal reconhecer que ninguém, dos profissionais do jornalismo aos leitores, se situa fora dela e das suas dúvidas mais delicadas. Por isso mesmo, a atitude do Libération envolve um realismo que importa sublinhar e saudar. A saber: o liberalismo fútil promovido pela ideologia fundadora das redes (ditas) sociais não basta para lidarmos com o labirinto de factos e relações de que é feito o nosso planeta mediático. Talvez seja tempo de pensar que a inteligência não é um adereço pretensioso, mas sim um essencial instrumento ideológico.

segunda-feira, setembro 24, 2018

A sociedade do Google

Keir Dullea
2001: ODISSEIA NO ESPAÇO (1968)
Afinal, quando acedemos a toda a “informação do mundo”, que tipo de conhecimento estamos a construir através do Google? Larry Page será um herdeiro dos enciclopedistas do século XVIII? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Agosto), com o título 'O algoritmo da felicidade'.

Últimos dias do mês de Agosto do glorioso ano de 2018. Consulto o Google Play e verifico que posso escolher entre cinco áreas temáticas: aplicações, filmes, música, livros e dispositivos. Nunca o utilizei, não tendo sequer fornecido ao sistema qualquer informação sobre eventuais formas de pagamento dos respectivos conteúdos. Em todo o caso, ao visitar a área dos filmes, depois de duas zonas identificadas por expressões inglesas — “Top Selling Movies” e “New Releases” —, deparo com uma oferta em português: “Recomendados para Si” [link actual].
Apesar do meu distanciamento, o Google Play tem alguma ideia sobre quem eu sou. Ou, pelo menos, sobre os filmes que quero ver. O título que encabeça a lista de “recomendações” não podia ser mais eloquente: Rampage – Fora de Controlo, “acção e aventura” em que Dwayne Johnson enfrenta George, o gorila gigante que era seu amigo, mas que se tornou violento devido a experiências genéticas...
A lista prossegue mais ou menos no mesmo tom (com banais notas informativas, umas em inglês, outras num pavoroso português com sotaque brasileiro), mas há que reconhecer-lhe uma festiva diversidade. Assim, o Google Play recomenda-me A Forma da Água, a par, por exemplo, de As Cinquenta Sombras Livre (aliás, Cinquenta Tons de Liberdade), neste caso prometendo um fascinante desenlace: “(...) novas ameaças podem atingir um final feliz, antes mesmo que ele comece.” Não sei se percebi, mas não é essa questão.
Em que cultura mediática nos obrigam a viver? Como é possível que o prazer cinéfilo tenha sido reduzido a este deprimente caos informativo? Com o seu aparato global de hardware e software, entidades como o Google estão longe de existir apenas como instrumentos de “pesquisa”. Em boa verdade, a sua acção não pode ser dissociada da definição de um novo modelo de pessoa e, em particular, da actividade cognitiva.
Como é que o Google me define como indivíduo? Ou será que é suposto não perguntar e seguir em frente? Devo entregar-me como um sonâmbulo à abundância da oferta, aceitar a boa vontade do sistema de busca, gastar 3,99 € no aluguer do filme e ficar a saber se Dwayne Johnson consegue reconquistar o coração do seu bem amado gorila?...

“Acessível e útil”

Evitemos o alarido tão típico da Net: não se trata de reduzir o Google a uma qualquer dicotomia “pró/contra”. Seria como demonizar as maravilhas existenciais que o automóvel nos concedeu ao longo de mais de um século — afinal, sabemos que não podemos omitir o automóvel das nossas ansiosas reflexões sobre a poluição do planeta.
Na sua universalidade, omnipresença e omnipotência, o Google existe como expressão contemporânea do desejo de conhecimento enciclopédico. Relembremos as palavras de um dos seus fundadores, Larry Page: “No essencial, o nosso objectivo é organizar a informação do mundo, tornando-a universalmente acessível e útil” (peço desculpa pela perversão, mas todas as citações foram obtidas através do... Google).
Eis uma afirmação que, até pela sinceridade do seu tom panfletário, suscita uma dúvida básica. Isto é, sobre as bases de onde partimos: até que ponto, ou de que modo, a mera acumulação de informação é geradora de conhecimento?
Fazemos, por exemplo, uma pesquisa sobre um dos registos emblemáticos dos Beatles, “White Album” (à beira de completar 50 anos), e o computador diz-nos que gastou 0,42 segundos para encontrar 2.100 milhões de resultados... Depois de tão vertiginosa experiência, que sabemos — e como sabemos — sobre o álbum em questão? O romantismo de While My Guitar Gently Weeps passou a integrar a nossa visão multifacetada do amor entre os humanos? Será que reconhecemos a estrutura agreste de Happiness Is a Warm Gun como mais ousada do que muitas experiências do hip hop do século XXI? Sabemos, ao menos, que em 2015 o tema Revolution foi recriado numa versão absolutamente genial para o genérico final do filme de animação dos Mínimos?...
Para Page, tais perguntas serão irrelevantes. O paradoxo tecnológico em que se coloca envolve um conceito instrumental do próprio trabalho humano: “Sempre acreditei que a tecnologia deve fazer o trabalho difícil — descoberta, organização, comunicação —, de modo que os utilizadores possam fazer aquilo que os torna mais felizes: viver e amar, em vez de arranjar confusões com computadores irritantes! Isso significa que os nossos produtos trabalham sem se dar por eles.”
Sem se dar por eles? Convenhamos que é modéstia a mais para um sistema de busca que regista 3.500 milhões de pesquisas diárias... O que está em causa não é “tudo o que o Google me permite fazer”. Trata-se, isso sim, de colocar uma pergunta técnica e existencial: “Como sou através do Google?” Ou ainda: “No mundo global, colectivizado e generalista do Google, que significa dizer eu?”

