segunda-feira, dezembro 31, 2012

A IMAGEM: Herb Ritts, 1987

HERB RITTS
David Bowie
1987

A IMAGEM: Júlio Pomar, 1983

JÚLIO POMAR
Poe, Pessoa e o corvo
1983

A IMAGEM: Raymond Depardon, 1995

RAYMOND DEPARDON
Tchad, Monte Guera
1995

A IMAGEM: Paul Cézanne, c. 1890

PAUL CÉZANNE
Natureza morta com maçãs
c. 1890

Um Feliz 2013!

FOTO: Shakil Adil / AP
Karachi, 13 Nov. 2012: "Diwali - Festival das luzes", tradição Hindu
(2012 Year in Pictures / 'The Big Picture')

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Três canções para encerrar 2012. Com fotos de um Feliz Ano Novo!

>>> ANNE SOFIE VON OTTER: Ah! quel dîner!, ária da ópera bufa Le Périchole, de Jacques Offenbach — concerto em Paris, 1992.


>>> CARLY RAE JEPSEN: Call Me Maybe, do seu álbum de estreia (Kiss, 2012) — bastidores de Late Night with Jimmy Fallon, com Jimmy Fallon e The Roots.


>>> JUDY GARLAND: Get Happy, canção por ela interpretada no filme Summer Stock/Festa no Campo (1950), de Charles Walters — gravação do programa televisivo The Judy Garland Show (1963-64).

Os "pequenos" do futebol!

Aleluia!
Saúde-se, com veemente entusiasmo, a manchete do derradeiro dia de 2012 no jornal A Bola. Por uma vez, um jornal desportivo contraria a formatação corrente dos discursos sobre o futebol, dando o devido (e merecido) destaque às proezas dos clubes "pequenos".
Acima de tudo, atitudes como esta podem ajudar a combater a grosseira clubite aguda que grassa no espaço de confronto dos grandes (não poucas vezes agravada por alguns debates televisivos, no mínimo, pouco felizes). Afinal de contas, a vitalidade do futebol — e o gosto pela sua pluralidade — passa também por esse fundamental factor educacional: qualquer "pequeno" pode ser "grande", qualquer "grande" nunca o é de forma eterna. Observe-se a vitalidade (inclusive comercial, com estádios quase sempre cheios) do futebol inglês e... reflicta-se sobre as diferenças.

Novas aventuras de Tom Cruise

Subitamente, um herói que parte de um modelo convencional, ao mesmo tempo que actua para além das regras mais previsíveis: Tom Cruise está de volta assumindo a personagem de Jack Reacher — estes textos foram publicados no Diário de Notícias (27 Dezembro), com os títulos, respectivamente, 'Retrato de um herói que pensa' e 'Tom Cruise regressa aos "filmes de acção"'.

Numa cena de Jack Reacher, o investigador e a advogada de defesa do suspeito, respectivamente Tom Cruise e Rosamund Pike, analisam a complexidade do caso que enfrentam. É um momento tradicional: trata-se de fazer um ponto da situação que ajude o próprio espectador a organizar ideias, intensificando o subtexto romântico que já começou a funcionar (Cruise e Pike são, aliás, impecáveis na subtil exploração desse subtexto). Cliché mil vezes repetido, favorecido pela intimidade da situação: uma personagem diz à outra que pegue numa peça de roupa e se cubra. Acontece que, desta vez, é Cruise que está em tronco nu. Mais do que isso: ele aproxima-se dela; ela estende a mão, aparentemente para o tocar; ele deixa cair qualquer coisa na mão dela. O quê? As chaves do carro para ela se ir embora...
São momentos de calculada ironia que resumem a lógica deste cinema de segundo grau, demasiado consciente das suas próprias heranças e, por isso mesmo, disponível para reconverter as regras mais clássicas do seu imenso património. Em boa verdade, são momentos que podem simbolizar todo um vasto e diversificado processo de revisitação do classicismo de Hollywood, iniciado pela geração de cineastas como Arthur Penn, Alan J. Pakula e Sydney Pollack (Cruise, recorde-se, ainda trabalhou sob a direcção de Pollack, em A Firma, de 1993).
Há, assim, uma desconcertante estranheza na realização de Christopher McQuarrie (também responsável pela adaptação do romance de Lee Child em que o filme se baseia). Porque Reacher/Cruise parece ilustrar os modelos correntes da “acção” e dos “efeitos especiais” mas, ao mesmo tempo, possui qualquer coisa de eminentemente frio e cerebral. Nesta época de telenovelas e reality shows, isso é precioso. Ou seja: uma personagem que pensa.

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É bem verdade que muito da carreira de Tom Cruise se decidiu em lendários confrontos com notáveis veteranos de Hollywood. Paul Newman, por exemplo, com quem contracenou em A Cor do Dinheiro (1986), sob a direcção de Martin Scorsese; ou Dustin Hoffman, seu companheiro (e irmão!) no elenco de Rain Man (1988), de Barry Levinson. Em todo o caso, a sua popularidade foi-se alicerçando através de personagens ligadas aos tradicionais action films, a começar por Top Gun (1986), um retrato da elite dos pilotos de aviação, encenada como uma banda desenhada por Tony Scott. Depois, a personagem do agente secreto Ethan Hunt, em Missão Impossível (1996), de Brian De Palma, transformou-se numa espécie de “alter ego” da identidade cinematográfica do actor, gerando nada mais nada menos que três sequelas; o quinto título da série já consta da sua agenda, embora com lançamento previsto apenas para 2015.
De acordo com notícias recentes, a direcção de Missão Impossível 5 deverá pertencer a Christopher McQuarrie, precisamente o realizador do novíssimo filme de Cruise, Jack Reacher. O seu nome está ligado a Os Suspeitos do Costume (1995), de Bryan Singer, objecto de culto do moderno policial que lhe valeu o Oscar de melhor argumento. Aliás, a sua colaboração com Cruise começou também através do mesmo cineasta: foi McQuarrie que escreveu o drama de guerra Valquíria (2008), evocação de uma conspiração para matar Adolf Hitler, com Singer a dirigir e Cruise a protagonizar.
O ponto de partida de Jack Reacher é um dos livros (o nono, num total de dezassete) de Lee Child centrados na personagem de Reacher (título original: One Shot, publicado em 2005). Estamos perante um registo de thriller que, a pouco e pouco, se transfigura em verdadeiro exercício mental de investigação e decifração. Muito desse efeito provém do cuidado com que McQuarrie e Cruise quiseram fugir ao estereótipo do tradicional investigador policial. De facto, Reacher começa por distinguir-se pela sua bizarra solidão: sem lugar certo, alheio a qualquer enquadramento institucional, ele é aquele que, como uma aparição, surge do “nada” para corresponder ao pedido de um ex-companheiro do exército acusado de ter morto, a sangue frio, à distância, cinco pessoas que passavam numa zona pedonal da cidade de Pittsburgh.
Para além das muitas diferenças de ambiente e estilo, apetece dizer que, mesmo com as incontornáveis cenas de acção, Jack Reacher possui algo de um clássico “mistério-até-ao-fim” assinado por Agatha Christie. Além do mais, a relação de Reacher com a advogada de defesa (Rosamund Pike) do suspeito retoma um registo de ambíguo romantismo pouco frequente em títulos recentes, claramente devedor de muitas variações do filme noir, em especial das décadas de 1930/40.
Para Tom Cruise, a aposta em Jack Reacher envolverá, talvez, a possibilidade de criação de uma nova “franchise”. Seja como for, nos próximos dois anos, o domínio de eleição de Cruise parece ser a ficção científica, através de duas aventuras já anunciadas: Oblivion (2013), de Joseph Kosinski, e All You Need Is Kill (2014), de Doug Liman.

