Há mais Brasil (cinematográfico, cultural, humano) para além da rotina das novelas. Exemplo: No Intenso Agora, de João Moreira Salles — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Março).
Ainda o Brasil cinematográfico... E, sobretudo, o reconhecimento de que a ocupação do espaço audiovisual pelo modelo “telenovelesco” (de raiz brasileira, precisamente) continua a secundarizar uma cinematografia que, afinal, passámos a conhecer tão mal. Quando alguns políticos insistem no discurso mais ou menos redentor de uma “irmandade” cultural Portugal/Brasil, seria interessante saber o que pensam — se é que já pensaram no assunto — deste desnível de conhecimento mútuo, consolidado ao longo de quatro décadas de poder dominante das novelas.
É neste contexto que o filme No Intenso Agora, de João Moreira Salles, surge como um “ovni” que importa conhecer e celebrar. Desde logo porque estamos perante um trabalho documental que não se esgota no cliché pitoresco segundo o qual as memórias brasileiras seriam apenas uma monótona colagem de Carnaval e bossa nova... Mais do que isso, este é um filme que se coloca no interior de uma questão actualíssima de representação e pensamento. A saber: como revisitar o nosso próprio passado, reinscrevendo-o no presente que partilhamos com os outros?
O cineasta brasileiro evoca as transformações da década de 1960, escolhendo como núcleo narrativo e simbólico do seu trabalho os acontecimentos de Maio 68, em França. Aquilo que o interessa não é exactamente a “descrição” dos factos, mas sim o modo como os factos se fizeram imagens (e sons) que todos herdámos. Observe-se, em particular, a surpreendente variedade de documentos audiovisuais sobre Daniel Cohn-Bendit: em vez de uma banal exaltação do líder mitológico, deparamos com uma elaborada reflexão sobre o modo como Cohn-Bendit foi protagonista paradoxal, por vezes incauto, de um tempo em que as imagens passaram a confundir-se, de forma cada vez mais perversa, com os enunciados políticos.
Mas o filme não se encerra no didactismo desse trabalho. No Intenso Agora pode mesmo resumir-se como um obsessivo ziguezague entre as memórias colectivas de Maio 68 e uma evocação profundamente individual e, em última instância, confessional. Através dos filmes feitos por sua mãe, numa viagem à China também em meados dos anos 60, João Moreira Salles relembra a sedução pontual do maoísmo, criando um contraponto fascinante: entre o particular e o geral, das ruas agitadas de Paris aos cenários coloridos das paradas chinesas, compreendemos que a história de um determinado momento é sempre um labirinto aberto. Com maior ou menor convicção, é através dele que desenhamos o mapa da nossa identidade.