domingo, abril 29, 2018

"Lara Croft" ou os jogos contra o cinema

A. Vale a pena reflectir um pouco sobre a conjuntura audiovisual que os jogos de video geraram, tomando como pretexto o trailer de Shadow of the Tomb Raider, produto da Square Enix com lançamento agendado para Setembro. Trailer, exactamente, já que este tipo de consumo se foi colando, estrategicamente, à indústria e ao comércio dos filmes, parasitando todas as suas componentes, da pré-produção ao marketing — na prática, não há diferença conceptual entre um trailer como este ou o de um qualquer título com chancela dos estúdios Marvel (ou da DC Comics).

B. Três vectores narrativos triunfam:
1 — o esvaziamento da noção de plano: a composição do espaço, logo, a gestão do tempo deram lugar a um fluxo visual em que a aceleração já não é um dispositivo dramático, mas uma lei obrigatória;
2 — a arbitrariedade da narrativa: não por acaso, deparamos aqui com uma típica voz off cuja função se reduz à criação de uma ilusão de continuidade — trata-se apenas de gerar alguma expectativa pelo quadro seguinte do jogo;
3 — a formatação do corpo: a figuração humana passou a confundir-se com a criação de um outro tipo de ilusão (corporal, precisamente) que menospreza qualquer singularidade material — Lara Croft, Homem de Ferro, Batman ou qualquer outra personagem, todos foram desumanizados, existindo apenas como paleta digital.

C. Porque é que muitos jovens apenas consomem os filmes que, de uma maneira ou de outra, repetem estes vectores? Eis uma boa pergunta, inevitavelmente ligada a uma dúvida pedagógica: como é que um espectador apenas educado através deste modelo de imagens/sons pode ter agilidade mental e disponibilidade emocional para lidar com a riqueza de composição e narrativa de um filme de Jean Renoir, Ingmar Bergman ou John Cassavetes? Vale a pena formular tais questões a partir de exemplos como esta Lara Croft, exemplos que, metodicamente, se vão definindo e consolidando contra qualquer ideia de cinema.


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* PERSONA (1966), de Ingmar Bergman

sábado, abril 28, 2018

"Na Síria", um filme humanista

Com Na Síria, Philippe van Leeuw filma um conflito complexo através das singularidades das pessoas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Abril), com o título 'O espaço da tragédia'.

Na sua singeleza, o título do filme de Philippe van Leeuw envolve um calculado desafio: Na Síria tem a ver com a identificação de um lugar, não a sua redução a uma matéria noticiosa (cuja eventual pertinência, como é óbvio, não está em causa). Dito de outro modo: este é um objecto construído a partir de uma metódica interrogação dos próprios meios com que trabalha. Não se trata de condensar a situação trágica da Síria num qualquer moralismo de “prós e contras”. Trata-se tão só de perguntar como fazer cinema — ou que cinema se pode fazer — a partir de uma história situada na Síria contemporânea.
A resposta de Phillipe van Leeuw assume as suas próprias limitações estruturais. Não se trata, assim, de enunciar um projecto político para, por qualquer arte mágica, resolver os infinitos problemas directa ou indirectamente decorrentes da situação na Síria — se os políticos não conseguem (ou, pelo menos, ainda não conseguiram) definir tal projecto, por que razão um filme teria tal vocação ou poder? Trata-se, isso sim, de lidar com o contexto sírio a partir do mais primitivo valor cinematográfico. A saber: a construção de um espaço específico.
Que espaço? Pois bem, este é um filme que nos coloca no interior de uma casa ameaçada por bombardeamentos e atiradores furtivos, expondo uma vivência (aliás, uma sobrevivência) tão frágil quanto claustrofóbica. Não é uma reportagem, mas também não é um sermão. Nenhuma voz off vem apaziguar a inquietação que perpassa pelos corpos, de alguma maneira contaminando todos os objectos. Em última análise, aquilo que vai adquirindo espessura e emoção é a verdade irredutível de cada pessoa. Nos tempos que correm isso tem a ver com um valor, primitivo e nobre, quase ausente do espaço audiovisual. O seu nome? Humanismo.

sexta-feira, abril 20, 2018

Para descobrir um filme grego (2/2)

É verdade: há cinema grego e, de vez em quando, surge no nosso país — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Abril), com o título 'Elogio dos realismos'.

[ 1 ]