domingo, dezembro 30, 2012

Para ouvir Jonny Greenwood

Simplifiquemos, para já: The Master, o novo filme de Paul Thomas Anderson — estreia portuguesa a 7 de Fevereiro, com o título O Mentor — será, por certo, um dos mais fascinantes objectos do nosso ano cinematográfico de 2013. Com Philip Seymour Hoffman, Joaquin Phoenix e Amy Adams, nele se renova a colaboração de Anderson com Jonny Greenwood (Radiohead), cinco anos depois de There Will Be Blood/Haverá Sangue. A banda sonora de Greenwood é um prodígio de composição e articulação dramática com a acção, ecoando o próprio ziguezague emocional do filme — podemos ouvi-la, incluindo alguns temas que ficaram fora da versão final do filme, no site da Weinstein Company.

O Natal da publicidade

[ 1936 ]
Que a publicidade é uma das linguagens mais poderosas na representação & normalização do quotidiano, eis uma evidência que quase todos (a começar pelos publicitários...) evitam enfrentar. Em televisão, por exemplo: como avaliar os valores sociais sem ter em conta a sua abordagem nos espaços publicitários? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Dezembro).

Não faz sentido alimentarmos qualquer cinismo contra a presença dos anúncios em televisão: escusado será dizer que a publicidade é um factor essencial de qualquer gestão televisiva. Mais do que isso: no contexto português, são, no mínimo, legítimas as preocupações dos que encaram com cepticismo uma eventual proliferação de canais; afinal de contas, não será apenas por haver mais canais que o volume de investimentos publicitários vai aumentar de forma mais ou menos mágica...
Dito isto, vale a pena lembrar que a “naturalidade” com que, quase sempre, se encara a publicidade é profundamente equívoca. Assim, nos anúncios encontramos ecos muito directos dos mais diversos objectos do dia a dia, desde os telemóveis aos detergentes para a roupa; ao mesmo tempo, porém, é raro questionarmo-nos — e questionar os próprios anúncios — sobre o modo como neles se apresentam (e representam) esses objectos, através deles elaborando discursos mais ou menos normativos sobre relações sociais, familiares e sexuais.
É uma discussão vasta que, infelizmente, no nosso país, está em grande parte por fazer. Em todo o caso, vale a pena registar as tendências gerais desta época natalícia. De facto, em termos globais, a publicidade tende a construir uma imagem radiosa e libertadora do tempo que vivemos, ironicamente dispensando a sugestão de “crise” que passou a contaminar a maior parte dos discursos televisivos.
Se há ou não crise, eis o que parece um detalhe irrelevante. De acordo com o tom dominante dos anúncios que nos chegaram este Natal, vivemos um tempo de exaltada e exaltante euforia consumista em que, adquirindo automóveis ou perfumes, sem esquecer os jogos de vídeo, estamos condenados a ser felizes.
Daí uma evidência que importa registar: assumindo uma vocação que já foi dos políticos, muitos discursos publicitários empenham-se em garantir-nos a felicidade como coisa mais ou menos determinista, automática e transparente. Seria interessante saber como é que esses mesmos políticos, de direita e de esquerda, encaram esta sua perda de poder simbólico.

Harry Carey Jr. (1921 - 2012)

Foi uma presença mais ou menos discreta, mas inesquecível, de muitos clássicos do western: o actor Harry Carey Jr. faleceu no dia 27 de Dezembro, num hospital de St. Barbara, California — contava 91 anos.
Tal como a mãe, Olive Carey (1896–1988), e o pai, Harry Carey (1878–1947), Harry Carey Jr., também construiu a sua carreira (e prestígio) como um excelente actor secundário. Muito amigo de John Ford, surgiu em alguns dos seus mais admiráveis westerns, incluindo She Wore a Yellow Ribbon/Os Dominadores [trailer] (1949), The Searchers/A Desaparecida (1956) e Two Rode Together/Terra Bruta (1961). Trabalhou também frequentemente com Howard Hawks, nomeadamente em Red River/Rio Vermelho (1948), título em que o pai também participa, embora sem que partilhem qualquer cena — foi também o primeiro de onze filmes em que contracenou com John Wayne. Presença regular em cinema e televisão até finais da década de 80, possui uma filmografia com mais de uma centena e meia de títulos. Alguns dos cineastas revelados durante os anos 60/70 convidaram-no para pequenos papéis de homenagem: foi o caso de Joe Dante (Gremlins, 1984), Peter Bogdanovich (Máscara, 1985) e Robert Zemeckis (Regresso ao Futuro III, 1990).


>>> Obituário no Hollywood Reporter.