Que sistema social?

Será Larry Page um herdeiro dos enciclopedistas do século XVIII e, em particular, do seu racionalismo e espírito de tolerância?
Digamos que há nele uma mesma vontade, ética e política, de partilha de saber e engrandecimento dos outros: “O homem mais feliz é aquele que dá felicidade ao maior número de outros homens”, escreveu Denis Diderot (1713-1784), resumindo a vocação da obra monumental — Encyclopédie, ou Dictionnaire Raisoné des Sciences, des Arts et des Métiers (35 volumes, 1751-1772) — cuja organização coordenou com Jean le Rond d’Alembert. Com uma diferença que está longe de ser secundária. Para Diderot e, de um modo geral, para os mestres do Iluminismo, há (ainda) uma natureza que se perfila como pano de fundo dos gestos humanos e da sua dimensão moral: “Nenhum homem recebeu da natureza o direito de comandar os outros.” No caso de Page, a sensualidade multifacetada da natureza deu lugar à gélida precisão dos algoritmos.
Denis Diderot
A sua lei é: não comandar ninguém, celebrando o algoritmo como a comovente encarnação da neutralidade cognitiva. Para além do determinismo redentor do seu apelido (page=página), foi também Page que criou o principal algoritmo aplicado nas pesquisas Google (PageRank), determinando a importância das páginas disponíveis na Net e, por fim, hierarquizando-as para, de alguma maneira, consumarem o milagre de corresponder às nossas pesquisas. Se Dwayne Johnson e o seu gorila gigante me aparecem como hipótese de consumo, isso significa apenas que o algoritmo se preocupa com a minha felicidade — mesmo que isso me deixe indiferente, eventualmente indignado, como é que eu dialogo com as boas intenções de um algoritmo?
Que sistema social estamos a construir através deste saber informático e informatizado? A pergunta justifica-se tanto mais quanto há, pelo menos, duas gerações que interiorizaram a “ideia” de que o conhecimento se define apenas pelo número de clicks a que nos obriga — sendo essa obrigação apresentada como expressão de uma natureza inquestionável.
Dir-se-ia que à clássica concepção vertical do saber, com entidades e categorias hierarquizadas, sucedeu um mundo virtual de monótona horizontalidade: tudo está disponível no mesmo plano, no mesmo território homogéneo, enorme planície de links regidos por algoritmos. Já não é ficção científica — tornou-se modelo social.
Na minha memória, reaparece uma imagem com 50 anos (trinta anos anterior ao nascimento do Google). É o rosto do astronauta interpretado por Keir Dullea em 2001: Odisseia na Espaço, de Stanley Kubrick. Face ao sadismo do computador HAL 9000 — disposto a sacrificar as vidas humanas para consumar os objectivos do seu programa —, o pânico do adulto cruza-se, nos olhos de Dullea, com a magoada nostalgia da infância.
Para que conste: posso rever o filme de Kubrick no Google Play por 2,99 €, menos um euro que o gorila de Dwayne Johnson. Enfim, não me posso queixar: a democracia digital oferece a inteligência a preço de saldo.

* * * * *

>>> 'Is Google Making Us Stupid?': ensaio de Nicholas Carr (The Atlantic, Julho/Agosto 2008).
>>> 'Silicon Valley has designed algorithms to reflect your biases, not disrupt them': ensaio de Ramesh Srinivasan (QUARTZ, 27 Fevereiro 2017).
>>> 'How language shapes the way we think': apresentação de Lera Boroditsky (TED Talks, Novembro 2017).

domingo, setembro 23, 2018

Polónia — cinefilia & história

Com o brilhante Guerra Fria, de Pawel Pawlikowski, redescobrimos as convulsões históricas das décadas de 1950/60 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Setembro), com o título 'Uma guerra muito fria vivida em tom polaco'.