Vivemos um tempo em que se valoriza pouco (e se pensa ainda menos) a velha questão do realismo cinematográfico. Entre outros, dois factores favorecem essa situação: por um lado, os lugares-comuns jornalísticos sobre o cinema “de efeitos especiais” contribuem para uma visão maniqueísta, sem qualquer memória histórica, das linguagens que os filmes utilizam; por outro lado, a omnipresença dos directos televisivos instalou a noção pueril segundo a qual basta ligar uma câmara, algures, colocando à sua frente um repórter com um microfone, para que o real se “reproduza” sem mácula.
Neste contexto, o filme grego Não Me Ames, de Alexandro Avranas, assume um salutar papel pedagógico. E desde logo porque com ele, e através dele, podemos supor que as imagens televisivas sobre os convulsões recentes da Grécia são insuficientes para compreender o país e o seu povo. Como é óbvio, não se trata de negar as perturbantes mensagens que encontramos no dramatismo quotidiano da televisão. Acontece que Não Me Ames pertence ao mesmo presente de onde emanam aquelas imagens, lembrando-nos que a definição de um tempo e um lugar envolve sempre os mais variados registos informativos e narrativos.
Ora, justamente, Avranas recorda-nos a necessidade, de uma só vez social e simbólica, de pensarmos o realismo para além das atribulações mais ou menos sugestivas das câmaras de televisão. Na sua sedução de narrativa policial, aliás elaborada com calculada sofisticação, Não Me Ames reafirma o cinema como instrumento visceralmente ligado ao seu/nosso presente. Mais do que isso: através da sua geométrica austeridade, compreendemos que não há um realismo, mas vários, motivados pelos próprios lugares da sua elaboração. Olhar o mundo à nossa volta é também abraçar essa pluralidade.

A IMAGEM: Chris Steele-Perkins, 1978

CHRIS STEELE-PERKINS
Wolverhampton, Inglaterra
Magnum, 1978

quinta-feira, abril 19, 2018

"Time" x 100

Seis capas diferentes para uma edição que é já um clássico anual da revista Time: as 100 pessoas mais influentes. Como sublinha Edward Felsenthal na apresentação do dossier, não é um inventário daqueles que cometeram "proezas", nem uma mera galeria de gente com poder ("embora muitos o tenham") — são aqueles que, de forma determinante, deixaram as marcas da sua influência "este ano".
Não se trata, por isso, de destacar alguns ou apontar a ausência de outros. Trata-se, isso sim, de ler a diversidade do nosso mundo global através de uma centena de pessoas, por certo ligadas à globalização, mas sempre através de gestos, intervenções ou obras individuais. Eis três dos videos produzidos pela Time para divulgar a sua edição: com cinco sobreviventes do tiroteio na escola de Parkland, a actriz Nicole Kidman e o tenista Roger Federer.





Prince — uma gravação inédita

Apesar de não estarem resolvidas as questões relacionadas com a gestão da herança de Prince, por certo de infinita complexidade jurídica, a sua música permanece como coisa da actualidade. Hoje mesmo, através da divulgação de um inédito: uma gravação de 1984 do seu hit Nothing Compares 2 U (que, como sabemos, se tornaria uma das mais fortes marcas artísticas de Sinéad O'Connor). É certo que, a partir de certa altura, a canção foi presença regular nos concertos de Prince, mas este registo tinha permanecido por divulgar — o respectivo teledisco, particularmente hábil na forma de encenação de uma performance de que não existem imagens, foi montado a partir de arquivos de ensaios de Prince & The Revolution [NPR].

quarta-feira, abril 18, 2018

Hollywood, os afro-americanos & etc.

KATHRYN BIGELOW
— dois Oscars por Estado de Guerra (filme e realização)
Debater a figuração dos afro-americanos por Hollywood? Sim, mas não escamoteando a pluralidade das memórias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Abril), com o título 'Memória cinéfila, precisa-se'.

Não será necessário voltar a sublinhar a importância política e simbólica da revalorização das personagens afro-americanas nos filmes de Hollywood. Mais do que isso: a sua inscrição num movimento transversal a toda a sociedade americana. Como muitos fenómenos que adquirem expressão panfletária, também este tem gerado o seu recalcado, por vezes reforçando uma tendência pueril de todo o espaço mediático. A saber: o irresponsável apagamento da memória.
Memória cinéfila, antes do mais. Repare-se nas múltiplas celebrações do filme de aventuras Black Panther, motivadas pelo seu elenco de intérpretes afro-americanos. Não quero esconder que Black Panther me parece (mais) uma banal variação dos formatos de espectáculo promovidos pelos estúdios Marvel. Mas como fazer passar a ideia pedagógica de que aquilo que está em jogo não é um concurso mais ou menos gritado entre “bons” e “maus” filmes? Ou seja: como é possível exaltar a dimensão afro-americana do elenco como se fosse um acontecimento sem precedentes? Onde está o didactismo jornalístico para recordar que o revolucionário Otto Preminger (1905-1986) dirigiu um elenco totalmente afro-americano em Carmen Jones? Lembrando, já agora, que isso não teve chancela da Marvel, mas sim da 20th Century Fox, tendo acontecido, não no mês passado, mas em... 1954!
Na compreensão da complexidade da figuração dos afro-americanos no cinema dos EUA, onde estão também os artigos que recordem o papel decisivo de um actor como Sidney Poitier ao longo das décadas de 1950/60? Isto sem esquecer que Spike Lee, dos mais brilhantes no tratamento das temáticas afro-americanas, possui uma filmografia admirável cuja primeira longa-metragem, Os Bons Amantes, data de 1986.
Entre os filmes sacrificados em toda esta dinâmica está o prodigioso Detroit, lançado no Verão de 2017. Realizado por Kathryn Bigelow, nele se evocam os motins de 1967 naquela cidade americana, em particular os acontecimentos trágicos no Motel Algiers — é uma abordagem tanto mais incisiva e perturbante quanto desvenda o racismo de brancos contra negros como entidade que contamina os mais esquecidos interstícios do quotidiano.
Talentosa retratista das convulsões históricas do seu país, Bigelow, convém lembrar, é a única mulher que já ganhou um Oscar de realização (em 2010, com Estado de Guerra, também eleito melhor filme do ano), mas o seu Detroit foi rasurado de todos os actuais debates — e até dos Oscars, onde não obteve uma única nomeação. O filme, entretanto, saíu em DVD.