Fontella Bass (1940 - 2012)

Figura marcante do rhythm and blues e da música soul, a cantora Fontella Bass faleceu na sua cidade natal, St. Louis, Missouri, no dia 26 de Dezembro, na sequência de complicações decorrentes de um ataque cardíaco sofrido poucas semanas antes — contava 72 anos.
A sua formação passou pela inspiração da mãe, Martha Bass, cantora de gospel. A participação na banda de Little Milton e, depois, as colaborações com o trompetista Lester Bowie (com quem casou, em 1965) alargaram o seu território criativo e comercial, conseguindo, em 1965, um grande sucesso com Rescue Me [video]. Don't Mess Up a Good Thing e You'll Miss Me (When I'm Gone) são outras referências emblemáticas da sua carreira. Com o Art Ensemble of Chicago, integrando Bowie, gravou, em Paris, dois álbuns: Art Ensemble of Chicago with Fontella Bass e Les Stances a Sophie (ambos de 1970). No começo dos anos 70, para criar os seus quatro filhos, decidiu afastar-se da música, mas nunca se retirou por inteiro, tendo participado esporadicamente em gravações e programas de rádio — o seu derradeiro álbum, Travelin', surgiu em 2001.


>>> Obituário no New York Times.

A nostalgia de Leos Carax

Herdeiro directo da Nova Vaga francesa, Leos Carax continua a sua deambulação por um cinema inevitavelmente (e, apetece dizer, intransigentemente) nostálgico este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Dezembro), com o título 'A infinita nostalgia da Nova Vaga'.

O realizador Leos Carax nasceu em 1960, quer dizer, numa época em que os primeiros filmes da Nova Vaga (O Acossado, de Godard, Os 400 Golpes, de Truffaut, etc.) marcavam de forma decisiva a paisagem do cinema francês. A data envolve qualquer coisa de inevitavelmente simbólico, sobretudo quando avançamos até 1984 e descobrimos Boy Meets Girl, primeira longa-metragem assinada por Carax. De facto, nessa história de um amor assombrado, encenada em nostálgicas imagens a preto e branco (assinadas por esse notável director de fotografia que foi Jean-Yves Escoffier), descobrimos a energia paradoxal de alguém que, embora afirmando as singularidades da sua geração, não abdica de explicitar uma filiação, estética e mitológica, nas atribulações da Nova Vaga: Carax é um discípulo que não se fica pela citação dos mestres, relançando os seus desafios de linguagem.
Em 2012, o filme Holy Motors surge como mais um capítulo dessa infinita “dependência”. Através das bizarras deambulações de Denis Lavant (actor fetiche de Carax), deparamos com uma visão do tecido urbano em que, muito à maneira do “espírito” crítico de alguns títulos marcantes da Nova Vaga, a pulsão realista pode coexistir com o mais inclassificável delírio surrealista. Por mim, confesso que prefiro o desencanto romântico que Carax leva ao paroxismo em Pola X (1999); seja como for, Holy Motors é um objecto de pura e salutar resistência a qualquer formatação do olhar, celebrando o cinema como um jogo obstinado entre as nossas heranças e a urgência do presente. Para que o quadro fique completo, Carax integra no seu elenco Édith Scob, actriz lendária de La Tête contre les Murs (1959) e Les Yeux Sans Visage (1960), dois filmes do mais “não-alinhado” autor da Nova Vaga: Georges Franju.

>>> Édith Scob em duas imagens separadas por 52 anos: Les Yeux sans Visages + Holy Motors.


sábado, dezembro 29, 2012

5 x "Vertigo" [5]

[ 1 ] [ 2 ] [ 3 ] [ 4 ]

Provavelmente, está por fazer o mais radical ensaio sobre o ambíguo efeito de verdade que o cinema instalou na nossa história do século XX. Poderíamos sugerir um título adequado: "A impossibilidade do amor, ou Hitchcock e os espelhos". Kim Novak e James Stewart pressentem o seu reflexo, mas não o vêem... É o espectador que, por obra e graça de uma mise en scène obsessiva, entra numa imagem que, por sua vez, expõe a cruel coexistência dos corpos e seus fantasmas no espelho. Alguém diz: "Amo-te, perco-me em ti."

Paulo Rocha (1935 - 2012)


Foi um dos autores emblemáticos do Cinema Novo português, desenvolvendo depois uma obra em que a nossa identidade (afectiva e cultural) esteve sempre em jogo: Paulo Rocha faleceu, a 29 de Dezembro, num hospital do Porto — completara 77 anos no passado dia 22.
Começou por estudar Direito, mas a sua vida cedo se orientou para o universo cinematográfico, envolvendo-se no movimento cineclubista. Em 1959, em Paris, já frequentava o Institut des Hautes Études Cinématographiques (IDHEC que, em 1986, deu lugar a La Femis). Foi assistente de realização daquele que seria um dos seus autores de referência, Jean Renoir, no filme Le Caporal Épinglé/O Cabo de Guerra (1962). De regresso a Portugal, estreou-se na realização com Os Verdes Anos (1963), melodrama urbano em cenários das avenidas novas de Lisboa e um dos momentos simbólicos de eclosão do Cinema Novo. Assinaria ainda outra longa-metragem incontornável na história do cinema português da década de 60: Mudar de Vida (1966), tendo por pano de fundo as convulsões da emigração — em ambos os casos, a banda sonora tinha assinatura de Carlos Paredes [videos].
Foi um dos fundadores, e director, do Centro Português de Cinema, cooperativa de cineastas que, no período 1970-76 (tradicionalmente designado pela expressão "os anos Gulbenkian"), desempenhou um fundamental papel dinamizador da produção — O Passado e o Presente (1972), de Manoel de Oliveira, é um dos títulos gerados nessa conjuntura. Um dos objectos centrais da sua filmografia, A Ilha dos Amores (1982), sobre Wenceslau de Moraes, é indissociável da sua permanência no Japão (1975-1983), como adido cultura da Embaixada Portuguesa em Tóquio. Assinou dois títulos da série 'Cinéastes de notre temps', sobre Manoel de Oliveira (L'Architecte, 1993) e Shohei Imamura (Le Libre Penseur, 1995). O seu derradeiro filme estreado, Vanitas (2004), sobre o mundo da moda, marcou o reencontro artístico com Isabel Ruth, actriz de Os Verdes Anos e Mudar de Vida. Entretanto, Olhos Vermelhos (2011) permanece inédito.

>>> Teatro São Luiz, Lisboa, 1992: com Luísa Amaro (viola) e Paulo Curado (flauta), Carlos Paredes interpreta os temas de Os Verdes Anos e Mudar de Vida.