Para o melhor e para o pior, a nossa memória cinéfila da história do século XX está dominada pelas referências dos filmes de Hollywood. E são muitas, muitas vezes admiráveis (não se trata de favorecer qualquer anti-americanismo primário). Acontece que não podemos esquecer a diversidade e riqueza dessa mesma memória no interior das mais diversas cinematografias europeias — com a estreia de Guerra Fria, produção polaca assinada por Pawel Pawlikowski, aí temos mais uma bela ilustração de tal dinâmica.
O título do filme tem qualquer coisa de conciso, mas também amargamente irónico. Assim, a história das relações entre Zula (Joanna Kulig) e Wiktor (Tomasz Kot) começa por ser um romance discreto, ligeiramente perverso, nascido no universo das juventudes musicais comunistas, na década de 50. Dito de outro modo: a Guerra Fria entre o Bloco de Leste e o Ocidente não surge “ilustrada” pelas relações amorosas — são estas que, através das mais insólitas e inesperadas nuances afectivas, acabam por conter e, num certo sentido, ampliar o perturbante eco de um tempo de muitas convulsões políticas e militares.


É caso para dizer que, de facto, deparamos com a frieza que pode contaminar, porventura aniquilar, as mais genuínas relações humanas. Prolongando a austeridade do seu título anterior, Ida (2013), Pawlikowski consegue manter o fascínio desse equilíbrio instável: por um lado, penetramos no labirinto de uma intimidade que resiste a desmontar os seus enigmas; por outro lado, tudo se passa como se os mais singulares elementos psicológicos funcionassem como bisturis da história colectiva.
Enfim, convém não esquecer que Pawlikowski é herdeiro de toda uma tradição que envolve tanto a crueza épica de um cineasta como Andrzej Wajda (1926-2016), através de títulos como O Homem de Mármore (1977) e O Homem de Ferro (1981), como o realismo obsessivo de Krzysztof Kieslowski (1941-1996), em particluar na sua série sobre os pecados mortais. Com o citado Ida, Pawlikowski já ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro; agora, está de novo na corrida, uma vez que Guerra Fria é, este ano, o representante oficial da Polónia a uma nomeação nessa mesma categoria.

sábado, setembro 22, 2018

* Um "alien" chamado David Bowie
— SOUND + VISION Magazine, FNAC [hoje]

Está a chegar uma nova caixa retrospectiva de David Bowie: Loving the Alien [1983-1988]. Será o nosso ponto de partida para mais uma sessão na FNAC, voltando a evocar uma personalidade multifacetada, num tempo de eclosão dos telediscos e das grandes digressões inter-continentais.

* FNAC / Chiado: hoje, 23 de Setembro, 18h30

sexta-feira, setembro 21, 2018

Ser ou não ser robot

Com Ewan McGregor e Léa Seydoux nos papéis centrais, Zoe é um filme capaz de relançar de forma inventiva alguns modelos clássicos da ficção científica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Setembro), com o título 'Os robots também amam'.

Decididamente, Drake Doremus (californiano, 35 anos) tem estado a pagar o preço da singularidade dos seus filmes. Recordo, em particular, o belíssimo Iguais (2015), filme que, apesar de contar com Kristen Stewart no seu elenco, passou quase despercebido na maior parte dos mercados (incluindo Portugal).
Quem viu Iguais, recordar-se-á das suas subtis variações sobre matrizes da ficção científica: tudo acontecia num mundo perversamente utópico em que o “progresso” se media pela organização das relações humanas para além desses factores incómodos que seriam as emoções... Agora, através de Zoe, confirmamos que há, de facto, um impulso futurista no trabalho de Doremus, por certo indissociável do seu gosto pela concepção narrativa — mais uma vez, ele surge como co-autor do argumento (em associação com Richard Greenberg).
O essencial acontece em torno de Zoe (Léa Seydoux) e Cole (Ewan McGregor). Enquanto criador de robots, Cole vai experimentar a perturbação imensa que pode nascer do facto de os novos seres mecânicos serem concebidos, não apenas para ajudar os humanos em muitas tarefas do dia a dia, mas também para com eles partilharem os mais convulsivos estados de alma — incluindo o amor e os seus enigmas.
Pensando apenas em produções recentes, não podemos deixar de aproximar Zoe de Ex Machina (2014), filme de Alex Garland com Alicia Vikander no papel central, lembrando também o relançamento destas temáticas no universo televisivo através da série Westworld, criada em 2016 por Jonathan Nolan e Lisa Joy. Em cena está, afinal, um velho assombramento, de uma só vez técnico e filosófico: poderão os produtos da ciência sobrepor-se ao poder dos seus criadores humanos?
Provavelmente, em Iguais, o trabalho de Doremus era mais controlado e homogéneo. Seja como for, perpassa por Zoe uma ambivalência com tanto de fascinante como de inquietante: os corpos, gestos e comportamentos dos robots surgem como um espelho cristalino da própria condição humana. Faz medo. E apela ao romantismo que ainda saibamos celebrar.