terça-feira, abril 17, 2018

"Uma crítica da vida" [citação]

[W. M. Logan]
>>> Toda a arte, música ou literatura séria é um acto crítico. É-o, em primeiro lugar, no sentido em que Matthew Arnold falava de "uma crítica da vida". Seja realista, fantástica, utópica ou satírica, é uma contra-afirmação do mundo que o artista constrói. Os meios estéticos organizam interacções selectivas, condensadas, entre as imposições do mundo observado tal como é e as possibilidades ilimitadas da imaginação. Esta intensidade que conjuga a visão e composição especulativa é sempre crítica. Diz-nos que as coisas podem ser (foram ou serão) de outra maneira.
 
GEORGE STEINER
in Presenças Reais
Editorial Presença, 1993

sábado, abril 14, 2018

Milos Forman (1932 - 2018)

Nome grande das novas vagas europeias, autor checo que triunfou em Hollywood, vencedor de dois Oscars, Milos Forman faleceu no dia 13 de Abril em Danbury, Connecticut — contava 86 anos.
A sua obra e, mais do que isso, a sua vida reparte-se em dois capítulos, um na Checoslováquia, outro nos EUA, separados pelos acontecimentos da Primavera de Praga, em 1968, e pela invasão do país pelas tropas do Pacto de Varsóvia — Forman estava em Paris para montar um novo projecto, decidindo na altura rumar aos EUA. Em boa verdade, era já um cineasta com uma obra significativa, tendo conseguido, através de ácidas comédias sociais, como Os Amores de uma Loira (1965) e O Baile dos Bombeiros (1967) [extracto], desmontar o cinismo repressivo da sociedade comunista.


Começou na produção americana com Taking Off/Os Amores de Uma Adolescente (1971), também uma comédia sobre usos e costumes, de alguma maneira tentando encontrar um registo adequado para temas enraizados na sua experiência anterior. Seria consagrado com Voando sobre um Ninho de Cucos (1975), adaptação do romance de Ken Kesey que, preservando a dimensão de fábula sobre as convulsões da verdade humana, continua a ser um dos poucos filmes a obter o chamado quinteto mágico atribuído pela Academia de Hollywood. Que é como quem diz: ganhou Oscars nas categorias de filme, realizador, actor (Jack Nicholson), actriz (Louise Fletcher) e argumento (adaptado, por Lawrence Hauben e Bo Goldman).
Seguiu-se o musical Hair (1979), na época fenómeno de muitos e sugestivos simbolismos mas, por certo, não um dos seus filmes mais importantes. Forman teria nova consagração, em 1984, com o mozartiano Amadeus (mais oito Oscars, incluindo filme e realização), mas pelo meio ficou um filme pouco visto, ainda hoje virtualmente esquecido, embora de raro fulgor dramático: Ragtime, tendo como base o romance de E. L. Doctorow, revisita a teia social de Nova Iorque no começo do século XX, além do mais encenando de forma subtil as relações entre brancos e negros — seria o derradeiro filme de James Cagney [trailer].


Seguem-se três filmes tão atípicos quanto fascinantes:
Valmont (1989), notável adaptação de Ligações Perigosas, de Choderlos de Laclos (um ano depois da versão de Stephen Frears);
Larry Flynt (1996), genuíno e desencantado objecto liberal, na grande tradição de Hollywood, sobre o editor da revista pornográfica Hustler;
Homem na Lua (1999), prodigiosa evocação do bizarro Andy Kaufman (1949-1984) num universo de crueldade televisiva, provavelmente o mais complexo trabalho de composição de Jim Carrey, sem esquecer a extraordinária Courtney Love [trailer].


Ainda realizou Os Fantasmas de Goya (2006), um curioso retrato do pintor e da sua pintura como ideal de beleza. Como actor, vimo-lo a interpretar o ex-marido de Catherine Deneuve em Os Bem-Amados (2011), deliciosa comédia romântica & musical de Christophe Honoré.


>>> Obituário: New York Times + The Guardian.
>>> Site oficial de Milos Forman.
>>> Entrevista com Charlie Rose (1997), sobre Larry Flynt.

sexta-feira, abril 13, 2018

Para descobrir um filme grego (1/2)

É verdade: há cinema grego e, de vez em quando, surge no nosso país — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Abril), com o título 'Do cinema grego chega um perturbante conto moral'.

