sexta-feira, dezembro 28, 2012

Marco Ferreri: uma trágica performance

No suplemento "QI" (Diário de Notícias, 22 Dez.), vários críticos recordaram edições em DVD que consideraram marcantes no ano de 2012. A minha escolha recaiu em A Grande Farra, num texto intitulado 'A morte como performance'.

Há qualquer coisa de fascinante e absurdo no reencontro, em DVD, com um filme como A Grande Farra (1973), de Marco Ferreri (1928-1997). Estamos perante um dos títulos emblemáticos de toda uma vaga de objectos (lembremos o caso lendário de O Último Tango em Paris, produzido um ano antes) que, na ressaca das ilusões e desilusões herdadas da década de 60, encenaram os valores e, sobretudo, os equívocos da chamada sociedade de consumo (na época, a simples aplicação da expressão “sociedade de consumo” implicava mesmo alguma contundência crítica). Agora, chegados à paz podre do DVD, verificamos que desapareceu a aura de escândalo que envolveu o lançamento de A Grande Farra: além de não se repetir, nem sequer parece fazer parte de muitas formas de (des)conhecimento histórico do filme e do seu contexto de produção.
Qualquer banal discurso de boas intenções dirá que a ausência de escândalo reflecte a “evolução” das sociedades e a sua crescente “maturidade”. Tenho sérias dúvidas. Basta olhar à nossa volta: haverá escândalo maior do que assistirmos todos os dias ao bombardeamento de uma enorme percentagem da população pelos horrores televisivos do Big Brother e seus derivados? E, no entanto, não só a indignação democrática opta quase sempre por um dourado silêncio de equívoca tolerância, como passámos a viver um tempo em que os maus resultados de uma equipa de futebol são acompanhados por mais agitação mediática do que o “perverso” Ferreri alguma vez conseguiu gerar...
É por isso que a importância da edição de A Grande Farra não se reduz ao perene impacto e capacidade de perturbação de um filme que encena um grupo de quatro amigos (Marcello Mastroianni, Philippe Noiret, Michel Piccoli e Ugo Tognazzi) envolvidos numa trágica performance: a de comerem, comerem, comerem... até à morte. Há nessa performance a afirmação de vitalidade de um cinema (europeu, hélas!) que se perfila na linha da frente das convulsões sociais, funcionando como espelho das suas ânsias e perplexidades.
O filme é tanto mais cruel e desencantado quanto evita definir os seus anti-heróis a partir de qualquer discurso de “reivindicação”, “queixa” ou “reparação” (temas que se tornaram correntes no pobre imaginário televisivo, desde os talk shows aos noticiários). Fiel ao seu gosto irónico e surreal, exemplarmente condensado nesse filme inclassificável que é Dillinger Morreu (1969), Ferreri vai permitindo que se instale uma bizarra sensação de pacificação, não por acaso devedora da presença da única personagem feminina (Andréa Ferreol), distante, sem deixar de ser maternal.
Em 2012, no contexto português, A Grande Farra foi um filme (não faltaram outros exemplos, felizmente) capaz de nos fazer lembrar que o cinema europeu possui uma memória muito própria cuja herança plural, mais do que nunca, importa sistematizar, conhecer e divulgar. É bem verdade que o mercado do DVD, também ele afectado por uma crise endémica, não resolve tudo. Mas é bom saber que há condições para sermos espectadores, pelo menos, mais informados.