Quem se lembra de Burt Reynolds? Ou melhor, que memórias passámos a cultivar, que memórias optamos por silenciar? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Setembro).
Há dias, no seu programa The Late Show (SIC Radical), Stephen Colbert proferiu algumas breves palavras de homenagem a Burt Reynolds (falecido a 6 de Setembro, contava 82 anos), dizendo que tinha a sensação de que estávamos perante “o fim de uma época”.
Não era um banal elogio artístico. Afinal de contas, convenhamos que, a par de filmes admiráveis como Fim de Semana Alucinante (1972), de John Boorman, ou Jogos de Prazer (1997), de Paul Thomas Anderson, há muitos títulos irrelevantes entre os mais de 150 em que Reynolds participou. Nem se tratava de reduzir o actor às suas proezas nas bilheteiras, mesmo se Colbert não se esqueceu de sublinhar que ele foi um dos líderes do mercado cinematográfico ao longo da década de 70.
O que importava lembrar era o facto de Reynolds corresponder a um modelo de estrela que nada (mas mesmo nada) tem a ver com os novos conceitos televisivos de “celebridade”, esses conceitos de celebração da superficialidade e do fútil que, entre nós, pertencem aos chamados “famosos”.
A questão não está em demonizarmos a televisão e as suas potencialidades expressivas — aliás, uma parte significativa da filmografia de Reynolds é de raiz televisiva. Acontece que ele não foi exactamente uma figura que se distinguisse por aparecer em eventos “sociais”, copo de whisky na mão, proclamando um qualquer soundbyte sem pés na cabeça para ter direito a 15 segundos de presença televisiva. Bem pelo contrário: melhor ou pior, através de filmes muito bons ou muito maus, Reynolds foi um ser do ecrã da sala escura, esse ecrã vocacionada para ser maior que a vida.
Escusado será dizer que o desabafo de Colbert é também revelador de um estado de coisas visceralmente americano. Vive-se um tempo de pingue-pongue de frases curtas e ideias escassas de que os “tweets” de Donald Trump se tornaram a matriz de linguagem, o palco universal e o enquadramento ideológico. Dir-se-á que Reynolds era um homem de sensibilidade conservadora... E depois? Será preciso acrescentar que não é isso que aqui está em causa, mas sim o poder enfático de ser imagem sem deixar de ser humano.