terça-feira, agosto 08, 2023

Oppenheimer:
um mar de enganos

J. Robert Oppenheimer, aliás, Cillian Murphy:
elogio do grande plano

A tragédia de Oppenheimer relança a herança de Fausto, redescobrindo o valor cinematográfico do rosto — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 julho).

Na introdução à sua tradução do Fausto, de Johann W. Goethe (Relógio D’Água Editores, 1999), João Barrento escreve que “a obra resulta, na versão definitiva, no milagre de um todo que não é um todo.” Creio que a observação justifica algum paralelismo com o filme Oppenheimer, de Christopher Nolan. Claro que a exuberância do trabalho científico de J. Robert Oppenheimer (1904-1967) e, por fim, a sua condição de “pai da bomba atómica” atraem a classificação de um moderno Fausto. O seu pacto com os Mefistófeles da política — que no filme alguém resume dizendo que “tu és o homem que lhes deu o poder de se auto-destruirem” — coloca-o no centro de uma encruzilhada sem solução: onde acaba a paixão científica do saber e começa a instrumentalização política desse saber?
Escusado será sublinhar que no filme de Nolan ecoam múltiplos e inquietantes cenários da geo-política do nosso século XXI. Ao mesmo tempo, e ao contrário de muitas ficções audiovisuais contemporâneas, a abordagem de uma conjuntura tão delicada — do Projecto Manhattan ao lançamento das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki — não se esgota numa qualquer lição unívoca, porventura redentora, que confunda a experiência cinematográfica com as certezas normativas de muitos talk-shows. Em diversas entrevistas, Nolan tem dito que não faz filmes “didácticos”, antes procura abarcar a complexidade dos temas e situações que aborda — na certeza de que tudo isso pressupõe um espectador não seguidista, capaz de enfrentar um filme que não quer confirmar aquilo que ele já sabe, antes aposta na discussão dos limites, históricos, ideológicos ou simbólicos, que cristalizaram o seu saber.
Daí a sensação de “um todo que não é um todo”. Ao contrário de muitas produções correntes, apostadas em “reconstituições” históricas que se definem apenas pelas suas “semelhanças” com os factos retratados — diversas séries sobre a família real britânica podem servir de modelo desse “naturalismo” sem imaginação —, Oppenheimer é um filme sobre a totalidade de uma experiência cujas derivações não estão esgotadas.
Para lá das muitas diferenças que possamos citar, se há filme recente cuja ambição narrativa envolve a mesma metódica humildade (neste caso, não “a” narrativa sobre Oppenheimer, mas “uma” narrativa sobre Oppenheimer), esse filme será Spencer, de Pablo Larraín, sobre a Princesa Diana. E talvez faça sentido considerar que os desafios enfrentados por Kristen Stewart e Cillian Murphy, respectivamente como Diana e Oppenheimer, são de natureza semelhante. A saber: como representar uma figura cuja identidade histórica parece, ao mesmo tempo, tão evidente e de tão problemática fixação narrativa?
Diz Fausto, a certa altura, respondendo a Wagner que o tenta libertar dos seus tormentos: “Bem feliz é aquele que inda espera / Poder sair deste mar de enganos! / Mas o mais útil é o que se ignora, / E o que se sabe o que nos serve menos. / Mas não deixemos que tal melancolia / Nos venha perturbar tão bela hora! / Repara como o sol ao fim do dia, / No verde e nas cabanas reverbera. / Nasce e apaga-se, mais um dia passou, / Noutros lugares vai nascer nova vida.”
Há uma dimensão contraditória na tragédia de Oppenheimer (enfim, a contradição é mesmo o motor de qualquer tragédia…) que se enraiza nessa tensão entre a utilidade do que ignoramos e a menor pertinência do que já sabemos. O que, em termos cinematográficos, arrasta uma dúvida metódica: até que ponto aquilo que vemos numa personagem — a começar, claro, pelo incrível Cillian Murphy como Oppenheimer — existe como expressão do seu ser ou não passa de uma alternativa mascarada?
Tal interrogação justifica que reavaliemos, por exemplo, a santificação de algumas personagens apropriadas pelas banalidades do politicamente correcto — lembremos o determinismo dramático de A Hora Mais Negra (2017), sobre Winston Churchill, interpretado por Gary Oldman (o mesmo Oldman que, curiosamente, surge em Oppenheimer como Harry Truman). Seja como for, vale a pena acrescentar que, no filme de Nolan, tal jogo entre o que é dito e o que não chega a ser ciciado, passa por uma surpreendente colecção de grandes planos dos actores (com destaque, claro, para Murphy).
O que, enfim, nos instala num belíssimo paradoxo narrativo. Se é verdade que a grandeza física dos ecrãs IMAX tem sido celebrada através da agitação visual de super-heróis & afins, não é menos verdade que o rectângulo do IMAX pode ser um novo modelo de exaltação do rosto humano, da sua transparência e enigmas. Como? Filmando cada rosto como uma paisagem. Ou como Nolan já disse, Oppenheimer é “3D sem óculos”.