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A história do cinema português está cheia de processos de invisibilidade. Por exemplo, A Ilha dos Amores, de Paulo Rocha: produzido em 1982, presente na secção competitiva do Festival de Cannes desse ano, estreou nas salas portuguesas em... 1991! Dito de outro modo: enquanto o país ia sendo submergido na interminável agonia das telenovelas, um filme como A Ilha dos Amores esperava uma década para ser projectado num ecrã de uma sala comercial.
A história do cinema saído das convulsões das novas cinematografias (França, Brasil, Checoslováquia, Portugal, etc.) é também uma história de muitos desequilíbrios deste género que a obra de Paulo Rocha pode simbolizar de forma directa, por vezes dramática. Para além dos limites ou contradições dos protagonistas dessas cinematografias — santificá-los nunca será uma boa maneira de os conhecer —, são criadores que viveram uma parte significativa do seu labor em paralelo com o triunfo dos padrões populistas das televisões (com resultados catastróficos que, todos os dias, contaminam o nosso viver quotidiano).
Daí a necessidade de valorizar e revalorizar um valor fulcral inerente à obra de Paulo Rocha: o empenho e a exigência em fazer um cinema que não desista do seu tempo, da possibilidade de o ler e habitar para além dos clichés que desumanizam as relações e congelam a alegria das linguagens. Veja-se e reveja-se Os Verdes Anos: a história do amor da criada e do sapateiro podia ser o ponto de partida para uma telenovela... Podia, mas não é: a sua verdade emocional e a atenção medódica ao factor humano conferem-lhe, a posteriori, um precioso valor crítico face à ditadura narrativa que, contra a singularidade do cinema, triunfou nos nossos ecrãs mais pequenos.

>>> Obituário no Diário de Notícias.
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Esta fotografia de Paulo Rocha (provavelmente durante a montagem de Os Verdes Anos) está publicada no site da Cinemateca Portuguesa — notícia sobre sessão especial de homenagem a Paulo Rocha: dia 2 de Janeiro, 21h30.

>>> 'Um cineasta do tempo presente' (JL).

A IMAGEM: Pavel Constantin, 2012

PAVEL CONSTANTIN
Optimismo

28-12-2012

sexta-feira, dezembro 28, 2012

O negrume de Kristina Train

Dark black / is the color of my life / since you've been gone... Ou seja: negro, muito negro, para além da noite. Mas, ao mesmo tempo, há uma luminosa energia na voz de Kristina Train, novaiorquina a residir em Londres. O seu segundo álbum (Spilt Milk tinha saído em 2009) é a prova muito real de que há uma paisagem intermédia entre a soul e a pop, contaminada pelo jazz, habitada por muitas e dramáticas maravilhas por descobrir. Com várias canções escritas com Ed Harcourt ou Martin Craft, Dark Black é uma preciosidade cujo negrume, estranhamente, possui virtudes acolhedoras — aqui fica uma ilustração eloquente: Dream of Me.

Marco Ferreri: uma trágica performance

No suplemento "QI" (Diário de Notícias, 22 Dez.), vários críticos recordaram edições em DVD que consideraram marcantes no ano de 2012. A minha escolha recaiu em A Grande Farra, num texto intitulado 'A morte como performance'.

Há qualquer coisa de fascinante e absurdo no reencontro, em DVD, com um filme como A Grande Farra (1973), de Marco Ferreri (1928-1997). Estamos perante um dos títulos emblemáticos de toda uma vaga de objectos (lembremos o caso lendário de O Último Tango em Paris, produzido um ano antes) que, na ressaca das ilusões e desilusões herdadas da década de 60, encenaram os valores e, sobretudo, os equívocos da chamada sociedade de consumo (na época, a simples aplicação da expressão “sociedade de consumo” implicava mesmo alguma contundência crítica). Agora, chegados à paz podre do DVD, verificamos que desapareceu a aura de escândalo que envolveu o lançamento de A Grande Farra: além de não se repetir, nem sequer parece fazer parte de muitas formas de (des)conhecimento histórico do filme e do seu contexto de produção.
Qualquer banal discurso de boas intenções dirá que a ausência de escândalo reflecte a “evolução” das sociedades e a sua crescente “maturidade”. Tenho sérias dúvidas. Basta olhar à nossa volta: haverá escândalo maior do que assistirmos todos os dias ao bombardeamento de uma enorme percentagem da população pelos horrores televisivos do Big Brother e seus derivados? E, no entanto, não só a indignação democrática opta quase sempre por um dourado silêncio de equívoca tolerância, como passámos a viver um tempo em que os maus resultados de uma equipa de futebol são acompanhados por mais agitação mediática do que o “perverso” Ferreri alguma vez conseguiu gerar...
É por isso que a importância da edição de A Grande Farra não se reduz ao perene impacto e capacidade de perturbação de um filme que encena um grupo de quatro amigos (Marcello Mastroianni, Philippe Noiret, Michel Piccoli e Ugo Tognazzi) envolvidos numa trágica performance: a de comerem, comerem, comerem... até à morte. Há nessa performance a afirmação de vitalidade de um cinema (europeu, hélas!) que se perfila na linha da frente das convulsões sociais, funcionando como espelho das suas ânsias e perplexidades.
O filme é tanto mais cruel e desencantado quanto evita definir os seus anti-heróis a partir de qualquer discurso de “reivindicação”, “queixa” ou “reparação” (temas que se tornaram correntes no pobre imaginário televisivo, desde os talk shows aos noticiários). Fiel ao seu gosto irónico e surreal, exemplarmente condensado nesse filme inclassificável que é Dillinger Morreu (1969), Ferreri vai permitindo que se instale uma bizarra sensação de pacificação, não por acaso devedora da presença da única personagem feminina (Andréa Ferreol), distante, sem deixar de ser maternal.
Em 2012, no contexto português, A Grande Farra foi um filme (não faltaram outros exemplos, felizmente) capaz de nos fazer lembrar que o cinema europeu possui uma memória muito própria cuja herança plural, mais do que nunca, importa sistematizar, conhecer e divulgar. É bem verdade que o mercado do DVD, também ele afectado por uma crise endémica, não resolve tudo. Mas é bom saber que há condições para sermos espectadores, pelo menos, mais informados.

