quinta-feira, agosto 03, 2023

Gatsby, Oppenheimer e os outros

Cillian Murphy na personagem de J. Robert Oppenheimer:
da utopia à tragédia

Através da odisseia do “pai da bomba atómica”, filmada por Christopher Nolan, reencontramos a nobreza narrativa de Hollywood — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 julho).

Que é uma personagem? A pergunta está longe de ser banalmente teórica, em particular no interior da actual produção de Hollywood. A obscena proliferação de super-heróis é paradoxalmente reveladora: dispensando qualquer relação com o mundo em que vivem os seus espectadores, o super-herói é com frequência aquele que deixou de ser personagem — no plano técnico ou simbólico, basta-lhe ser um efeito especial.
Que personagem é, afinal, J. Robert Oppenheimer (1904-1967), o “pai da bomba atómica” que Christopher Nolan filma no seu prodigioso Oppenheimer?
Lembremos as palavras escritas por F. Scott Fitzgerald (1846-1940): “Não há segundos actos nas vidas americanas”. A interpretação piedosa (não é possível refazer uma vida falhada) esgota-se rapidamente, tornando necessária alguma reflexão sobre os mais nobres valores da narrativa. A saber: como contar de novo a história de alguém cuja existência como personagem parece ter ficado esgotada num radical primeiro acto?
Não é uma questão abstracta. Não o é, sobretudo, quando se trata de enfrentar um ser tão complexo como Oppenheimer. Até porque a condição inicial de génio das maravilhas da mecânica quântica e da física nuclear lhe confere o misto de ligeireza e sedução de um tradicional wonder boy americano. O filme de Nolan é também a história da transfiguração dessa imagem numa entidade trágica, indissociável da gestação de uma arma capaz, não apenas de vencer o inimigo, mas também de aniquilar a humanidade — sem esquecer que a composição de Cillian Murphy, expondo esse processo sem hipótese de reconversão ou redenção, é das coisas mais impressionantes que, em muitos anos, vimos num ecrã de cinema.
Ainda através de Fitzgerald, encontramos a origem de tudo isso em O Grande Gatsby, lançado em 1925 (ed. Presença, 2021), através das observações do narrador, Nick Carraway. A certa altura, contemplando o automatismo feliz com que Jay Gatsby se relaciona com o painel de instrumentos do seu automóvel, Nick fixa-se mesmo nessa “desenvoltura de movimentos tão peculiar nos americanos”.
Filmada por Nolan, a história de Oppenheimer existe como uma peça em dois actos em que tal desenvoltura vai dando lugar ao negrume irreversível da tragédia, bem explícito na possibilidade, aliás, no poder muito humano de destruir o seu semelhante. O que nos faz reencontrar as convulsões de um individualismo made in USA que pontua toda uma multifacetada cultura narrativa.
Esquematizando, e esquematizando muito, há um património cultural europeu que se enraiza num enquistamento individual que encontrou a sua expressão mitológica numa frase — “o inferno são os outros” — escrita por Jean-Paul Sartre (1905-1980) na peça Huis Clos, estreada em 1944. Que é como quem diz: o meu assombramento passa pela contaminação que provém do meu semelhante. Na ficção americana, deparamos com um conflito semelhante com os “outros”, mas a partir de uma vivência individual e interior, polvilhada pela evidência primordial do medo. Mesmo num romance que refaz a história, inventando novos factos, como é o caso de A Conspiração Contra a América, de Philip Roth (1933-2018), publicado em 2004 (ed. Dom Quixote, 2017), lemos logo a abrir: “O medo preside a estas memórias, um medo perpétuo”.
Nada disto é estranho a uma nostalgia do paraíso para sempre perdido. No autobiográfico Relatório do Interior (ed. Asa, 2013), Paul Auster (n. 1947) lança mesmo a narrativa através de memórias de um tempo anterior e utópico: “No início, tudo estava vivo. Os mais pequenos objectos eram dotados de corações pulsantes, e até as nuvens tinham nomes.” O que não exclui o reconhecimento de uma falsidade que pode envolver o próprio narrador. No também autobiográfico Born to Run (ed. Elsinore, 2016), Bruce Springsteen (n. 1949) inicia o prefácio com estas palavras: “Nasci numa cidade à beira-mar onde quase tudo é contaminado por uma certa dissimulação. Incluindo eu.”
Oppenheimer
, filme realizado por um cineasta de origem inglesa (Nolan nasceu em Londres, a 30 de julho de 1970), acrescenta um novo capítulo a esta imensa saga narrativa. O seu tratamento da personagem de J. Robert Oppenheimer não teme o risco narrativo e, por isso mesmo, ético de suscitar uma projecção contraditória do espectador: a possibilidade de sentirmos a tragédia íntima de J. Robert Oppenheimer coexiste com o reconhecimento básico do horror da bomba.
Nolan afirma-se, assim, como herdeiro de um modo de pensar o cinema cujas raízes estão no classicismo de Hollywood e num sistema de produção que o mesmo Fitzgerald retratou no romance inacabado The Last Tycoon, publicado em 1941 (O Último Magnate, ed. Relógio D’Água, 2011). Dele existe uma admirável versão cinematográfica, O Grande Magnate, realizada por Elia Kazan em 1976, numa adaptação de Harold Pinter, com um elenco que inclui, entre outros, Robert De Niro, Tony Curtis, Jack Nicholson, Jeanne Moreau e Theresa Russell. Se consultarmos o inefável IMDb, verificamos que, num máximo de 10 pontos, os frequentadores do site lhe atribuem uma classificação média de 6,3. Tendo em conta que, por exemplo, Vingadores: Guerra do Infinito (2018) atinge 8,4 pontos talvez seja tempo de reconhecermos que o amor das personagens, incluindo as suas insolúveis contradições, se tornou um valor escasso.