sexta-feira, agosto 04, 2023

Zaho de Sagazan: éclairs

Um álbum, uma genuína revelação: Zaho de Sagazan é um fenómeno de cruzamento entre tradição e electrónica, chanson française e experimentação — alguém que "pede que a escutemos" (como escreveu o Nuno). O seu álbum de estreia, La Symphonie das Éclairs, aí está, desde já, como um dos acontecimentos do ano — incluindo um dos melhores telediscos dos últimos tempos: Tristesse, com realização da própria.

quinta-feira, agosto 03, 2023

Gatsby, Oppenheimer e os outros

Cillian Murphy na personagem de J. Robert Oppenheimer:
da utopia à tragédia

Através da odisseia do “pai da bomba atómica”, filmada por Christopher Nolan, reencontramos a nobreza narrativa de Hollywood — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 julho).

Que é uma personagem? A pergunta está longe de ser banalmente teórica, em particular no interior da actual produção de Hollywood. A obscena proliferação de super-heróis é paradoxalmente reveladora: dispensando qualquer relação com o mundo em que vivem os seus espectadores, o super-herói é com frequência aquele que deixou de ser personagem — no plano técnico ou simbólico, basta-lhe ser um efeito especial.
Que personagem é, afinal, J. Robert Oppenheimer (1904-1967), o “pai da bomba atómica” que Christopher Nolan filma no seu prodigioso Oppenheimer?
Lembremos as palavras escritas por F. Scott Fitzgerald (1846-1940): “Não há segundos actos nas vidas americanas”. A interpretação piedosa (não é possível refazer uma vida falhada) esgota-se rapidamente, tornando necessária alguma reflexão sobre os mais nobres valores da narrativa. A saber: como contar de novo a história de alguém cuja existência como personagem parece ter ficado esgotada num radical primeiro acto?
Não é uma questão abstracta. Não o é, sobretudo, quando se trata de enfrentar um ser tão complexo como Oppenheimer. Até porque a condição inicial de génio das maravilhas da mecânica quântica e da física nuclear lhe confere o misto de ligeireza e sedução de um tradicional wonder boy americano. O filme de Nolan é também a história da transfiguração dessa imagem numa entidade trágica, indissociável da gestação de uma arma capaz, não apenas de vencer o inimigo, mas também de aniquilar a humanidade — sem esquecer que a composição de Cillian Murphy, expondo esse processo sem hipótese de reconversão ou redenção, é das coisas mais impressionantes que, em muitos anos, vimos num ecrã de cinema.
Ainda através de Fitzgerald, encontramos a origem de tudo isso em O Grande Gatsby, lançado em 1925 (ed. Presença, 2021), através das observações do narrador, Nick Carraway. A certa altura, contemplando o automatismo feliz com que Jay Gatsby se relaciona com o painel de instrumentos do seu automóvel, Nick fixa-se mesmo nessa “desenvoltura de movimentos tão peculiar nos americanos”.
