terça-feira, abril 03, 2018

O mistério de Stéphane Audran

A MULHER INFIEL (1969)
Stéphane Audran e Michel Bouquet
Stéphane Audran, falecida aos 85 anos, nunca foi uma estrela, mas emerge como uma figura central nos tempos da Nova Vaga francesa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 Abril).

A notícia da morte da actriz francesa Stéphane Audran (a 27 de Março, contava 85 anos) remete-nos para um tempo cinematográfico em tudo e por tudo diferente do presente. Porque a associamos de imediato à Nova Vaga francesa, sobretudo através dos filmes em que foi dirigida por Claude Chabrol (1930-2010). Mas também porque há nela uma forma singular de ser actriz que se alheia da preocupação em garantir qualquer efeito ou estatuto de estrela.
Garantem as notícias que tal pose não pode ser dissociada da maneira como geria a sua existência privada. Jean-Pierre Mocky, que a dirigiu em Les Saisons du Plaisir (1988), recordou-a assim: “Stéphane era notável a representar mulheres livres e independentes como ela era na sua vida. Muitos cineastas apaixonaram-se por ela e, aliás, Claude Chabrol foi seu marido, transformando-a na sua actriz fetiche. Foi muito amada.”
Daí que seja francamente insuficiente a referência a A Festa de Babette (1987), de Gabriel Axel, dominante em quase todos os obituários de Audran. Terá sido, por certo, o título mais internacional da actriz, e tanto mais quanto valeu à produção dinamarquesa o primeiro Óscar de melhor filme estrangeiro. Em qualquer caso, é sobretudo ao longo das décadas de 60/70 que encontramos os seus momentos mais prodigiosos, a começar, claro, pelos dramas de Chabrol, incluindo a fulgurante trilogia constituída por A Mulher Infiel (1969), O Carniceiro (1970) e A Ruptura (1970).
Num tempo como o nosso em que tanto se discutem as condições “correctas” de figuração do feminino, Audran seria, por certo, uma actriz dispensável. Porque banalizava as personagens que interpretou? Bem pelo contrário. Havia nela um mistério que subtraía essas personagens a qualquer domínio previamente codificado, fosse ele psicológico ou sociológico. Em particular com Chabrol, Audran soube encarnar a incompreensão mútua dos dois sexos e, no limite, a menos romântica das leis afectivas. A saber: a sexualidade não é um processo de revelação automática de dois seres humanos, antes uma aventura sem princípio nem fim em que os enigmas de cada um (para si e para o outro) tendem a multiplicar-se.
Enfim, importa relativizar tão sedutora propensão trágica, lembrando também a ironia com que Audran sabia contaminar muitas das suas personagens, não poucas vezes ajudada pelo implacável sarcasmo de Chabrol. Talvez possamos dedicar-lhe como epitáfio o título desse filme de génio em que, em 1972, foi dirigida por Luis Buñuel: O Charme Discreto da Burguesia.