quinta-feira, setembro 20, 2018

Da vida e morte dos pandas

Quando nasce um panda, normalmente nascem dois... E, a maior parte das vezes, só um sobrevive: a mãe tem dificuldade em alimentar os dois recém-nascidos, pelo que tende a descurar um deles, desse modo garantindo a sobrevivência do outro. No Chengdu Research Base of Giant Panda Breeding, na província de Sichuan, na China, essa é uma realidade bem conhecida — e que os cientistas e tratadores tentam contrariar. De tal modo que se ocupam das mães que têm dois gémeos, trocando regularmente os seus rebentos (cerca de dez vezes por dia), de modo a que ambos possam resistir. É um admirável labor de sofisticação científica, dedicação humana e água com mel... Podemos descobri-lo através de um video divulgado pela BBC, com narração de David Attenborough.

Marceline Loridan-Ivens (1928 - 2018)

Cineasta e escritora, Marceline Loridan-Ivens reflecte na sua obra as memórias pessoais do Holocausto — este obituário foi publicado no Diário de Notícias (19 Setembro), com o título 'Marceline Loridan-Ivens: morte de uma resistente'.

Marceline Loridan-Ivens faleceu no dia 18 de Setembro, em Paris, contava 90 anos. No domínio cinematográfico, o seu nome é, antes do mais, indissociável daquele que foi o seu segundo marido, o holandês Joris Ivens (1898-1989), figura tutelar da história do documentarismo. Com ele realizou títulos tão marcantes como Le 17 Parallèle (1968), sobre os habitantes da “zona desmilitarizada” durante a guerra do Vietname e os seus modos de sobrevivência face aos bombardeamentos do exército dos EUA, ou Comment Yukong Déplaça les Montagnes, uma série de 12 filmes sobre a Revolução Cultural na China de Mao Tsé-Tung, rodados entre 1972 e 1976.
Num plano mais pessoal, realizou La Petite Prairie aux Bouleaux (2003), com Anouk Aimée, sobre uma francesa nascida numa família judaica, sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz. A evocação do Holocausto envolve, afinal, uma dimensão eminentemente auto-biográfica, uma vez que Marceline Loridan-Ivens sobreviveu, ela própria, ao encarceramento nos campos de Auschwitz, Bergen-Belsen e Theresienstadt.
Nasceu em Épinal, a 19 de Março de 1928, de seu nome Marceline Rozenberg, no seio de uma família judaica proveniente da Polónia. Aderiu à Resistência, na sequência da entrada dos nazis em território francês. Juntamente com o pai, foi capturada pela Gestapo, em 1943, tendo sido enviada para Auschwitz a 13 de Abril de 1944, no mesmo comboio em que seguiu Simone Veil (1927-2017). Recuperou a liberdade a 10 de Maio de 1945, quando o exército soviético chegou a Theresienstadt. Numa entrevista recente, resumiu a sua experiência, dizendo que “não sabíamos se íamos sair pela chaminé ou pela porta”.
Marceline Loridan-Ivens surge, ela própria, no filme Chronique d’un Été (1961), realizado por Jean Rouch e Edgar Morin, num célebre monólogo, na Praça da Concórdia, em Paris, evocando as deportações durante a Segunda Guerra Mundial. Esse é um título marcante do período de afirmação estética e social da Nova Vaga francesa.
Tratou as memórias dos campos da morte em dois livros, ambos escritos em colaboração com a jornalista e ensaísta Judith Perrignon. O primeiro, Et tu n’est pas revenu, surgiu em 2015, tendo-lhe valido o Prémio Jean-Jacques Rousseau; o segundo, L’amour après, foi publicado no passado mês de Janeiro — esta entrevista, no programa “La Grande Librairie”, da France 5, aconteceu por essa altura (legendas disponíveis em várias línguas, incluindo português).


>>> Obituário no jornal Le Monde.

quarta-feira, setembro 19, 2018

terça-feira, setembro 18, 2018

Burt Reynolds não foi “famoso”

Quem se lembra de Burt Reynolds? Ou melhor, que memórias passámos a cultivar, que memórias optamos por silenciar? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Setembro).