Filmada por Nolan, a história de Oppenheimer existe como uma peça em dois actos em que tal desenvoltura vai dando lugar ao negrume irreversível da tragédia, bem explícito na possibilidade, aliás, no poder muito humano de destruir o seu semelhante. O que nos faz reencontrar as convulsões de um individualismo made in USA que pontua toda uma multifacetada cultura narrativa.
Esquematizando, e esquematizando muito, há um património cultural europeu que se enraiza num enquistamento individual que encontrou a sua expressão mitológica numa frase — “o inferno são os outros” — escrita por Jean-Paul Sartre (1905-1980) na peça Huis Clos, estreada em 1944. Que é como quem diz: o meu assombramento passa pela contaminação que provém do meu semelhante. Na ficção americana, deparamos com um conflito semelhante com os “outros”, mas a partir de uma vivência individual e interior, polvilhada pela evidência primordial do medo. Mesmo num romance que refaz a história, inventando novos factos, como é o caso de A Conspiração Contra a América, de Philip Roth (1933-2018), publicado em 2004 (ed. Dom Quixote, 2017), lemos logo a abrir: “O medo preside a estas memórias, um medo perpétuo”.
Nada disto é estranho a uma nostalgia do paraíso para sempre perdido. No autobiográfico Relatório do Interior (ed. Asa, 2013), Paul Auster (n. 1947) lança mesmo a narrativa através de memórias de um tempo anterior e utópico: “No início, tudo estava vivo. Os mais pequenos objectos eram dotados de corações pulsantes, e até as nuvens tinham nomes.” O que não exclui o reconhecimento de uma falsidade que pode envolver o próprio narrador. No também autobiográfico Born to Run (ed. Elsinore, 2016), Bruce Springsteen (n. 1949) inicia o prefácio com estas palavras: “Nasci numa cidade à beira-mar onde quase tudo é contaminado por uma certa dissimulação. Incluindo eu.”
Oppenheimer
, filme realizado por um cineasta de origem inglesa (Nolan nasceu em Londres, a 30 de julho de 1970), acrescenta um novo capítulo a esta imensa saga narrativa. O seu tratamento da personagem de J. Robert Oppenheimer não teme o risco narrativo e, por isso mesmo, ético de suscitar uma projecção contraditória do espectador: a possibilidade de sentirmos a tragédia íntima de J. Robert Oppenheimer coexiste com o reconhecimento básico do horror da bomba.
Nolan afirma-se, assim, como herdeiro de um modo de pensar o cinema cujas raízes estão no classicismo de Hollywood e num sistema de produção que o mesmo Fitzgerald retratou no romance inacabado The Last Tycoon, publicado em 1941 (O Último Magnate, ed. Relógio D’Água, 2011). Dele existe uma admirável versão cinematográfica, O Grande Magnate, realizada por Elia Kazan em 1976, numa adaptação de Harold Pinter, com um elenco que inclui, entre outros, Robert De Niro, Tony Curtis, Jack Nicholson, Jeanne Moreau e Theresa Russell. Se consultarmos o inefável IMDb, verificamos que, num máximo de 10 pontos, os frequentadores do site lhe atribuem uma classificação média de 6,3. Tendo em conta que, por exemplo, Vingadores: Guerra do Infinito (2018) atinge 8,4 pontos talvez seja tempo de reconhecermos que o amor das personagens, incluindo as suas insolúveis contradições, se tornou um valor escasso.

