Mesmo através de um qualquer “filme-acontecimento”, a presença social do cinema foi diminuindo face ao poder mediático do futebol: eis uma grande questão cultural — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 Setembro).
Permito-me colocar ao leitor uma pergunta de algibeira. E não por qualquer razão banalmente enciclopédica: falar ou escrever sobre cinema não tem nada a ver com saber muitos nomes de cor... Trata-se apenas de propor uma breve reflexão sobre a nossa visão social do cinema. A pergunta é: o que liga os filmes que a seguir refiro?
O primeiro chama-se Crooklyn, foi produzido em 1994, e propõe um retrato amargo e doce de uma família afro-americana em Brooklyn, Nova Iorque, na primeira metade da década de 70.
O segundo, Girl 6 (1996), observa de forma contundente, em tom de comédia negra, a evolução dos usos e costumes sexuais, tendo como personagem central uma jovem que trabalha numa rede de chamadas “eróticas”; nele encontramos nomes tão famosos como Prince (autor e intérprete das canções do filme) e Madonna (num pequeno papel).
Vem depois He Got Game (1998), uma das obras-primas do cinema americano do final do século XX, centrada na personagem de um afro-americano, interpretado por Denzel Washington, que está preso e tenta convencer o filho a seguir a sua vida universitária sem deixar de jogar basquetebol.
Enfim, citemos Bamboozled (2000), sátira subtil e implacável sobre as formas de manipulação das figuras afro-americanas em alguns programas da televisão dos EUA.
O leitor terá encontrado o fundamental elo de ligação entre tais títulos: foram, todos eles, realizados por Spike Lee, cineasta que continua a reflectir de forma fascinante sobre a complexidade das relações entre brancos e negros na América contemporânea — veja-se o seu novo e prodigioso BlacKkKlansman: O Infiltrado (há dias lançado nas salas portuguesas).
O certo é que há outra resposta possível à minha pergunta inicial. Para além de estarmos perante trabalhos de realização de Spike Lee, os quatro primeiros filmes partilham uma bizarra condição: não foram lançados nas salas portuguesas. Aliás, a lista de inéditos de Lee podia prolongar-se com mais alguns títulos, incluindo Chi-Raq (2015), drama musical sobre gangs de Chicago que usa matrizes da tragédia grega como ponto de partida.
Há outra maneira de dizer isto: apesar de BlacKkKlansman ser um invulgar objecto de cinema que nos convoca para os dramas actuais dos EUA, sob a presidência de Donald Trump, daí não resulta que, no nosso contexto social, o filme adquira a evidência mediática de que desfrutam as convulsões do futebol.
E ainda outra: na nossa sociedade, o valor do cinema (como objecto social, precisamente) tem sido metodicamente secundarizado, para não dizer anulado. Eis um estado de coisas que, por certo, implica muitos e complexos factores, desde as opções de fundo do mercado cinematográfico até aos comportamentos específicos dos espectadores.
Uma coisa é certa: mesmo através de um objecto como BlacKkKlansman, é cada vez mais escassa a possibilidade de um filme ser motor de uma qualquer reflexão sobre o mundo em que vivemos. Não poucas vezes, a chamada de atenção para os dramas culturais desta conjuntura atrai a ideia simplista segundo a qual o crítico de cinema é aquele que “espera” que os outros se reconheçam nos mesmos filmes que ele celebra...
Na verdade, tal preconceito é, também ele, produto de uma dinâmica social em que a agitação de umas eleições futebolísticas possui um poder mediático mais forte que o labor criativo de um qualquer cineasta, Spike Lee ou qualquer outro. Escusado será dizer que não é possível transformar tudo isso sem pensar sobre o vasto mundo das imagens, o que nele se expõe e também o que nele se recalca.