Há dias, no seu programa The Late Show (SIC Radical), Stephen Colbert proferiu algumas breves palavras de homenagem a Burt Reynolds (falecido a 6 de Setembro, contava 82 anos), dizendo que tinha a sensação de que estávamos perante “o fim de uma época”.
Não era um banal elogio artístico. Afinal de contas, convenhamos que, a par de filmes admiráveis como Fim de Semana Alucinante (1972), de John Boorman, ou Jogos de Prazer (1997), de Paul Thomas Anderson, há muitos títulos irrelevantes entre os mais de 150 em que Reynolds participou. Nem se tratava de reduzir o actor às suas proezas nas bilheteiras, mesmo se Colbert não se esqueceu de sublinhar que ele foi um dos líderes do mercado cinematográfico ao longo da década de 70.
O que importava lembrar era o facto de Reynolds corresponder a um modelo de estrela que nada (mas mesmo nada) tem a ver com os novos conceitos televisivos de “celebridade”, esses conceitos de celebração da superficialidade e do fútil que, entre nós, pertencem aos chamados “famosos”.
A questão não está em demonizarmos a televisão e as suas potencialidades expressivas — aliás, uma parte significativa da filmografia de Reynolds é de raiz televisiva. Acontece que ele não foi exactamente uma figura que se distinguisse por aparecer em eventos “sociais”, copo de whisky na mão, proclamando um qualquer soundbyte sem pés na cabeça para ter direito a 15 segundos de presença televisiva. Bem pelo contrário: melhor ou pior, através de filmes muito bons ou muito maus, Reynolds foi um ser do ecrã da sala escura, esse ecrã vocacionada para ser maior que a vida.
Escusado será dizer que o desabafo de Colbert é também revelador de um estado de coisas visceralmente americano. Vive-se um tempo de pingue-pongue de frases curtas e ideias escassas de que os “tweets” de Donald Trump se tornaram a matriz de linguagem, o palco universal e o enquadramento ideológico. Dir-se-á que Reynolds era um homem de sensibilidade conservadora... E depois? Será preciso acrescentar que não é isso que aqui está em causa, mas sim o poder enfático de ser imagem sem deixar de ser humano.

segunda-feira, setembro 17, 2018

Maupassant & Ophüls

Mais clássicos franceses a marcar a exibição do Verão/Outono: esta semana, o o destaque vai para Max Ophüls — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Setembro), com o título 'Maupassant reinventado pelo cinema'.

As reposições de filmes clássicos franceses constituem um dos principais acontecimentos deste Verão cinematográfico (até 10 de Outubro, em Lisboa e Porto, respectivamente no Espaço Nimas e no Teatro Campo Alegre). Assim se prova, afinal, que a memória é um valor actual, não uma acumulação de referências pitorescas para evocar em efemérides mais ou menos estereotipadas...
Entre os títulos que surgem esta semana, O Prazer (1952), de Max Ophüls (1902-1957), pode servir de matriz de um cinema clássico cujos ecos persistem no imaginário cinéfilo — e desde logo porque mestres como Ophüls foram modelos fundamentais, da ética à estética, para os cineastas que, a partir de finais de 1959, protagonizaram as convulsões criativas da Nouvelle Vague.
Maupassant
Estamos perante um cinema apaixonado pela riqueza da palavra escrita e, nessa medida, pela possibilidade de transfigurar as matérias literárias em narrativas cinematográficas. Dito de outro modo: este é um painel de três histórias inspiradas em Guy de Maupassant (1850-1993). Numa delas, deparamos com uma misteriosa figura mascarada que se diverte, até à mais completa exaustão, num salão de dança; noutra seguimos as atribulações desconcertantes, à beira do burlesco, das mulheres de um bordel que vão ao campo assistir à primeira comunhão da sobrinha da sua patroa; enfim, na derradeira história acompanhamos a relação de um pintor com a sua modelo, um processo afectivo em que a felicidade parece conter as premissas da tragédia.
A “chave” de tudo isto está, obviamente, no título. Ophüls encena o prazer, sugerindo a sua dimensão mais carnal, ao mesmo tempo que não exclui as atribulações morais com que os humanos o encaram, avaliam ou encenam. Este é um objecto exemplar de um cinema que acreditava na psicologia, ao mesmo tempo que discutia incessantemente as suas certezas. Isto sem esquecer que encontramos aqui uma galeria de actores de um cinema francês que tinha (também) o seu “star system” — entre eles, estão Jean Gabin, Danielle Darrieux, Simone Simon e Madeleine Renaud. Tempos outros, reposições do nosso presente.

domingo, setembro 16, 2018

The Twilight Sad anunciam novo álbum

Vem aí o quinto álbum de estúdio de The Twilight Sad (o anterior, Nobody Wants to Be Here and Nobody Wants to Leave, está a fazer quatro anos). Enfim, é uma maneira de dizer: a banda escocesa já anunciou It Won/t Be Like This All the Time, embora o respectivo lançamento esteja agendado apenas 18 de Janeiro de 2019. Uma das canções já era conhecida: I/m Not Here [missing face], objecto exemplar do rock alternativo, estranhamente dançante, destes escoceses sem preconceitos — agora tem direito a teledisco, com realização de Brendan Jay Smith.

2 filmes portugueses

Dois filmes portugueses arriscam desafiar convenções e lugares-comuns: Mariphasa e O Espectador Espantado chegaram esta semana às salas escuras — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Setembro), com o título 'O experimentalismo do cinema português'.