domingo, julho 30, 2023

Rita Moreno por Rita Moreno

Uma actriz com uma carreira de mais de sete décadas

Do West Side Story de 1961 ao West Side Story de 2021, a carreira de Rita Moreno é um caso invulgar de talento e perseverança: um documentário disponível na Netflix ajuda-nos a perceber como tudo aconteceu — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 julho).

A série American Masters, com chancela da PBS (televisão pública dos EUA), continua a ser um caso modelar do documentarismo contemporâneo. Retratando personalidades da cena cultural norte-americana há quase quatro décadas — o título inaugural, emitido pela primeira vez a 23 de junho de 1986, foi dedicado a Arthur Miller —, nela encontramos a história viva de figuras das artes & letras que, além do mais, nos ajudam a compreender as dinâmicas criativas e industriais das mais diversas formas de expressão.
Agora, a Netflix dá a ver Rita Moreno: A Mulher que Decidiu Ousar, uma realização de Mariem Pérez Riera, nascida em Porto Rico tal como Rita Moreno. O documentário teve especial impacto no Festival de Sundance de 2021, a ponto de conseguir distribuição em algumas salas dos EUA, antes da sua apresentação na PBS.
Duas referências balizam a narrativa. Assim, a abrir vemos Rita Moreno a preparar a festa do seu 87º aniversário, celebrado a 11 de dezembro de 2018. Depois, numa das cenas finais, ela dialoga com Steven Spielberg durante a preparação de West Side Story (estreado em finais de 2021). Recorde-se que, ao convidá-la para a personagem de Valentina, Spielberg estabeleceu uma ponte simbólica com o primeiro West Side Story, lançado 60 anos antes, em que Rita Moreno assumiu a personagem de Anita — a sua interpretação valeu-lhe o Oscar de melhor actriz secundária referente a 1961.
O filme de Mariem Pérez Riera segue o modelo tradicional, articulando uma conversa com Rita Moreno, realizada em sua casa, com diversos depoimentos de gente directa ou indirectamente ligada ao mundo do espectáculo — entre eles surgem dois dos produtores executivos do próprio filme, Norman Lear, personalidade emblemática de muitas décadas de televisão (produtor, por exemplo, da série Uma Família às Direitas), e Lin-Manuel Miranda, actor, músico e encenador (consagrado pelo musical da Broadway, Hamilton).
Sublinhando a “ousadia” de Rita Moreno, o título está longe de ser banalmente panfletário. Desde logo, porque a sua entrada no mundo do espectáculo se deu através de personagens em que, de algum modo, foi obrigada a reproduzir estereótipos do porto-riquenho mais ou menos (des)integrado na sociedade dos EUA. A personagem de Anita, em West Side Story, poderá ser definida de modo paradoxal: a sua origem é ainda estereotipada, mas o seu desenvolvimento liberta-a (libertando também a actriz) das convenções que diminuiam a sua própria humanidade.
A dimensão mais crua, sem dúvida mais surpreendente, de tudo isto provém do misto de alegria e desencanto com que Rita Moreno comenta os contrastes da sua carreira, e também as convulsões da sua vida privada (incluindo o doloroso processo de separação do marido). Ao mesmo tempo, esta é uma história de invulgar sucesso, já que ela é uma das poucas figuras do entertainment que conseguiu o chamado EGOT, ou seja, um Emmy, um Grammy, um Oscar e um Tony. A mais recente dessas figuras é Viola Davis que, já este ano, ganhou um Grammy na categoria de melhor audio-livro.

A IMAGEM: Emile Ducke, 2023

EMILE DUCKE
Depois do bombardeamento da Catedral de Odessa
New York Times, 29-07-2023

sábado, julho 29, 2023

Oppenheimer:
maior que a vida, maior que a morte

Cillian Murphy no papel de J. Robert Oppenheimer:
um actor prodigioso, uma proeza cinematográfica

Depois da ficção científica de Tenet, Christopher Nolan revisita a herança trágica da Segunda Guerra Mundial: o filme Oppenheimer faz um retrato do “pai da bomba atómica” em que a infinita complexidade da história é tratada através de uma genuína paixão pelos valores espectaculares do cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 julho), com o título 'O cientista, o inferno, a sua bomba e o fogo dela'.

Tom Cruise e vários elementos da produção e do elenco do mais recente título de Missão Impossível (estreado a 13 de julho) têm insistido nas singularidades da respectiva projecção. Não se trata apenas, nem sobretudo, de contar uma aventura que se quer invulgar, mas de convocar o espectador para um acontecimento especial: uma experiência (em sala, acrescente-se). A palavra tem reaparecido a propósito da nova epopeia de Christopher Nolan, Oppenheimer, dita pelo realizador e também por vários actores.
O caso não é para menos, sobretudo se nos lembrarmos que os valores específicos da “experiência” cinematográfica têm sido pirateados por discursos e valores de marketing que só sabem papaguear a dimensão “imersiva” dos ecrãs IMAX e a surpresa (?) de vermos algum herói da Marvel a destruir pela milésima vez um qualquer planeta…
Assim como os efeitos especiais podem ser um instrumento, mas não são uma garantia, dos resultados espectaculares de um filme, assim também importa reavaliar, eventualmente discutir, o que entendemos por “imersão” num filme. Ora, justamente, a resposta de Oppenheimer decorre de uma crença inabalável no cinema, não como acumulação de “acções” mais ou menos vistosas, mas sim como um companheiro das certezas e incertezas que definem essa outra experiência que acompanha, e pode transfigurar, todas as outras: a experiência humana.
Neste caso, tudo isso se torna tanto mais complexo e envolvente quanto J. Robert Oppenheimer (1904-1967), tradicionalmente rotulado de “o pai da bomba atómica”, existe como uma memória muito viva, recheada de contrastes e contradições — e não apenas na comunidade científica. Afinal de contas, o seu génio está associado ao nascimento da mais devastadora arma de destruição que os seres humanos já conceberam.