Gerry Anderson (1929 - 2012)

Produtor e realizador inglês, tem o seu nome especialmente ligado à animação com marionetas: Gerry Anderson faleceu no dia 26 de Dezembro, em Oxfordshire — contava 83 anos.
Envolvido na produção televisiva desde a década de 50, o seu trabalho (para o qual a sua mulher, Sylvia Anderson, foi fundamental) começou a adquirir evidência com a série infantil Supercar (1961-62), executada em supermarionation (termo que combina as palavras "super", "marioneta" e "animação"): o sistema, criado pela produtora APF, de Anderson e do director de fotografia Arthur Provis, utilizava marionetas tradicionais comandadas por sistemas eléctricos. A consagração viria com Thunderbirds (1965-66), série de ficção científica [video: genérico de abertura] rodada no mesmo sistema (na base do filme homónimo, com actores, rodado em 2004). Espaço: 1999 (1975-77), de novo em registo de ficção científica, mas agora com actores de carne e osso (Martin Landau, Barbara Bain, Barry Morse, etc.) daria a Anderson a dimensão de autor de culto. Sempre activo, chegou a envolver-se num projecto para a personagem de James Bond, não concretizado devido a desentendimentos com os produtores. Uma das suas derradeiras produções foi New Captain Scarlet (2005), remake totalmente digital de outra série, Captain Scarlet and the Mysterons (1967), rodada em supermarionation.


>>> Obituário na BBC.

Nicole Kidman e os outros

Nomeada como actriz secundária para os Globos de Ouro, Nicole Kidman é, de facto, o centro simbólico de The Paperboy - Um Rapaz do Sul, contundente retrato das convulsões de uma cidade do Sul dos EUA — estes textos foram publicados no Diário de Notícias (26 Dezembro), com os títulos, respectivamente, 'Nicole Kidman filma contra a sua imagem de glamour' e 'Elogio dos actores e dos corpos'.

O menos que se pode dizer sobre um filme como The Paperboy, entre nós lançado com o subtítulo Um Rapaz do Sul, é que dificilmente encaixa em qualquer modelo corrente do cinema americano, quer de Hollywood, quer das áreas da produção independente. Em boa verdade, estamos perante um objecto que nos remete para a herança de algumas obras emblemáticas dos anos 50, retratando vivências específicas do Sul dos EUA, como Baby Doll (1956), de Elia Kazan, Gata em Telhado de Zinco Quente (1958), de Richard Brooks, ou Paixões que Escaldam (1958), de Martin Ritt. Ponto comum a todos esses títulos: o jogo de contrastes e contradições entre um sistema de vida gerido por regras morais muito estritas e um submundo de comportamentos que, de forma mais ou menos consciente, desafiam essas regras e respectivos valores.
Baseado no romance homónimo de Pete Dexter [foto] (distinguido com o prémio PEN Center USA de 1996), o filme teve a sua estreia absoluta no Festival de Cannes, no passado mês de Maio. Realizado por Lee Daniels, o cineasta que dirigiu o aclamado Precious (2009), sobre uma adolescente que tenta escapar a uma existência de repressão e continuados abusos sexuais, The Paperboy apresenta-se com a estrutura de um tradicional inquérito policial: um repórter (Matthew McConaughey) e o seu jovem irmão (Zac Ephron) tentam provar a inocência de um prisioneiro (John Cusack) condenado à pena de morte. Em todo o caso, os eventos vão adquirindo uma dimensão insólita através dessa singularíssima personagem que é Charlotte Bless, uma desconcertante femme fatale que se corresponde com o condenado, apostando num futuro duplamente radioso: primeiro, ajudando a provar a sua inocência; depois, acreditando que se casará com ele...
No papel de Charlotte, o filme possui um trunfo decisivo: a interpretação de Nicole Kidman. Mesmo não sendo a figura central do filme, é por ela que passa uma perturbação erótica que contamina todas as personagens e situações. Mais do que isso: sendo Charlotte uma figura que oscila entre uma sexualidade enigmática e uma postura mais ou menos grosseira, reforçada por uma desabrida linguagem, Nicole Kidman arrisca trabalhar, assim, contra a sua própria imagem de sofisticação e glamour (cristalizada em alguns dos anúncios, para perfumes ou relógios, em que tem participado).
Quando The Paperboy foi apresentado em Cannes, alguns observadores previram-lhe uma presença forte na temporada de prémios, no final do ano e começo de 2013. E é um facto que Nicole Kidman surge, para já, como uma das nomeadas para os Globos de Ouro, na categoria de melhor actriz secundária. O certo é que a fraca carreira nas salas dos EUA inverteu o seu favoritismo inicial. Ainda assim, não será arriscado supor que o filme pode vir a ter uma presença significativa na corrida para alguns Oscars, a começar pelo de melhor argumento adaptado (co-assinado por Lee Daniels e Pete Dexter). Seja como for, com ou sem prémios, The Paperboy fica como um dos objectos mais estranhos, e também mais sedutores, da produção americana de 2012.

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É verdade que algum jornalismo rotineiro só fala de filmes americanos a partir dos números de bilheteira. Como se a história do cinema (americano ou não) fosse uma banal variação sobre os valores do marketing... Não que se possa compreender essa história recalcando os mais diversos e complexos factores económicos. Acontece que a mentalidade do box office venera os relatórios financeiros, menosprezando todos os valores específicos dos filmes. Não haverá alternativa a tal visão?
Este ano, por exemplo, no top dos maiores sucessos nos EUA, desde Os Vingadores (1º lugar) até O Hobbit (para já, em 14º), é impossível encontrar um filme cujo trunfo promocional seja... um actor ou uma actriz! A estrela (star!), valor visceral da história clássica de Hollywood, tornou-se um frágil apêndice da vida financeira da maior parte dos filmes. Por exemplo, o magnífico The Paperboy, de Lee Daniels. É verdade que conta com Nicole Kidman, uma estrela realmente planetária, isto é, reconhecida e reconhecível por plateias de todo o mundo... Que lugar consegue na lista dos filmes mais rentáveis do ano? Pois bem, parece uma anedota mal contada, mas surge em nº 220.
A evidência cruel é esta: um cinema alicerçado em personagens de enorme complexidade psicológica está automaticamente condenado pelos padrões correntes do mercado. O absurdo de tudo isto é tanto maior quanto vivemos sob o jugo de uma cultura mediática (de raiz televisiva) que todos os dias nos massacra com estereótipos sexuais supostamente “chocantes”... The Paperboy, por sua vez, é um subtil retrato de um contexto perversamente erotizado, em que sexualidade e poder político se enredam de forma bizarra e perturbante. Será que o público dos “efeitos especiais” já não reconhece a vibração dos corpos vivos?

