KATHRYN BIGELOW — dois Oscars por Estado de Guerra (filme e realização) |
Debater a figuração dos afro-americanos por Hollywood? Sim, mas não escamoteando a pluralidade das memórias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Abril), com o título 'Memória cinéfila, precisa-se'.
Não será necessário voltar a sublinhar a importância política e simbólica da revalorização das personagens afro-americanas nos filmes de Hollywood. Mais do que isso: a sua inscrição num movimento transversal a toda a sociedade americana. Como muitos fenómenos que adquirem expressão panfletária, também este tem gerado o seu recalcado, por vezes reforçando uma tendência pueril de todo o espaço mediático. A saber: o irresponsável apagamento da memória.
Memória cinéfila, antes do mais. Repare-se nas múltiplas celebrações do filme de aventuras Black Panther, motivadas pelo seu elenco de intérpretes afro-americanos. Não quero esconder que Black Panther me parece (mais) uma banal variação dos formatos de espectáculo promovidos pelos estúdios Marvel. Mas como fazer passar a ideia pedagógica de que aquilo que está em jogo não é um concurso mais ou menos gritado entre “bons” e “maus” filmes? Ou seja: como é possível exaltar a dimensão afro-americana do elenco como se fosse um acontecimento sem precedentes? Onde está o didactismo jornalístico para recordar que o revolucionário Otto Preminger (1905-1986) dirigiu um elenco totalmente afro-americano em Carmen Jones? Lembrando, já agora, que isso não teve chancela da Marvel, mas sim da 20th Century Fox, tendo acontecido, não no mês passado, mas em... 1954!
Na compreensão da complexidade da figuração dos afro-americanos no cinema dos EUA, onde estão também os artigos que recordem o papel decisivo de um actor como Sidney Poitier ao longo das décadas de 1950/60? Isto sem esquecer que Spike Lee, dos mais brilhantes no tratamento das temáticas afro-americanas, possui uma filmografia admirável cuja primeira longa-metragem, Os Bons Amantes, data de 1986.
Entre os filmes sacrificados em toda esta dinâmica está o prodigioso Detroit, lançado no Verão de 2017. Realizado por Kathryn Bigelow, nele se evocam os motins de 1967 naquela cidade americana, em particular os acontecimentos trágicos no Motel Algiers — é uma abordagem tanto mais incisiva e perturbante quanto desvenda o racismo de brancos contra negros como entidade que contamina os mais esquecidos interstícios do quotidiano.
Talentosa retratista das convulsões históricas do seu país, Bigelow, convém lembrar, é a única mulher que já ganhou um Oscar de realização (em 2010, com Estado de Guerra, também eleito melhor filme do ano), mas o seu Detroit foi rasurado de todos os actuais debates — e até dos Oscars, onde não obteve uma única nomeação. O filme, entretanto, saíu em DVD.