Sob o signo de Prometeu

Podemos descrever o filme de Nolan através do admirável trabalho do seu elenco. Desde logo, claro, celebrando a composição de Oppenheimer por Cillian Murphy, nunca simplificando as convulsões que o habitam: a sua personagem existe, de uma só vez, como arauto da ciência e um peão da política. Emily Blunt é um caso invulgar, talvez inesperado, de superação de uma certa imagem de marca, de dramatismo algo estereotipado: a sua interpretação de Katherine, mulher de Oppenheimer, consegue evoluir da função quase decorativa que lhe é atribuída no início até uma afirmação ideológica e emocional de inusitada intensidade.
E que dizer de Robert Downey Jr. no papel de Lewis Strauss, oficial da marinha e filantropo que presidiu à Comissão de Energia Atómica, acabando por explorar as atribulações da época “maccartista” para se vingar da humilhação pública a que Oppenheimer o sujeitara? Aqui está uma personagem em que dedicação e traição se enredam de forma perversa, conferindo-lhe a vertigem de uma figura genuinamente “shakespeareana”. Aqui está, sobretudo, um verdadeiro resgate de Robert Downey Jr.: depois de anos “perdido” dentro do fato do Homem de Ferro, reencontramo-lo, finalmente, na sua verdade artística, ou seja, como um dos maiores actores do cinema contemporâneo.
A celebração dos actores, a par, por exemplo, da admirável direcção fotográfica de Hoyte van Hoytema (colaborador frequente de Nolan, nomeadamente no seu filme anterior, Tenet) está longe de se esgotar na redução do cinema a uma mera acumulação de contribuições “técnicas e artísticas”. O que importa sublinhar é o modo como Nolan sabe aplicar todos os meios específicos da sua linguagem — incluindo um espantoso tratamento do som que só adquire a devida intensidade numa sala IMAX — para criar uma narrativa em que, como coordenador do Projecto Manhattan que fabricou as bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaqui, Oppenheimer reencarna, de início de forma incauta, depois enfrentando o inferno da culpas, o mito de Prometeu. A saber: uma figura da mitologia grega que se atreveu a partilhar o fogo com os mortais, sendo castigado por Zeus a ficar, para a eternidade, atado a uma rocha.

A tragédia da verdade

Foi o próprio Nolan que escreveu o argumento de Oppenheimer, tendo como base o livro American Prometheus: The Triumph and Tragedy of J. Robert Oppenheimer (ed. Alfred A. Knopf, 2005), da autoria de Kai Bird e Martin J. Sherwin — o primeiro um estudioso de momentos definidores da história do século XX, com destaque para os bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaqui; o segundo um professor universitário que se tem dedicado, em particular, à investigação da proliferação das armas nucleares. O livro foi distinguido com o Prémio Pulitzer de 2006, referente ao domínio das biografias ou autobiografias.
O filme segue uma estrutura em ziguezague que não corresponde exactamente a uma lógica de flashbacks, mesmo se as cenas do interrogatório oficial a que Oppenheimer é sujeito depois da guerra (procurando acusá-lo de traição aos EUA motivada pelas suas “simpatias” comunistas) funcionam como pólo de ligação, e também de lançamento, dos vários tempos da acção, antes e depois da guerra. Nesta perspectiva, Nolan parece apresentar-se como herdeiro directo da sofisticação clássica (temporal, justamente) de uma autor como Joseph L. Mankiewicz e, em particular, de títulos como All About Eve (1950) ou A Condessa Descalça (1954).
No limite, a odisseia de Oppenheimer confunde-se com a ancestral tragédia da verdade. Quem a detém? Ou melhor, quem a diz, pode ou sabe dizer? Daí a opção por uma alternância de imagens a cores e preto e branco que nunca se confunde com uma simples dicotomia passado/presente. Aliás, o próprio Nolan já explicou que tal alternância serve para sustentar um vai-vém entre objectividade e subjectividade que, no limite, sugere a ambivalência em que se desenvolve qualquer procura de algum efeito de verdade. Os contrastes das imagens justificam a evocação de outra referência clássica de Hollywood: JFK (1991), de Oliver Stone, sobre a investigação do assassinato de John F. Kennedy.
Raras vezes temos visto um tão fascinante colectivo de personagens representados desta maneira, ao mesmo tempo tão precisa e tão aberta à disseminação simbólica das suas componentes — será preciso sublinhar que o desencanto do filme face à gestão humana (sem dúvida desumana) dos nossos meios de destruição ecoa, ponto por ponto, no presente?
Porventura o mais espantoso do labor de realização de Nolan decorre do facto de fazer passar essa angústia colectiva sem nunca encerrar a personagem de Oppenheimer (ou qualquer outra, em boa verdade) num cliché dramático ou ideológico que possa satisfazer os fundamentalismos “históricos” dos nossos dias, em especial os que alimentam as formas mais antigas de anti-americanismo primário. O Oppenheimer encarnado por Cillian Murphy é uma personagem maior que a vida. E ainda, se tal é possível, maior que a morte. A perturbação que tudo isso arrasta é também um hino ao cinema.

