terça-feira, agosto 08, 2023

Oppenheimer:
um mar de enganos

J. Robert Oppenheimer, aliás, Cillian Murphy:
elogio do grande plano

A tragédia de Oppenheimer relança a herança de Fausto, redescobrindo o valor cinematográfico do rosto — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 julho).

Na introdução à sua tradução do Fausto, de Johann W. Goethe (Relógio D’Água Editores, 1999), João Barrento escreve que “a obra resulta, na versão definitiva, no milagre de um todo que não é um todo.” Creio que a observação justifica algum paralelismo com o filme Oppenheimer, de Christopher Nolan. Claro que a exuberância do trabalho científico de J. Robert Oppenheimer (1904-1967) e, por fim, a sua condição de “pai da bomba atómica” atraem a classificação de um moderno Fausto. O seu pacto com os Mefistófeles da política — que no filme alguém resume dizendo que “tu és o homem que lhes deu o poder de se auto-destruirem” — coloca-o no centro de uma encruzilhada sem solução: onde acaba a paixão científica do saber e começa a instrumentalização política desse saber?
Escusado será sublinhar que no filme de Nolan ecoam múltiplos e inquietantes cenários da geo-política do nosso século XXI. Ao mesmo tempo, e ao contrário de muitas ficções audiovisuais contemporâneas, a abordagem de uma conjuntura tão delicada — do Projecto Manhattan ao lançamento das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki — não se esgota numa qualquer lição unívoca, porventura redentora, que confunda a experiência cinematográfica com as certezas normativas de muitos talk-shows. Em diversas entrevistas, Nolan tem dito que não faz filmes “didácticos”, antes procura abarcar a complexidade dos temas e situações que aborda — na certeza de que tudo isso pressupõe um espectador não seguidista, capaz de enfrentar um filme que não quer confirmar aquilo que ele já sabe, antes aposta na discussão dos limites, históricos, ideológicos ou simbólicos, que cristalizaram o seu saber.
Daí a sensação de “um todo que não é um todo”. Ao contrário de muitas produções correntes, apostadas em “reconstituições” históricas que se definem apenas pelas suas “semelhanças” com os factos retratados — diversas séries sobre a família real britânica podem servir de modelo desse “naturalismo” sem imaginação —, Oppenheimer é um filme sobre a totalidade de uma experiência cujas derivações não estão esgotadas.
Para lá das muitas diferenças que possamos citar, se há filme recente cuja ambição narrativa envolve a mesma metódica humildade (neste caso, não “a” narrativa sobre Oppenheimer, mas “uma” narrativa sobre Oppenheimer), esse filme será Spencer, de Pablo Larraín, sobre a Princesa Diana. E talvez faça sentido considerar que os desafios enfrentados por Kristen Stewart e Cillian Murphy, respectivamente como Diana e Oppenheimer, são de natureza semelhante. A saber: como representar uma figura cuja identidade histórica parece, ao mesmo tempo, tão evidente e de tão problemática fixação narrativa?
Diz Fausto, a certa altura, respondendo a Wagner que o tenta libertar dos seus tormentos: “Bem feliz é aquele que inda espera / Poder sair deste mar de enganos! / Mas o mais útil é o que se ignora, / E o que se sabe o que nos serve menos. / Mas não deixemos que tal melancolia / Nos venha perturbar tão bela hora! / Repara como o sol ao fim do dia, / No verde e nas cabanas reverbera. / Nasce e apaga-se, mais um dia passou, / Noutros lugares vai nascer nova vida.”
Há uma dimensão contraditória na tragédia de Oppenheimer (enfim, a contradição é mesmo o motor de qualquer tragédia…) que se enraiza nessa tensão entre a utilidade do que ignoramos e a menor pertinência do que já sabemos. O que, em termos cinematográficos, arrasta uma dúvida metódica: até que ponto aquilo que vemos numa personagem — a começar, claro, pelo incrível Cillian Murphy como Oppenheimer — existe como expressão do seu ser ou não passa de uma alternativa mascarada?
Tal interrogação justifica que reavaliemos, por exemplo, a santificação de algumas personagens apropriadas pelas banalidades do politicamente correcto — lembremos o determinismo dramático de A Hora Mais Negra (2017), sobre Winston Churchill, interpretado por Gary Oldman (o mesmo Oldman que, curiosamente, surge em Oppenheimer como Harry Truman). Seja como for, vale a pena acrescentar que, no filme de Nolan, tal jogo entre o que é dito e o que não chega a ser ciciado, passa por uma surpreendente colecção de grandes planos dos actores (com destaque, claro, para Murphy).
O que, enfim, nos instala num belíssimo paradoxo narrativo. Se é verdade que a grandeza física dos ecrãs IMAX tem sido celebrada através da agitação visual de super-heróis & afins, não é menos verdade que o rectângulo do IMAX pode ser um novo modelo de exaltação do rosto humano, da sua transparência e enigmas. Como? Filmando cada rosto como uma paisagem. Ou como Nolan já disse, Oppenheimer é “3D sem óculos”.