Cinema grego? Digamos, para simplificar, que o cinema grego existe. E que, com tímida regularidade, vamos conhecendo alguns dos seus títulos que, por uma ou outra razão, conseguiram alguma evidência nos circuitos internacionais. É o caso do estranho e envolvente Não Me Ames, realizado por Alexandros Aravanas, também autor do argumento (com a colaboração de Kostas Peroulis).
Avranas é, precisamente, um dos nomes gregos com especial visibilidade em anos recentes, já que a sua longa-metragem Miss Violence lhe valeu, em 2013, um Leão de Prata de melhor realização no Festival de Veneza. Foi, aliás, a distinção mais importante obtida pela cinematografia grega depois do prémio “Un Certain Regard”, da edição de 2009 de Cannes, ganho por Canino, de Yorgis Lanthimos.
Para além das diferenças das suas histórias, parece haver entre estes filmes um discreto, mas intenso, ponto comum: em todos eles deparamos com universos familiares que se definem, não tanto pelas singularidades afectivas, antes pelo modo como as suas relações internas se organizam através das mais elaboradas formas de ocultação em relação a qualquer exterior.
Em Miss Violence, Avranas encenava uma família cujas personagens femininas viviam sob o jugo de um poder masculino que se exercia através de insidiosas formas de agressão física e psicológica. Agora, em Não Me Ames, somos confrontados com um casal que programa a chegada do primeiro filho, para tal estabelecendo um acordo com uma jovem para funcionar como barriga de aluguer. Dir-se-ia uma gélida partilha de funções, de algum modo consolidada pelo facto de estar previsto que a jovem vá habitar com o casal durante o tempo da gravidez: tudo depende de uma série de detalhes analisados e geridos de forma absolutamente impessoal (incluindo a metódica avaliação do dinheiro envolvido); ao mesmo tempo, os três parecem aceitar sem problema as regras definidas.

Masculino/feminino

Em boa verdade, quase nada é o que parece. Mesmo evitando revelar ao leitor as insólitas viragens da narrativa, vale a pena sublinhar que os primeiros sinais de estranheza provêm da frieza geométrica da casa que é o cenário principal. Segundo as suas notas biográficas, antes de se dedicar ao cinema, Avranas estudou escultura — e não será abusivo reconhecer que tal formação se reflecte no olhar clínico que ele deposita sobre os espaços, seus objectos e volumes.
Não Me Ames acaba por ser um perturbante conto moral sobre as relações masculino/feminino num contexto em que parece não haver lugar para qualquer solução de genuína cumplicidade entre os humanos. Tudo isso passa, como é óbvio, pela elaborada tensão do trabalho dos actores, com inevitável destaque para a intérprete da mulher do casal, Eleni Roussinou, aliás também figura central em Miss Violence. Mas há ainda essa capacidade de Avranas dar a ver os lugares privados — desde a neutralidade decorativa dos quartos da casa até ao equilíbrio geométrico do jardim com piscina — como zonas de um assombramento que irá contaminar tudo e todos.
Na sua radical contenção (a cena final é de um minimalismo exemplar), Não Me Ames consegue a proeza de conciliar o retrato social com a parábola existencial. E tanto mais quanto as especificidades do contexto grego adquirem metódica ressonância universal. Será essa, afinal, uma marca possível de um cinema que se quer atento às raízes nacionais sem descurar os olhares dos que estão para além das suas fronteiras.

A IMAGEM: Mario Sorrenti, 2018

MARIO SORRENTI
Xie Chaoyu
Revista i-D, Verão 2018

Nova canção dos Florence + the Machine

Com a precisão teatral de uma voz transparente, embora alheia a qualquer naturalismo, Florence Welch continua em plena forma. Que é como quem diz: os Florence + the Machine têm uma nova canção — chama-se Sky Full of Song e deverá aparecer no quarto álbum da banda, As High as Hope, agendado para Junho (quatro anos depois do anterior, How Big, How Blue, How Beautiful); o teledisco, assinado por AG Rojas, é um belíssimo exercício de nostalgia a preto e branco, incluindo um cadre que faz lembrar o cinema mudo.

quinta-feira, abril 12, 2018

Godard em Cannes

LE LIVRE D'IMAGE
Le Livre d'Image, de Jean-Luc Godard, estará na competição do 71º Festival de Cannes (8-19 Maio). Com esta sinopse:

>>> Nada a não ser o silêncio, nada a não ser um canto revolucionário, uma história em cinco capítulos, como os cinco dedos da mão.

Entre os cineastas cujos filmes são candidatos à Palma de Ouro [programação no site oficial] estão o iraniano Asghar Farhadi (Todos lo Saben), o francês Stéphane Brizé (En Guerre), o italiano Matteo Garrone (Dogman), o chinês Jia Zhang-ke (Ash Is Purest White) e o americano Spike Lee (Blackkklansman). O filme de Farhadi será apresentado na sessão oficial de abertura — eis o respectivo trailer.

O testamento de Jóhann Jóhannsson

O compositor islandês Jóhann Jóhannsson faleceu de forma inesperada no passado mês de Fevereiro, contava apenas 48 anos. Nos meses finais da sua vida, trabalhou num actualização de Englabörn (2002), o primeiro álbum que publicou, com música para uma representação teatral interpretada por um quarteto de cordas, alguma percussão e electrónicas. O resultado chama-se Englabörn & Variations e integra, precisamente, uma série de variações sobre os temas originais resultantes de diversos convites do próprio Jóhannsson a artista que admirava.
Possuindo o poder de encantamento de uma intimidade plena de pudor, eis um álbum que talvez não possa deixar de ser encarado como um testamento artístico, tanto mais que o próprio Jóhannsson ainda teve oportunidade de interpretar as respectivas composições ao vivo — aqui em baixo, o tema Jói & Karen, retrabalhado por Ryuichi Sakamoto, e Odi et Amo, em 2017, na Elbphilharmonie de Hamburgo.




