segunda-feira, dezembro 24, 2012

A beleza segundo Julião Sarmento

É, sem qualquer hesitação, um dos grandes acontecimentos culturais de 2012: a exposição de Julião Sarmento no Porto (Fundação de Serralves) — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Dezembro), com o título 'Nas palavras de Julião Sarmento'.

Na pintura e, de um modo geral, nas imagens de Julião Sarmento, a palavra disputa os poderes de figuração e comunicação. Discutindo a primazia de corpos e objectos, podemos ler sobre as mais diversas superfícies (pinturas, desenhos, etc.) expressões ou frases como ta bouche (“a tua boca”), flying to (“voando para”) ou please don’t ever leave me (“por favor nunca me deixes”). Não são explicitações da “mensagem” de cada obra, antes modos calculados, calculadamente perversos, de resistir à pedagogia tradicional que garante que “uma imagem vale mil palavras”.
Em boa verdade, uma palavra pode valer mil imagens... Num mundo dominado pela indiferenciação (televisiva) das imagens, Julião Sarmento insiste num outro programa pedagógico: o de garantir ao espectador que o seu olhar é sempre uma forma de leitura. Ou ainda (e porque esta é uma obra de paciente perscrutação das ambivalências do prazer): que o espectador não se escude no fingimento de quem apenas contempla o desejo do “outro” (pintor, fotógrafo, cineasta, etc.), já que o seu olhar é sempre um instrumento (ou como dizia o outro: uma máquina) desejante.
Há, por isso, um desconcertante efeito realista na notável exposição retrospectiva de Julião Sarmento, comissariada por João Fernandes e James Lingwood (patente em Serralves, até 3 de Março de 2013). Eis uma palavra insólita: “realismo”. Mas creio que a devemos entender no sentido mais radical que pode envolver. Que sentido é esse? Aquele que desenha uma fronteira intransponível entre o naturalismo chantagista do espaço televisivo e a singularidade de cada gesto artístico nascido de uma dúvida metódica sobre a muito ilusória transparência do mundo e dos seres humanos. O realismo é, assim, neste caso, o da própria verdade material e conceptual da obra. Tela. Papel. Acrílico. Madeira. Filme.
Julião Sarmento não se cansa de encenar as atribulações do desejo (os corpos cansam-se, o desejo não). Ao mesmo tempo, porém, o seu trabalho vive da consciência muito activa do desejo do próprio espectador, algures “do outro lado”. Com uma peculiar dialéctica: sentimo-nos sugados para um turbilhão de alusões, por vezes festivamente obscenas, mas há sempre um pudor ancestral que nos leva a reconhecer a materialidade do objecto e a comovente nudez formal que nele se elabora, doando-se à irredutibilidade de cada olhar.
Não por acaso, Julião Sarmento é um criador seduzido pelas possibilidades da performance (actores e bailarinos). As suas performances dizem duas coisas diferentes e complementares: primeiro, tudo é teatro; segundo, a teatralidade é inerente a qualquer socialização dos olhares. As suas obras conduzem-nos, assim, a uma enigmática suspensão de cada desejo, aí onde pressentimos uma beleza para a qual qualquer imagem será sempre insuficiente. Defender essa beleza é uma tarefa feliz que exige uma elaborada contenção nas palavras.