Uma actriz com uma carreira de mais de sete décadas |
Do West Side Story de 1961 ao West Side Story de 2021, a carreira de Rita Moreno é um caso invulgar de talento e perseverança: um documentário disponível na Netflix ajuda-nos a perceber como tudo aconteceu — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 julho).
A série American Masters, com chancela da PBS (televisão pública dos EUA), continua a ser um caso modelar do documentarismo contemporâneo. Retratando personalidades da cena cultural norte-americana há quase quatro décadas — o título inaugural, emitido pela primeira vez a 23 de junho de 1986, foi dedicado a Arthur Miller —, nela encontramos a história viva de figuras das artes & letras que, além do mais, nos ajudam a compreender as dinâmicas criativas e industriais das mais diversas formas de expressão.
Agora, a Netflix dá a ver Rita Moreno: A Mulher que Decidiu Ousar, uma realização de Mariem Pérez Riera, nascida em Porto Rico tal como Rita Moreno. O documentário teve especial impacto no Festival de Sundance de 2021, a ponto de conseguir distribuição em algumas salas dos EUA, antes da sua apresentação na PBS.
Duas referências balizam a narrativa. Assim, a abrir vemos Rita Moreno a preparar a festa do seu 87º aniversário, celebrado a 11 de dezembro de 2018. Depois, numa das cenas finais, ela dialoga com Steven Spielberg durante a preparação de West Side Story (estreado em finais de 2021). Recorde-se que, ao convidá-la para a personagem de Valentina, Spielberg estabeleceu uma ponte simbólica com o primeiro West Side Story, lançado 60 anos antes, em que Rita Moreno assumiu a personagem de Anita — a sua interpretação valeu-lhe o Oscar de melhor actriz secundária referente a 1961.
O filme de Mariem Pérez Riera segue o modelo tradicional, articulando uma conversa com Rita Moreno, realizada em sua casa, com diversos depoimentos de gente directa ou indirectamente ligada ao mundo do espectáculo — entre eles surgem dois dos produtores executivos do próprio filme, Norman Lear, personalidade emblemática de muitas décadas de televisão (produtor, por exemplo, da série Uma Família às Direitas), e Lin-Manuel Miranda, actor, músico e encenador (consagrado pelo musical da Broadway, Hamilton).
Sublinhando a “ousadia” de Rita Moreno, o título está longe de ser banalmente panfletário. Desde logo, porque a sua entrada no mundo do espectáculo se deu através de personagens em que, de algum modo, foi obrigada a reproduzir estereótipos do porto-riquenho mais ou menos (des)integrado na sociedade dos EUA. A personagem de Anita, em West Side Story, poderá ser definida de modo paradoxal: a sua origem é ainda estereotipada, mas o seu desenvolvimento liberta-a (libertando também a actriz) das convenções que diminuiam a sua própria humanidade.
A dimensão mais crua, sem dúvida mais surpreendente, de tudo isto provém do misto de alegria e desencanto com que Rita Moreno comenta os contrastes da sua carreira, e também as convulsões da sua vida privada (incluindo o doloroso processo de separação do marido). Ao mesmo tempo, esta é uma história de invulgar sucesso, já que ela é uma das poucas figuras do entertainment que conseguiu o chamado EGOT, ou seja, um Emmy, um Grammy, um Oscar e um Tony. A mais recente dessas figuras é Viola Davis que, já este ano, ganhou um Grammy na categoria de melhor audio-livro.