Experimentalismo? A palavra, por vezes, suscita algumas suspeitas. E com razão, convenhamos. Nos tempos que correm, sob a evidência (e a ostentação) do experimental esconde-se, não poucas vezes, um vazio de ideias e um formalismo sem destino.
Dois filmes portugueses que, esta semana, chegaram às salas escuras justificam o adjectivo experimental. São eles: Mariphasa, de Sandro Aguilar, e O Espectador Espantado, de Edgar Pêra. Provavelmente, ambos suscitam uma dúvida metódica: será que as suas opções experimentais cumpriram totalmente os seus desígnios? Seja como for, importa destacar o mais significativo. A saber: Aguilar e Pêra são cineastas que valorizam o risco estético, nessa medida praticando a arte salutar de desafiar os hábitos e crenças dos próprios espectadores.
No caso de Mariphasa, o título alude a uma planta do Tibete que possuiria míticos poderes curativos. Em todo o caso, trata-se de uma referência puramente metafórica. Isto porque a acção decorre numa zona industrial desactivada (aparentemente na Grande Lisboa) em que se cruzam algumas personagens marcadas por uma deriva que tem tanto de físico como de emocional. É pena que o filme não trabalhe mais na definição dessas personagens, já que a ausência de detalhes sobre as suas histórias particulares empobrece a nossa relação com as suas acções. Seja como for, este é um objecto de cinema apostado em valorizar as imagens (e sons!) como elementos de um ambiente realista em que, instante a instante, pressentimos a iminência de alguma tragédia.
O Espectador Espantado foi revelado há cerca de dois anos e meio no Festival de Roterdão. Tal como outras experiências do seu realizador, é um filme que se oferece como um documentário para se transfigurar num ensaio surreal sobre o seu tema central. Deparamos, assim, com uma série de depoimentos de pessoas ligadas ao cinema (da produção à escrita), comentando esse “espanto” que faz do cinema uma arte de reprodução, e também de delírio, da realidade à nossa volta. O que é isso de ficarmos maravilhados perante a projecção de um filme? Será que a nova idade digital nos está a fazer perder o gosto de olhar para um ecrã de cinema? Talvez faltem respostas concisas, mas há que reconhecer que O Espectador Espantado não é uma tese, antes uma deambulação em torno do prazer, exuberante ou secreto, da nossa relação com os filmes.
Da presença simultânea destes dois títulos no mercado fica uma certeza: há um cinema português que, com resultados mais ou menos conseguidos, se demarca das convenções e lugares-comuns das telenovelas. Hoje, mais do que nunca, esse é um fundamental valor artístico. E também uma forma criativa de entender o espectador.

sábado, setembro 15, 2018

Lana Del Rey em Super 8

Misteriosa oração amorosa [... kiss the sky and whisper to Jesus], eis como talvez possamos definir a nova canção de Lana Del Rey: Mariners Apartment Complex poderá ser a primeira antecipação de um novo álbum que, em qualquer caso, a cantora prevê apenas para 2019. O teledisco, evocando as singularidades da película Super 8, a preto e branco, tem assinatura de Chuck Grant (nome próprio: Caroline), irmã de Elizabeth (=Lana).

 You took my sadness out of context
At the Mariners apartment complex
I ain't no candle in the wind

I'm the board, the lightning, the thunder
Kind of girl who's gonna make you wonder
Who you are and who you've been

And who I've been is with you on these beaches
Your Venice bitch, your die-hard, your weakness
Maybe I could save you from your sins

So, kiss the sky and whisper to Jesus
My, my, my, you found this, you need this
Take a deep breath, baby, let me in

You lose your way, just take my hand
You're lost at sea, then I'll command your boat to me again
Don't look too far, right where you are, that's where I am
I'm your man
I'm your man

They mistook my kindness for weakness
I fucked up, I know that, but Jesus
Can't a girl just do the best she can?

Catch a wave and take in the sweetness
Think about it, the darkness, the deepness
All the things that make me who I am

And who I am is a big time believer
That people can change, but you don't have to leave her
When everyone's talking, you can make a stand

'Cause even in the dark I feel your resistance
You can see my heart burning in the distance
Baby, baby, baby, I'm your man (yeah)

You lose your way, just take my hand
You're lost at sea, then I'll command your boat to me again
Don't look too far, right where you are, that's where I am
I'm your man
I'm your man

Catch a wave and take in the sweetness
Take in the sweetness
You want this, you need this
Are you ready for it?
[...]

A IMAGEM: José Bandeira, 2018

JOSÉ BANDEIRA
'O Facebook está preparado'
DN [15-09-18]

A IMAGEM: Craig F. Walker, 2018

CRAIG F. WALKER
Boston / The Boston Globe
7 Agosto 2018

quarta-feira, setembro 12, 2018

"Suspirium" de "Suspiria"

Suspiria é a nova versão de... Suspiria: o original data de 1977 e tem assinatura de Dario Argento; agora, Luca Guadagnino propõe uma releitura do universo de terror de Argento (anuncia-se como um momento forte desta rentrée), mobilizando um elenco que inclui Dakota Johnson, Tilda Swinton e, last but not least, Ingrid Caven. Mais ainda: para compor a banda sonora convidou Thom Yorke — aqui está um primeiro e belíssimo tema, com o título adequado de Suspirium.