>>> Site oficial de Jóhann Jóhannsson.

Pierrot em Cannes

Pierrot Le Fou/Pedro o Louco (1965), um dos títulos gloriosos da Nova Vaga francesa, é a memória celebrada este ano pelo cartaz oficial da 71ª edição do Festival de Cannes (8-19 Maio).
O filme de Jean-Luc Godard surge evocado através dos seus protagonistas, Jean-Paul Belmondo e Anna Karina, a partir de uma fotografia de rodagem assinada por Georges Pierre (1927-2003), referência lendária na história dos chamados fotógrafos de plateau, fundador da Association des Photographes de Films. A imagem foi retrabalhada por Flore Maquin, artista gráfica que conseguiu satisfazer o misto de memória e mitologia que estas coisas exigem — um cartaz capaz de conferir unidade à tensão cinéfila entre passado e presente.

>>> Trailer de Pierrot le Fou.


>>> Pierrot le Fou na Criterion.

quarta-feira, abril 11, 2018

Sokolov, Schubert & etc.

© Klaus Rudolf
* GRIGORY SOKOLOV, Piano

Joseph Haydn
Piano Sonata No. 32, in G minor, Hob.XVI:44
Piano Sonata No. 47, in B minor, Hob.XVI:32
Piano Sonata No. 49, in C-sharp minor, Hob.XVI:36

Franz Schubert
Impromptus D. 935

Oito concertos em oito temporadas consecutivas. Dir-se-ia que a presença de Grigory Sokolov no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian é apenas a confirmação de uma rotina... até mesmo nos "obrigatórios" seis encores... Na verdade, podemos e devemos ir para além do reconhecimento dos seus extraordinários dotes de pianista, acima de tudo porque importa situar tais dotes num domínio que integra, mas transcende, o admirável rigor técnico. Sokolov é, afinal, um genuíno narrador, no sentido em que consegue gerar na audiência a mais paradoxal das sensações: por um lado, um obstinado rigor na valorização de todas as nuances das peças interpretadas; por outro lado, a afirmação de uma liberdade de execução que se desenvolve como se a pauta (em qualquer caso, ausente) fosse um simples esboço para aceder a novos e inusitados labirintos interpretativos. Uma vez mais, Schubert terá sido o principal motor dessa arte singular de reinventar o movimento interior de cada obra, preservando sempre a sua verdade mais primitiva.
Eis um registo de Schubert, Impromptus, D. 899, n.º 4: Allegretto, por Sokolov [Berlin Philarmonie, 2014], precisamente um dos encores do inesquecível concerto da Gulbenkian.

Ronaldo, Magritte e Zuckerberg

De que falamos quando falamos de futebol? E porque é que falamos tanto de futebol sem discutir as imagens do futebol? Terá triunfado a ideologia do Facebook em que o que mais conta é apenas passar de um link para outro? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 Abril).

Vejo e revejo as imagens do golo histórico de Cristiano Ronaldo na baliza de Gianluigi Buffon. Em boa verdade, já não são tratadas como imagens, antes como avatares utópicos. Utopia científica, uma vez que a geometria do salto nos é apresentada como o consumar de uma depuração religiosa do próprio corpo. Utopia nacional, com os feitos de Ronaldo a serem mais uma vez proclamados como imaculada, porventura compulsiva, encarnação da nossa portugalidade.
Dir-se-ia que, neste tempos de Internet, pontuados por delírios político-futebolísticos em forma de “tweet”, a civilização global em que vivemos passou a dispensar o simples reconhecimento das imagens como... imagens. Esquecida está a pedagogia austera de René Magritte quando, em 1929, pintou um enorme e garboso cachimbo, colocando por baixo o lendário axioma: “Isto não é um cachimbo.” Lição rudimentar, que talvez devesse ser ensinada a todas as crianças: se é isto não é um cachimbo, então o que é?... Pois bem, é a imagem de um cachimbo.

RENÉ MAGRITTE
A Traição das Imagens (1929)
As atribulações em torno do Facebook aí estão, precisamente, como reflexo da nossa demissão de pensamento. No princípio, dominou a visão pueril dessa nova forma de “socialização”: cada ser humano era convocado para partilhar a intimidade (do parto do primeiro filho ao sofrimento de uma doença terminal) com todos os cidadãos do mundo. Os ideólogos da “personalização” quiseram convencer-nos que essa “transparência” absoluta seria o paraíso desenhado como mapa de infinitos links. Agora, anda tudo muito preocupado, incluindo o Sr. Mark Zuckerberg, porque as coisas não funcionam exactamente assim...
Em 2010, David Fincher realizou uma obra-prima sobre o nascimento do Facebook, intitulada A Rede Social. A partir de um genial argumento de Aaron Sorkin (que lhe valeu um Oscar), Fincher mostrava algo de muito básico. A saber: na origem do Facebook está um conceito de negócio. E expunha uma decisiva componente cultural: as relações humanas deixavam de ser vividas como trocas de infinita diversidade para serem geridas por um espaço “comunitário” em que a atribuição (ou não) de um polegar ao alto tornava todos os cidadãos, de todos os recantos do planeta, banalmente iguais.
É essa cultura da igualdade compulsiva, socialmente virtual, que está em discussão. A sua urgência política é uma questão nuclear do presente, nem que seja para relançarmos a frase do cartaz de A Rede Social, escrita em função das estatísticas de 2010: “Não se conseguem 500 milhões de amigos sem fazer alguns inimigos”.
[ argumento de Aaron Sorkin ]