A IMAGEM: Steven Sebring, 2023

STEVEN SEBRING
Patti Smith
Six Avenue, NY, 28-07-2023

segunda-feira, julho 24, 2023

Oppenheimer & Barbie:
— “É o marketing, estúpido!”

Christopher Nolan na rodagem de Oppenheimer:
a pensar na grandeza do IMAX

Oppenheimer é um notável objecto de cinema. Mas é mais do que isso: é também um espectacular acontecimento de mercado capaz de desafiar as rotinas de um marketing apenas orientado para a promoção de super-heróis e afins — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 julho).

Subitamente, o mundo do cinema de Hollywood sente-se abalado naquela que seria a sua conjuntura ideal: os meses de verão. A estação de todos os sucessos — incluindo o proverbial blockbuster com selo da Marvel ou da DC Comics — surge agora assombrada pela dúvida mais ancestral da indústria e do comércio dos filmes: como levar o cidadão comum a tomar a decisão de comprar um bilhete e assistir a um determinado filme numa sala escura?
Há dados que esbatem um pouco a angústia que circula. Assim, é um facto que a ubiquidade das plataformas de streaming alterou todas as componentes do negócio cinematográfico, promovendo a mitologia de um conforto básico: ficar em casa… Além de, como bem sabemos, a pandemia ter dinamitado os hábitos de consumo do cinema.
Em qualquer caso, mesmo correndo o risco de simplificar o labiríntico mapa internacional da distribuição e exibição dos filmes, talvez valha a pena reconhecer um dado que, neste panorama, está longe de ser secundário. A saber: os métodos e valores dominantes do marketing cinematográfico não sabem o que fazer (e, sobretudo, como fazer) face a filmes com a ambição temática e o fulgor espectacular de Oppenheimer.
Aviso à navegação: não estamos a falar de futebol, pelo que convém não nos imaginarmos no centro do mundo — este não é um problema banalmente português. Como os bonequinhos de água da nova produção da Pixar, Elemental, observamos agora, impotentes, o fogo posto por uma estratégia de produção/difusão, nascida na indústria dos EUA (concebida para um mercado realmente global), que já não sabe como controlar a devastação que provocou ao longo, pelo menos, das últimas duas décadas. O facto de o fogo ser uma componente trágica da história de J. Robert Oppenheimer não passa de uma coincidência bizarra que, perversamente, intensifica a perturbação de tudo isto.
No seu desespero criativo, o marketing americano está mesmo a tentar rentabilizar na ribalta mediática uma palavra —“Barbenheimer” — para classificar a concorrência, que se deseja produtiva, de Oppenheimer e a nova produção/interpretação de Margot Robbie, Barbie, inspirado na boneca da Mattel. São dois filmes lançados no mesmo dia (20 julho), cujas diferenças de matéria e tom são, à partida, evidentes.
Semelhante sugestão serve de sintoma de uma dramática falta de ideias para, comercialmente, tratar os filmes como entidades especificamente cinematográficas, não como produtos que, à semelhança dos detergentes, discutem entre si quem “lava mais branco”… Claro que as atribulações do marketing não esgotam a problemática contemporânea dos mercados de cinema, mas talvez fosse útil começar por responder a uma interrogação muito cândida: como é que os agentes (e as múltiplas) agências de marketing analisam os filmes que promovem? E ainda: que ideias têm (ou não têm) sobre a diversidade dos espectadores?
Eis um facto fulcral: mesmo não esquecendo as honrosas excepções, o marketing reconverteu-se na promoção (unívoca e unilateral) de super-heróis e afins, criando uma nova geração (se não etária, pelo menos ideológica) que gasta as suas energias a organizar alianças com marcas de telemóveis ou piedosas influencers, para não falarmos das ante-estreias com “famosos” a posar para fotografias de infinita tristeza iconográfica. Menospreza-se o simples facto de ser necessário — vital de um ponto de vista económico — vender os filmes como… objectos de cinema. O senhor de La Palice não diria melhor, porventura acrescentando que Oppenheimer é essa “coisa” maravilhosa que o marketing tende a ignorar: um filme concebido por um pensamento adulto, sério, empenhado e, sobretudo, apaixonado pela mais nobre vocação narrativa do cinema.
Há uma estupidez agressiva que sempre tentou fazer crer que “a culpa de tudo isto” é dos críticos de cinema, essas figurinhas hiper-minoritárias que, melhor ou pior, não desistem de celebrar os filmes e as suas singularidades. Aos mais distraídos, vale a pena lembrar que os gestores da indústria e os profissionais do marketing foram devidamente avisados para estes perigos (financeiros, entenda-se) por alguém que, salvo melhor opinião, sabe alguma coisa do assunto. O seu nome: Steven Spielberg.
Numa conversa na Escola de Artes Cinematográficas da Universidade da Califórnia, Spielberg comentou a evolução dos grandes estúdios, alertando para a possibilidade de decomposição de todo um sistema de produção: “O grande perigo é a implosão [do sistema]. Quando três ou quatro, talvez meia dúzia, de mega-produções forem um desastre, o paradigma vai ter de mudar”. E não foi a propósito de Oppenheimer que ele o disse: aconteceu há dez anos, no dia 12 de junho de 2013.