This is a waltz thinking
About our bodies
What they mean
For our salvation
With only the clothes that
We stand up in
Just the ground
On which we stand

Is the darkness
Ours to take?
Bathed in lightness
Bathed in heat

All is well
As long as we keep spinning
Here and now
Desert behind a wall

Only old songs and laughter we do
All forgiven, always and never been true

When I arrive here
You come and find me
Or in a crowd
Be one of them

Are you lonesome
Right beside her
No tomorrow's
At peace

terça-feira, setembro 11, 2018

O reverso dos GAFA

I. A manchete do Libération com data de 12 de Setembro dá conta de um drama visceralmente cultural. Ou seja: "Os GAFA não têm todos os direitos". A saber: Google, Apple, Facebook e Amazon podem e devem ser compelidos a respeitar (entenda-se: pagar) os direitos pelos conteúdos que colocam nas suas redes. A notícia surge, aliás, a pretexto de uma reunião de euro-deputados que deverão "pronunciar-se sobre uma directiva que visa compelir os gigantes da Net a pagar pelos conteúdos artísticos e editoriais que utilizam."

II. Curiosa mudança de paradigma ideológico, reduzindo a pó toda uma mitologia mediática em que (quase) todos se enredaram não há muitos anos. Assim, depois da cega celebração dos novos circuitos virtuais — capazes de colocar qualquer ser humano em contacto com qualquer outro ser humano, no interior de uma democracia abençoada por um sopro divino... —, descemos à terra (literalmente), reconhecendo que é preciso pensar a circulação de informação, não como um fenómeno de intocável carisma, antes como um universo de valores e escolhas, quer dizer, um novo sistema cultural e económico.

III. Não terá sido, obviamente, por acaso que, na altura do seu lançamento, o filme A Rede Social (2010), de David Fincher, com argumento de Aaron Sorkin, foi algumas vezes descartado como um objecto pretensioso, apenas empenhado em denegrir Mark Zuckerberg e o seu admirável mundo novo de polegares ao alto — afinal de contas, Jesse Eisenberg nem era assim tão parecido com o criador do Facebook... Agora, os GAFA já não são vistos como os sacerdotes do paraíso virtual, antes surgindo nas assembleias onde se discutem — tentando defender — os legítimos direitos dos cidadãos. Que isso aconteça, eis uma cruel derrota: os legisladores surgem porque a própria dinâmica social falhou. Na verdade, as chamadas redes sociais esvaziaram a dinâmica de pensamento e a capacidade de discussão do próprio espaço social, esse espaço onde não há apenas polegares, mas pessoas inteiras. 
[ 2010 ]

A IMAGEM: Haruki Horikawa, 2018

HARUKI HORIKAWA
Campanha de Linda Farrow
Outono/Inverno 2018

Cinema, futebol e espaço social

Mesmo através de um qualquer “filme-acontecimento”, a presença social do cinema foi diminuindo face ao poder mediático do futebol: eis uma grande questão cultural — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 Setembro).

Permito-me colocar ao leitor uma pergunta de algibeira. E não por qualquer razão banalmente enciclopédica: falar ou escrever sobre cinema não tem nada a ver com saber muitos nomes de cor... Trata-se apenas de propor uma breve reflexão sobre a nossa visão social do cinema. A pergunta é: o que liga os filmes que a seguir refiro?
O primeiro chama-se Crooklyn, foi produzido em 1994, e propõe um retrato amargo e doce de uma família afro-americana em Brooklyn, Nova Iorque, na primeira metade da década de 70.
O segundo, Girl 6 (1996), observa de forma contundente, em tom de comédia negra, a evolução dos usos e costumes sexuais, tendo como personagem central uma jovem que trabalha numa rede de chamadas “eróticas”; nele encontramos nomes tão famosos como Prince (autor e intérprete das canções do filme) e Madonna (num pequeno papel).
Vem depois He Got Game (1998), uma das obras-primas do cinema americano do final do século XX, centrada na personagem de um afro-americano, interpretado por Denzel Washington, que está preso e tenta convencer o filho a seguir a sua vida universitária sem deixar de jogar basquetebol.
Enfim, citemos Bamboozled (2000), sátira subtil e implacável sobre as formas de manipulação das figuras afro-americanas em alguns programas da televisão dos EUA.
O leitor terá encontrado o fundamental elo de ligação entre tais títulos: foram, todos eles, realizados por Spike Lee, cineasta que continua a reflectir de forma fascinante sobre a complexidade das relações entre brancos e negros na América contemporânea — veja-se o seu novo e prodigioso BlacKkKlansman: O Infiltrado (há dias lançado nas salas portuguesas).