terça-feira, abril 10, 2018

Zuckerberg em Washington

Em paralelo com a presença de Mark Zuckerberg no Congresso dos EUA — para responder às questões suscitadas pela gestão de dados de milhões de utilizadores do Facebook —, a Avaaz, plataforma que promove acções de informação e crítica relacionadas com a globalização, concebeu uma encenação de figuras de cartão do próprio Zuckerberg. Com idênticas t-shirts, apelando à resolução dos problemas suscitados pelo funcionamento do Facebook, a instalação ilustra uma forma exemplar, para além de qualquer maniqueísmo pitoresco, da própria globalização. A saber: criar uma imagem local capaz de gerar a maior ressonância universal.

>>> Directo [New York Times]:

sábado, abril 07, 2018

Regresso ao futuro de "2001"

A comemorar meio século de existência, 2001: Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, concilia o poder visionário com a revolução tecnológica — eis cinco alíneas para recordarmos o seu fulgor criativo.

* Um computador demasiado inteligente
O olho de HAL 9000, um computador por vezes demasiado inteligente, ficou como um dos símbolos mais universais do filme. Todos os seus elementos, desde o painel de pequenos ecrãs até ao interior do “corpo”, foram trabalhados de modo a emprestar-lhe as características de uma verdadeira personagem. Muito se especulou sobre o facto de as iniciais HAL corresponderem, no alfabeto, às letras anteriores à sigla IBM; segundo Arthur C. Clarke, tratou-se de uma coincidência, uma vez que HAL provém da expressão “Heuristic Algorithmic Computer”.

* A criação de cenários virtuais
Muito antes da idade digital, Kubrick foi pioneiro na aplicação de cenários virtuais, nomeadamente na sequência da “Alvorada do Homem”, na abertura do filme. A utilização de uma nova tecnologia de projecção frontal (muito mais sofisticada que a clássica retro-projecção ou “transparência”) permitiu que as cenas com os macacos fossem rodadas em estúdio, utilizando como fundo paisagens registadas no continente africano.

* As possibilidades de um estúdio gigante
A rodagem decorreu no pavilhão H dos Shepperton Studios, a cerca de 25km do centro de Londres, num estúdio com 37m de comprimento e 18m de largura. A cena da cratera lunar, com o monólito, foi a primeira a ser rodada. Foi aí que Kubrick instalou a roda gigante encomendada à empresa de engenharia Vickers-Armstrong: acoplada à câmara, o seu mecanismo permitia rodar o cenário de modo a criar a ilusão de que as personagens se moviam num espaço de gravidade zero (a velocidade de rotação era ligeiramente inferior a 5Km/h).

* As novas imagens psicadélicas
Da pintura à música rock, o psicadelismo era uma componente visceral dos anos 60. Isso mesmo se reflecte na viagem final do astronauta Dave Bowman (Keir Dullea) através dos vertiginosos cenários cujas luzes se reflectem no seu capacete. Para os produzir, Douglas Trumbull, director de efeitos visuais, utilizou uma infinidade de materiais, desde quadros da Op Art a registos microscópicos, passando por paisagens do Monument Valley, no Colorado, e montanhas da Escócia.

* Os veículos espaciais do futuro
Da nave Discovery One, a caminho de Júpiter, às cápsulas individuais dos astronautas, os veículos espaciais foram concebidos em estreita colaboração com a NASA. Conforme as necessidades de cada cena, utilizaram-se elementos em tamanho real ou miniaturas cujas imagens eram tecnicamente tratadas para inserção em determinado espaço (alguns satélites tinham apenas 60cm de comprimento).

quinta-feira, abril 05, 2018

Os subsídios da arte e o golo de Ronaldo

1. Quem pensou no assunto, ensinou-nos que os limites da linguagem que usamos definem os limites do nosso mundo.

2. A palavra arte, por exemplo, reentrou de rompante no quotidiano português por causa das discussões em torno dos subsídios estatais a determinadas actividades artísticas, em especial o teatro.

3. Poucos dias depois, a mesma palavra arte está em tudo o que é jornal, televisão, site ou blog para definir um golo marcado por Cristiano Ronaldo — uma "obra de arte", escreve-se, diz-se.

4. No primeiro caso, a palavra arte surge como um contratempo que vem perturbar a pacatez do nosso quotidiano; no segundo, a mesma palavra projecta-nos num espaço eufórico e libertador que, escreve-se, diz-se, nos torna melhores como portugueses.