A IMAGEM: Mario Testino, 2012

MARIO TESTINO
Kate Moss
Vogue España, Dez. 2012

quinta-feira, dezembro 27, 2012

Jorge Jesus, herdeiro de Václav Havel?

Convenhamos que a ideia desta manchete do jornal A Bola é mais interessante do que gastar os dias a injectar a mente dos adeptos do futebol com a noção revanchista de que os resultados dos jogos são uma questão de "justiça" (se uma equipa passar 89 minutos fechada na sua área, receber 27 bolas no poste, mais 135 na barra e, no último minuto, conseguir ir lá à frente para ver um adversário fazer auto-golo, o que é que se faz: proclama-se a "injustiça" e manda-se repetir o jogo?...).
Em todo o caso, vale a pena perguntar que tipo de filosofia, desportiva ou não, justifica (e "justifica" não tem a ver com justiça, mas com justeza) que se apresente Jorge Jesus como herdeiro de Václav Havel? Em que medida a sua ousadia táctica — "Matic, Lima, Salvio, Enzo Pérez e Melgarejo são novidades na espinha dorsal do Benfica" — lhe confere uma dimensão simbolicamente equivalente aos democratas checos que protagonizaram a Revolução de Veludo?
Ou ainda: como entendemos as palavras de que nos apropriamos? Isto é: de que falamos quando falamos com as palavras com que outros, antes do nós, já falaram? Enfim (questão inerente a toda a arte moderna): qual o nosso conceito de citação?
Como contraponto interessante, eis um poema concreto de Václac Havel (traduzido por Eva Batlickova):

quarta-feira, dezembro 26, 2012

5 x "Vertigo" [4]

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Um pudor ancestral recobre esta imagem. Porque aquilo que James Stewart contempla em Kim Novak está para além da "coincidência" do arranjo do cabelo com o da figura do quadro (que ela, por sua vez, contempla). Ele sabe — e é um saber cristalino, silenciosamente casado com o irredutível da morte — que, mergulhando no continente negro que no cabelo se antecipa, ficará para sempre entregue à vertigem ("vertigo", hélas!) de saber que a mulher idealizada é sempre outra. Crueldade intolerável de Hitchcock: se amares serás punido por isso, diz ele. Aliás, filma ele.

RTP: com ou sem futuro?

Para onde vai a RTP? Qual a pertinência da noção de "serviço público" no futuro da RTP e de toda a televisão em Portugal? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Dezembro), com o título 'Para (não) acabar com a RTP'.

Termina o ano de 2012 sem que seja claro o destino da RTP. A mais recente proposta do governo (envolvendo a possibilidade de privatização de 49% da empresa) ficou suspensa nas suas indefinições: quais os efeitos sobre os restantes operadores da existência de um novo protagonista privado no mercado audiovisual, detendo 51% de um canal... público?
Nesta conjuntura de incertezas, alguns têm preferido demonizar o ministro Miguel Relvas. É sempre fácil convocar os bodes expiatórios mais à mão (afinal, continua a haver protagonistas da cena político-mediática que evocam o nome de José Sócrates como se daí nascesse um discurso transparente e indesmentível sobre todos os males acumulados na sociedade portuguesa). Não que, até agora, o ministro tenha apresentado uma visão sobre a televisão que seja uma obra-prima de argumentação política. Acontece que o seu impensado é tão só um caso pontual de uma saga com mais de três décadas. A saber: a indiferença da maioria da classe política, em todos os quadrantes, em relação à identidade social do espaço televisivo. Há uma maneira muito crua de dizer isto: todos os dias, a população é bombardeada com “reality shows” que desafiam os mais básicos princípios de dignidade humana garantidos pela lei; onde estão os políticos empenhados em questionar os poderes mediáticos, culturais e económicos de tais programas?
Confesso, por isso, o meu cepticismo perante alguns inflamados discursos que, dos sectores mais diversos, exaltam a defesa do “serviço público”. Desde logo, porque não detecto qualquer homogeneidade em tais discursos: não creio que estejam todos a dizer o mesmo quando aplicam a expressão “serviço público” e, em boa verdade, temo que alguns nunca tenham pensado naquilo que estão a dizer. Depois, porque quase todas essas vozes, defensoras do “serviço público”, mostram uma olímpica indiferença face a um valor absoluto da RTP. Qual? O património das suas imagens, isto é, o seu arquivo.
Este desabafo não envolve nenhuma certeza. Tenho cada vez mais dúvidas sobre as tradicionais definições de “serviço público”. Penso mesmo que a insistência na sua formulação apologética nos está a fazer passar ao lado do presente tecnológico e comunicacional da televisão, ao mesmo tempo que bloqueia qualquer projecto consistente para o seu futuro.
Habituei-me, há muitos anos, a ouvir coisas caricatas como essa que garante que os críticos querem que a televisão só passe “ópera & bailado”... Desisti mesmo de considerar que tal estupidez se possa contrariar por qualquer argumentação exigente e racional. Entretanto, não posso deixar de pensar que algumas formas efémeras de “desporto” político (como insultar quem está no governo, chame-se “Sócrates” ou “Relvas”) apenas servem para agravar os nossos dramas, neste caso criando condições cada vez mais propícias para que, um dia destes, já nem haja RTP.

As canções de 2012: Citizens

A canção (e o próprio teledisco, que é das coisas mais deliciosamente azeiteiras que vi nos últimos tempos) já vem de finais de 2011. Mas True Romance fez história em 2012, servindo de cartão de visita ao álbum de estreia dos londrinos Citizens, que contou com produção a cargo de Alex Kapranos, dos Franz Ferdinand.

Os melhores livros de 2012

E com os livros que fizeram a história de um ano de leituras ficam contadas as listas que dão conta de lançamentos que marcaram 2012. Foi um ano muito divido entre livros técnicos (sobretudo na área da música) e ficção (aqui acolhendo alguns títulos na área da BD) e, por interesse pessoal, com algum espaço ainda para a ciência e a história.