O certo é que há outra resposta possível à minha pergunta inicial. Para além de estarmos perante trabalhos de realização de Spike Lee, os quatro primeiros filmes partilham uma bizarra condição: não foram lançados nas salas portuguesas. Aliás, a lista de inéditos de Lee podia prolongar-se com mais alguns títulos, incluindo Chi-Raq (2015), drama musical sobre gangs de Chicago que usa matrizes da tragédia grega como ponto de partida.
Há outra maneira de dizer isto: apesar de BlacKkKlansman ser um invulgar objecto de cinema que nos convoca para os dramas actuais dos EUA, sob a presidência de Donald Trump, daí não resulta que, no nosso contexto social, o filme adquira a evidência mediática de que desfrutam as convulsões do futebol.
E ainda outra: na nossa sociedade, o valor do cinema (como objecto social, precisamente) tem sido metodicamente secundarizado, para não dizer anulado. Eis um estado de coisas que, por certo, implica muitos e complexos factores, desde as opções de fundo do mercado cinematográfico até aos comportamentos específicos dos espectadores.
Uma coisa é certa: mesmo através de um objecto como BlacKkKlansman, é cada vez mais escassa a possibilidade de um filme ser motor de uma qualquer reflexão sobre o mundo em que vivemos. Não poucas vezes, a chamada de atenção para os dramas culturais desta conjuntura atrai a ideia simplista segundo a qual o crítico de cinema é aquele que “espera” que os outros se reconheçam nos mesmos filmes que ele celebra...
Na verdade, tal preconceito é, também ele, produto de uma dinâmica social em que a agitação de umas eleições futebolísticas possui um poder mediático mais forte que o labor criativo de um qualquer cineasta, Spike Lee ou qualquer outro. Escusado será dizer que não é possível transformar tudo isso sem pensar sobre o vasto mundo das imagens, o que nele se expõe e também o que nele se recalca.

Dudamel & Schultz

Gustavo Dudamel
[Foto: Mark Hanauer]
Mahler Chamber Orchestra
Gustavo Dudamel Maestro
Golda Schultz Soprano

Franz Schubert

Sinfonia n.º 3, em Ré maior, D. 200

Gustav Mahler
Sinfonia n.º 4, em Sol maior

* Sexta, 7 setembro 2018 (20h00)

Noite de glória musical, na sexta-feira, dia 7, no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian. Pelo reencontro com Gustavo Dudamel? Sem dúvida. O actual director da Los Angeles Philarmonic será uma star — e muito merecidamente. Mas não tem pose de vedeta, e não apenas no sentido mais imediato ou imediatista. Escutar a música que ele nos traz, neste caso com a Mahler Chamber Orchestra (fundada por Claudio Abbado em 1997), envolve sempre algo de primordial e revelador: estamos, de facto, a assistir a um singularíssimo processo de descoberta ou redescoberta das obras que nos apresenta.
E não deixa de ser curioso voltar a referir o facto de Dudamel dispensar a pauta enquanto maestro. Não porque se trate de uma qualquer ostentação de "virtuosismo"... Nada disso: ele coloca-se na posição do primeiro espectador, o primeiro a procurar escutar na orquestra algo que se enraíza numa paisagem única, algures entre a sua memória das notas e os desejos originais do compositor.
Golda Schultz
Neste caso, como Rui Cabral Lopes refere no programa de sala do concerto, tratava-se de apresentar duas obras, separadas por 85 anos, mas ligadas por um "elo inequívoco", através do "mesmo núcleo instrumental de madeiras, metais e cordas". Dir-se-ia que as ousadias de Schubert, como pioneiro do romantismo, são revistas, decompostas e recompostas, eventualmente pulverizadas, pelo labor de Mahler — hipótese a considerar: o belíssimo 3º andamento desta Sinfonia nº 4 de Mahler [Ruhevoll (Tranquilo)] talvez possa figurar entre as peças que, simbolicamente, desenham uma fronteira conceptual entre os séculos XIX e XX, no limite, anulando-a.
Seja como for, importa não esquecer a genuína revelação que foi (para os espectadores portugueses) a presença de Golda Schultz, soprano sul-africana: a sua interpretação de 'Das himmlische Leben', no 4º andamento [Sehr behaglich (Muito agradável)], foi um pequeno prodígio de subtileza e emoções, expondo o misto de carnalidade e abstracção que habita a pulsão transcendental do universo mahleriano.
Como exemplo dos requintados dotes de Schultz, ei-la, com a Münchner Rundfunkorchester, dirigida por Ivan Repušic, interpretando uma ária (Chi il bel sogno di Doretta), da ópera La Rondine, de Giacomo Puccini.