5. Não vejo os nossos políticos a questionar esta duplicidade da palavra arte — o que pode levar a supor que não querem pensar nisso ou, talvez, não sabem como pensá-lo. E que vivem bem com esses limites da sua própria linguagem.

terça-feira, abril 03, 2018

O mistério de Stéphane Audran

A MULHER INFIEL (1969)
Stéphane Audran e Michel Bouquet
Stéphane Audran, falecida aos 85 anos, nunca foi uma estrela, mas emerge como uma figura central nos tempos da Nova Vaga francesa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 Abril).

A notícia da morte da actriz francesa Stéphane Audran (a 27 de Março, contava 85 anos) remete-nos para um tempo cinematográfico em tudo e por tudo diferente do presente. Porque a associamos de imediato à Nova Vaga francesa, sobretudo através dos filmes em que foi dirigida por Claude Chabrol (1930-2010). Mas também porque há nela uma forma singular de ser actriz que se alheia da preocupação em garantir qualquer efeito ou estatuto de estrela.
Garantem as notícias que tal pose não pode ser dissociada da maneira como geria a sua existência privada. Jean-Pierre Mocky, que a dirigiu em Les Saisons du Plaisir (1988), recordou-a assim: “Stéphane era notável a representar mulheres livres e independentes como ela era na sua vida. Muitos cineastas apaixonaram-se por ela e, aliás, Claude Chabrol foi seu marido, transformando-a na sua actriz fetiche. Foi muito amada.”
Daí que seja francamente insuficiente a referência a A Festa de Babette (1987), de Gabriel Axel, dominante em quase todos os obituários de Audran. Terá sido, por certo, o título mais internacional da actriz, e tanto mais quanto valeu à produção dinamarquesa o primeiro Óscar de melhor filme estrangeiro. Em qualquer caso, é sobretudo ao longo das décadas de 60/70 que encontramos os seus momentos mais prodigiosos, a começar, claro, pelos dramas de Chabrol, incluindo a fulgurante trilogia constituída por A Mulher Infiel (1969), O Carniceiro (1970) e A Ruptura (1970).
Num tempo como o nosso em que tanto se discutem as condições “correctas” de figuração do feminino, Audran seria, por certo, uma actriz dispensável. Porque banalizava as personagens que interpretou? Bem pelo contrário. Havia nela um mistério que subtraía essas personagens a qualquer domínio previamente codificado, fosse ele psicológico ou sociológico. Em particular com Chabrol, Audran soube encarnar a incompreensão mútua dos dois sexos e, no limite, a menos romântica das leis afectivas. A saber: a sexualidade não é um processo de revelação automática de dois seres humanos, antes uma aventura sem princípio nem fim em que os enigmas de cada um (para si e para o outro) tendem a multiplicar-se.
Enfim, importa relativizar tão sedutora propensão trágica, lembrando também a ironia com que Audran sabia contaminar muitas das suas personagens, não poucas vezes ajudada pelo implacável sarcasmo de Chabrol. Talvez possamos dedicar-lhe como epitáfio o título desse filme de génio em que, em 1972, foi dirigida por Luis Buñuel: O Charme Discreto da Burguesia.

segunda-feira, abril 02, 2018

"2001" em 2018

Este cartaz de 2001: Odisseia na Espaço resume um dos momentos mais emblemáticos do filme, ligando o osso primitivo dos macacos, instrumento prático e símbolo de poder, com a sofisticada nave a caminho de Júpiter [video]. Um prodígio de montagem que condensa o ziguezague conceptual da obra-prima de Stanley Kubrick — estreou-se a 2 de Abril de 1968, faz hoje 50 anos.


>>> Memórias da rodagem de 2001 [The Guardian].

domingo, abril 01, 2018

"Phubbing": tele-desumanização

[ PsyBlog ]
A palavra — phubbing — não é nova. Terá mesmo surgido em 2012, segundo o dicionário de Oxford. Em qualquer caso, define um comportamento que, de excepção bizarra, se foi transformando em regra monstruosa — ilustrativa da nossa monsturosidade humana, entenda-se.
Phubbing resulta da fusão de "phone" e "snubbing" (do verbo snub: desconsiderar, menosprezar, secundarizar) e refere-se a uma situação em que alguém se alheia da sua companhia, em situações supostamente de convívio e diálogo, para dar atenção ao seu telemóvel. Mais do que uma interrupção circunstancial ou distracção momentânea, trata-se de uma prática cuja frequência implica um esvaziamento das relações — dos lugares profissionais aos espaços mais íntimos. A Time aborda a questão num eloquente artigo, propondo ainda este video.

O mapa de um outro Brasil

Há mais Brasil (cinematográfico, cultural, humano) para além da rotina das novelas. Exemplo: No Intenso Agora, de João Moreira Salles — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Março).