O melhor do ano ficou por conta de Fun Home, de Alison Bechdel, que mereceu o título de livro do ano para o New York Times em 2008 e que em 2012 teve tradução publicada entre nós. Como aqui mesmo escrevi há alguns meses, foram sete anos de trabalho para a autora (a criadora das tiras Dykes To Watch Out For). Não é exatamente uma BD nem a devemos descrever como uma novela gráfica, mas antes uma memória gráfica. Fun Home - Uma Tragicomédia Familiar (o título guarda um duplo sentido, uma vez que a casa de que se fala é, além de um espaço de família, uma casa funerária) é um percurso auto-biográfico da juventude da autora, Alison Bechdel, essencialmente focado em si e na sua relação com o seu pai, ambos homossexuais, cada qual descobrindo e vivendo contudo a sua sexualidade de modo diferente, acrescentando Alison que o pai era alguém que tratava os móveis como pessoas e as pessoas como móveis. Ainda nos espaços das graphic novels e BD destacam-se ainda as edições de O Juramento dos Cinco Lords, de Yves Sente e Andre Julliard, talvez a melhor aventura pós-Edgar P. Jacobs da dupla Blake & Mortimer, e Persepolis, de Marjane Satrapic, as memórias que já conhecíamos na versão que realizou para cinema.

A história do que fui lendo ao longo do ano passou ainda pela continuação da descoberta de duas obras que cada vez mais ganham por aqui um valor de referência. Por um lado Bruce Chatwin, de quem este ano a Quetzal lançou um livro de correspondência mas também Utz, um pequeno (mas soberbo) romance que nos transporta ao que foi a Checoslováquia e a um olhar crítico sobre vidas e hábitos do outro lado da Cortina de Ferro. Político é também o cenário da Berlim dos anos 30 que acolhe Mister Norris Muda de Comboio, que é já o quarto volume de obras de Isherwood que a mesma editora já lançou (sendo que este ano publicou ainda Encontro À Beira Rio). Entre o espaço da ficção assinale-se ainda a publicação pela Sextante de Um Dia Na Vida de Ivan Deníssovitch, gritante relato de vinte e quarto horas na vida de um prisioneiro de um gulag (experiência relatada sob profunda carga autobiográfica) e ainda uma maravilhosa coleção de pequenas narrativas de Ryunosuke Akutagawa, o pai do conto na literatura japonesa.

Nos departamentos do ensaio vale a pena assinalar (e sugerir a tradução e edição local) de How Music Works, uma série de reflexões de David Byrne sobre a música e a sua própria história pessoal como músico. Ao melhor que li este ano junte-se ainda mais um título de Antony Beevor sobre a II Guerra Mundial, neste caso um olhar focado sobre a queda do III Reich procurando compreender como um regime em colapso se manteve repressivo e implacável até ao fim. E ainda o contundente Pipocas e Temelóvel, onde Carlos Fiolhais e David Marçal desmontam os mitos da falsa ciência.

1. Fun Home, de Alison Bechdel (Contraponto)
2. Utz, de Bruce Chatwin (Quetzal)
3. How Music Works?, de David Byrne (Canongate Books Ltd)
4. Um dia Na Vida de Ivan Denissovich, de Alexandr Soljenintsin (Sextante)
5. Até Ao Fim, de Anthony Beevor (D. Quixote)
6. O Juramento dos Cinco Lords, de Yves Sente e Andre Julliard (ASA)
7. Mister Norris Muda de Comboio, de Christopher Isherwood (Quetzal)
8. Piopcas e Telemóvel, de Carlos Fiolhais e David Marçal (Gradiva)
9. Persepolis, de Marjane Satrapi (Contraponto)
10. Rashomon e Outras Histórias, de Ryūnosuke Akutagawa (Cavalo de Ferro)

Figuras de 2012: Músicos do Tejo


Um dos maiores feitos recentes da música clássica made in este lado da fronteira foi a edição em disco de La Spinalba, ópera do compositor português Francisco António de Almeida (1702-1755). Primeira gravação integral desta ópera com instrumentos de época, La Spinalba conta, além das vozes, com a preciosa colaboração dos Músicos do Tejo, sob direção de Marcos Magalhães. O disco (um triplo CD) foi lançado há poucas semanas pela Naxos.

Woodkid: um nome para 2013

Chama-se Yoann Lemoine, é francês e começou por se distinguir como realizador de telediscos, por exemplo de Rihanna, Katy Perry e Lana Del Rey (Born to Die e Blue Jeans são dele). Participou em alguns concertos de Lana Del Rey e adquiriu a sua própria identidade musical: Woodkid. O seu primeiro álbum, The Golden Age, já tem data de lançamento marcada: 18 de Março de 2013. Entretanto, começam a surgir os primeiros singles + telediscos: Iron e Run Boy Run. Em obsessivo e sofisticado preto e branco, parecem fazer parte de uma narrativa que, no limite, poderá englobar todas as 14 canções anunciadas para o álbum — têm a vertigem de uma aventura fantástica, monstros mais ou menos assustadores e cidades utópicas; ou seja: parece O Hobbit, de Peter Jackson, mas é francamente melhor.




>>> Site oficial de Yoann Lemoine.

terça-feira, dezembro 25, 2012

Charles Durning (1923 - 2012)

Actor do teatro e do cinema americano, Charles During faleceu no dia 24 de Dezembro, de causas naturais, na sua casa em Nova Iorque — contava 89 anos.
Foi um brilhante intérprete de papéis "de composição" (character actor), como tal nomeado duas vezes para o Oscar de melhor actor secundário: por A Melhor Casa de Prazer do Texas (1982), de Collin Higgins, e Ser ou Não Ser (1983), de Alan Johnson. Embora já tivesse surgido no elenco de Sisters (1973), de Brian de Palma, foi a personagem do polícia corrupto de A Golpada (1973), de George Roy Hill, com Paul Newman e Robert Redford, que consolidou a sua carreira em Hollywood. Vimo-lo em notáveis composições como: o polícia de Um Dia de Cão (1975), com Al Pacino; o homem de meia idade que se apaixona pela "actriz" (de facto, um homem disfarçado) de Tootsie (1982), de Sydney Pollack, com Dustin Hoffman; ou ainda o chefe da polícia que apoia o herói em Dick Tracy (1990), de Warren Beatty. Trabalhou regularmente até final, alternando cinema e televisão, construindo uma filmografia de cerca de duas centenas de títulos. Recordamo-lo, aqui, através do teledisco de uma canção de Shania Twain: Dance with the One that Brought You (1993), com realização de Sean Penn.