* * * * *

P.S. - Hoje mesmo, dia 24, os números oficiais do ICA indicam que Oppenheimer e Barbie conseguiram, nas salas portuguesas, uma proeza assinalável: desde 2017 não havia um fim de semana com tão grande frequência.
Como estas questões são quase sempre mediatizadas das formas mais estúpidas (incluindo a "ideia", propriamente ofensiva, segundo a qual os "críticos" menosprezam os filmes de sucesso), permito-me lembrar que aquilo que se discute no texto aqui reproduzido não é o "maior" ou "menor" número de bilhetes vendidos — aliás, como está escrito no quinto parágrafo, trata-se de analisar uma concorrência que se deseja produtiva.
O que está em jogo é bem diferente — e é, sobretudo, de outra natureza. A saber: quais os efeitos comerciais (e, nessa medida, absolutamente culturais) de um marketing que, como se escreve no quarto parágrafo, ao longo de pelo menos duas décadas, afunilou a oferta e a procura dos produtos de natureza cinematográfica. Com ou sem "Barbenheimer", a questão permanece e justifica toda a atenção das entidades directa ou indirectamente envolvidas nas respectivas dinâmicas.

domingo, julho 23, 2023

Barbie, aliás, Billie Eilish

Não haverá muito a dizer da ligeireza colorida, em tom de intelectualismo pós-modernista, do filme Barbie. Sobram algumas canções, com destaque para What Was I Made For?, com Billie Eilish a dizer e a encenar-se num desespero gélido que, paradoxalmente, contradiz os pressupostos de entertainment do próprio filme de Greta Gerwig — eis o magnífico resultado.

I used to float, now I just fall down
I used to know but I'm not sure now
What I was made for
What was I made for?
Takin' a drive, I was an ideal
Looked so alive, turns out, I'm not real
Just something you paid for
What was I made for?

'Cause I, I
I don't know how to feel
But I wanna try
I don't know how to feel
But someday I might
Someday I might

When did it end? All the enjoyment
I'm sad again, don't tell my boyfriend
It's not what he's made for
What was I made for?

'Cause I, 'cause I
I don't know how to feel
But I wanna try
I don't know how to feel
But someday I might
Someday I might

Think I forgot how to be happy
Something I'm not, but something I can be
Something I wait for
Something I'm made for

domingo, julho 16, 2023

* SOUND + VISION Magazine
— FNAC, 22 julho (17h00)

Estamos de volta ao Chiado para a sessão de julho (antes da tradicional paragem de agosto). O mais recente filme de Indiana Jones é pretexto para uma revisitação das aventuras de um ícone do espectáculo que pontua a história do cinema há mais de 40 anos — sem esquecer que tudo isso tem acontecido também através de algumas nostálgicas memórias musicais.

* FNAC Chiado: dia 22 de julho (17h00).