Ainda o Brasil cinematográfico... E, sobretudo, o reconhecimento de que a ocupação do espaço audiovisual pelo modelo “telenovelesco” (de raiz brasileira, precisamente) continua a secundarizar uma cinematografia que, afinal, passámos a conhecer tão mal. Quando alguns políticos insistem no discurso mais ou menos redentor de uma “irmandade” cultural Portugal/Brasil, seria interessante saber o que pensam — se é que já pensaram no assunto — deste desnível de conhecimento mútuo, consolidado ao longo de quatro décadas de poder dominante das novelas.
É neste contexto que o filme No Intenso Agora, de João Moreira Salles, surge como um “ovni” que importa conhecer e celebrar. Desde logo porque estamos perante um trabalho documental que não se esgota no cliché pitoresco segundo o qual as memórias brasileiras seriam apenas uma monótona colagem de Carnaval e bossa nova... Mais do que isso, este é um filme que se coloca no interior de uma questão actualíssima de representação e pensamento. A saber: como revisitar o nosso próprio passado, reinscrevendo-o no presente que partilhamos com os outros?
O cineasta brasileiro evoca as transformações da década de 1960, escolhendo como núcleo narrativo e simbólico do seu trabalho os acontecimentos de Maio 68, em França. Aquilo que o interessa não é exactamente a “descrição” dos factos, mas sim o modo como os factos se fizeram imagens (e sons) que todos herdámos. Observe-se, em particular, a surpreendente variedade de documentos audiovisuais sobre Daniel Cohn-Bendit: em vez de uma banal exaltação do líder mitológico, deparamos com uma elaborada reflexão sobre o modo como Cohn-Bendit foi protagonista paradoxal, por vezes incauto, de um tempo em que as imagens passaram a confundir-se, de forma cada vez mais perversa, com os enunciados políticos.
Mas o filme não se encerra no didactismo desse trabalho. No Intenso Agora pode mesmo resumir-se como um obsessivo ziguezague entre as memórias colectivas de Maio 68 e uma evocação profundamente individual e, em última instância, confessional. Através dos filmes feitos por sua mãe, numa viagem à China também em meados dos anos 60, João Moreira Salles relembra a sedução pontual do maoísmo, criando um contraponto fascinante: entre o particular e o geral, das ruas agitadas de Paris aos cenários coloridos das paradas chinesas, compreendemos que a história de um determinado momento é sempre um labirinto aberto. Com maior ou menor convicção, é através dele que desenhamos o mapa da nossa identidade.

A realidade virtual, ma non troppo

Tye Sheridan, Ready Player One
Com Ready Player One, Steven Spielberg mostra-se disponível para as aventuras da realidade virtual, e também sensível às suas limitações — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Março), com o título 'Novas aventuras das imagens visíveis e invisíveis'.

Face ao novo filme de Steven Spielberg, Ready Player One: Jogador 1, não podemos deixar de sublinhar a actualidade temática e simbólica, porventura política, da realidade virtual (RV). E lembrar, pelo menos, um importante antecedente. Aconteceu em Maio de 2017: uma das grandes sensações da 70ª edição do Festival de Cannes foi Carne y Arena, de Alejandro González Iñárritu, a “primeira instalação de realidade virtual” acolhida pelo certame. A sua atracção passava também por algum “secretismo”: os jornalistas interessados deviam inscrever-se para aceder ao evento, encarregando-se o próprio festival de os transportar até um aeródromo nos arredores de Cannes onde, num enorme hangar, tinha sido montada a instalação.
Iñárritu encenava a odisseia de um grupo de clandestinos na fronteira entre México e EUA, facultando ao espectador, munido dos óculos de RV, a possibilidade de “circular” no interior do cenário, escolhendo sucessivos pontos de observação. Os resultados suscitaram muitas e interessantes reflexões sobre o futuro das imagens que, em todo o caso, terão reconhecido uma diferença essencial: já não estávamos perante um objecto de raiz cinematográfica. Isto porque a percepção do espaço, seu enquadramento e composição, já não resultava apenas do trabalho de encenação do realizador, dependendo dos movimentos do espectador munido com o seu aparato de RV.
Sensível à questão, o próprio Spielberg tem lembrado tal arbitrariedade formal a propósito deste filme (veja-se a entrevista que deu ao canal britânico ITV, disponível no YouTube). Dito de outro modo: para ele, não se tratou de criar um objecto de RV, mas sim de imaginar um mundo não demasiado futurista (2045) em que os poderes das imagens virtuais passaram a integrar todos os recantos do quotidiano. Diz um dos cartazes de Ready Player One: Jogador 1: “Aceita a tua realidade... ou luta por uma melhor”. O que, ironicamente, pode ser entendido como uma derivação moral do preceito consagrado, em Cannes, pelo cartaz de Carne y Arena: “Virtualmente presente, fisicamente invisível”.
Provavelmente, o filme de Spielberg vai inscrever-se na história do cinema menos como uma abertura para as maravilhas prometidas da RV, mais como uma sistematização das inquietações que nascem da sua expansão. De tal modo que podemos mesmo perguntar se não está a ser abalada a dimensão mais humana do espectáculo cinematográfico. A saber: os actores.
Porquê? Porque, mesmo não conhecendo as atribulações tecnológicas do cinema no século XXI, o espectador não poderá deixar de sentir que o trabalho de representação dos actores passou também a ser executado em cenários virtuais (literalmente invisíveis no momento físico da rodagem). Daí o paradoxo visceral em que Spielberg se situa: reconhecer que a realidade virtual pode evoluir contra o cinema e, apesar de tudo, fazer... um filme.