>>> Obituário no New York Times.

Explosions in the Sky: lentamente...

Memórias de Sam Peckinpah?... Talvez: há muito tempo que não se via uma tão obsessiva, elaborada e fascinante utilização da câmara (muitíssimo) lenta. Em todo o caso, não estamos em ambiente de western decadente. O que aqui se celebra é um retrato íntimo do território familiar, transfigurado num prodigioso teledisco da banda texana Explosions in the Sky: o som cristalino e envolvente, pop e sinfónico, encontra um prolongamento admirável no pequeno filme que Peter Simonite e Annie Gunn realizaram para o tema Postcard from 1952, do álbum Take Care, Take Care, Take Care (2011) — figura na lista dos "melhores telediscos de 2012" proposta pela revista Time.

segunda-feira, dezembro 24, 2012

Tarantino "dispensa" Frank Ocean

A notícia seria a revelação de uma canção original de Frank Ocean na banda sonora do novo filme de Quentin Tarantino, Django Unchained... O certo é que o realizador, embora reconhecendo a excelência dos resultados, não encontrou a "cena" onde pudesse inseri-la. Chama-se Wiseman e é uma belíssima reflexão sobre os caminhos cruzados do Bem e do Mal.

A beleza segundo Julião Sarmento

É, sem qualquer hesitação, um dos grandes acontecimentos culturais de 2012: a exposição de Julião Sarmento no Porto (Fundação de Serralves) — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Dezembro), com o título 'Nas palavras de Julião Sarmento'.

Na pintura e, de um modo geral, nas imagens de Julião Sarmento, a palavra disputa os poderes de figuração e comunicação. Discutindo a primazia de corpos e objectos, podemos ler sobre as mais diversas superfícies (pinturas, desenhos, etc.) expressões ou frases como ta bouche (“a tua boca”), flying to (“voando para”) ou please don’t ever leave me (“por favor nunca me deixes”). Não são explicitações da “mensagem” de cada obra, antes modos calculados, calculadamente perversos, de resistir à pedagogia tradicional que garante que “uma imagem vale mil palavras”.
Em boa verdade, uma palavra pode valer mil imagens... Num mundo dominado pela indiferenciação (televisiva) das imagens, Julião Sarmento insiste num outro programa pedagógico: o de garantir ao espectador que o seu olhar é sempre uma forma de leitura. Ou ainda (e porque esta é uma obra de paciente perscrutação das ambivalências do prazer): que o espectador não se escude no fingimento de quem apenas contempla o desejo do “outro” (pintor, fotógrafo, cineasta, etc.), já que o seu olhar é sempre um instrumento (ou como dizia o outro: uma máquina) desejante.
Há, por isso, um desconcertante efeito realista na notável exposição retrospectiva de Julião Sarmento, comissariada por João Fernandes e James Lingwood (patente em Serralves, até 3 de Março de 2013). Eis uma palavra insólita: “realismo”. Mas creio que a devemos entender no sentido mais radical que pode envolver. Que sentido é esse? Aquele que desenha uma fronteira intransponível entre o naturalismo chantagista do espaço televisivo e a singularidade de cada gesto artístico nascido de uma dúvida metódica sobre a muito ilusória transparência do mundo e dos seres humanos. O realismo é, assim, neste caso, o da própria verdade material e conceptual da obra. Tela. Papel. Acrílico. Madeira. Filme.
Julião Sarmento não se cansa de encenar as atribulações do desejo (os corpos cansam-se, o desejo não). Ao mesmo tempo, porém, o seu trabalho vive da consciência muito activa do desejo do próprio espectador, algures “do outro lado”. Com uma peculiar dialéctica: sentimo-nos sugados para um turbilhão de alusões, por vezes festivamente obscenas, mas há sempre um pudor ancestral que nos leva a reconhecer a materialidade do objecto e a comovente nudez formal que nele se elabora, doando-se à irredutibilidade de cada olhar.
Não por acaso, Julião Sarmento é um criador seduzido pelas possibilidades da performance (actores e bailarinos). As suas performances dizem duas coisas diferentes e complementares: primeiro, tudo é teatro; segundo, a teatralidade é inerente a qualquer socialização dos olhares. As suas obras conduzem-nos, assim, a uma enigmática suspensão de cada desejo, aí onde pressentimos uma beleza para a qual qualquer imagem será sempre insuficiente. Defender essa beleza é uma tarefa feliz que exige uma elaborada contenção nas palavras.

Figuras de 2012: Jessica Chastain

[in Jessica Chastain Network]
O seu nome começou por surgir associado a um filme de e com Al Pacino, Wilde Salome (2011), rapidamente transformado em objecto de culto mais ou menos "invisível" (Portugal é um dos países em que permanece inédito). Ao longo de 2012, vimo-la em vários filmes, alguns com data de produção do ano anterior, incluindo: Procurem Abrigo, de Jeff Nichols, Coriolano, de e com Ralph Fiennes, A Árvore da Vida, de Terrence Malick, e As Serviçais, de Tate Taylor; este último valeu-lhe uma nomeação para o Oscar de melhor actriz secundária. Entretanto, está no novo Zero Dark Thirty, de Kathryn Bigelow, sobre a caça a Osama bin Laden — as reacções americanas ao filme, incluindo as polémicas que o têm acompanhado, fazem com que não seja arriscado supor que a sua interpretação lhe valerá uma nova nomeação, desta vez na categoria de melhor actriz. De uma fragilidade paradoxal, há em Chastain uma cumplicidade carnal com a câmara de filmar que a distingue pela mais mágica duplicidade: uma actriz de infinitas nuances dramáticas e também uma figura com a energia icónica de uma star.

As canções de 2012: Damon Albarn

Chama-se Dr. Dee e foi o primeiro álbum a solo de Damon Albarn, editado este ano. Trata-de do registo áudio da música que Damon criou para mais uma ópera. Aqui fica Marvelous Dream, um dos momentos deste álbum.