Christopher Nolan na rodagem de Oppenheimer: a pensar na grandeza do IMAX |
Oppenheimer é um notável objecto de cinema. Mas é mais do que isso: é também um espectacular acontecimento de mercado capaz de desafiar as rotinas de um marketing apenas orientado para a promoção de super-heróis e afins — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 julho).
Subitamente, o mundo do cinema de Hollywood sente-se abalado naquela que seria a sua conjuntura ideal: os meses de verão. A estação de todos os sucessos — incluindo o proverbial blockbuster com selo da Marvel ou da DC Comics — surge agora assombrada pela dúvida mais ancestral da indústria e do comércio dos filmes: como levar o cidadão comum a tomar a decisão de comprar um bilhete e assistir a um determinado filme numa sala escura?
Há dados que esbatem um pouco a angústia que circula. Assim, é um facto que a ubiquidade das plataformas de streaming alterou todas as componentes do negócio cinematográfico, promovendo a mitologia de um conforto básico: ficar em casa… Além de, como bem sabemos, a pandemia ter dinamitado os hábitos de consumo do cinema.
Em qualquer caso, mesmo correndo o risco de simplificar o labiríntico mapa internacional da distribuição e exibição dos filmes, talvez valha a pena reconhecer um dado que, neste panorama, está longe de ser secundário. A saber: os métodos e valores dominantes do marketing cinematográfico não sabem o que fazer (e, sobretudo, como fazer) face a filmes com a ambição temática e o fulgor espectacular de Oppenheimer.
Aviso à navegação: não estamos a falar de futebol, pelo que convém não nos imaginarmos no centro do mundo — este não é um problema banalmente português. Como os bonequinhos de água da nova produção da Pixar, Elemental, observamos agora, impotentes, o fogo posto por uma estratégia de produção/difusão, nascida na indústria dos EUA (concebida para um mercado realmente global), que já não sabe como controlar a devastação que provocou ao longo, pelo menos, das últimas duas décadas. O facto de o fogo ser uma componente trágica da história de J. Robert Oppenheimer não passa de uma coincidência bizarra que, perversamente, intensifica a perturbação de tudo isto.
No seu desespero criativo, o marketing americano está mesmo a tentar rentabilizar na ribalta mediática uma palavra —“Barbenheimer” — para classificar a concorrência, que se deseja produtiva, de Oppenheimer e a nova produção/interpretação de Margot Robbie, Barbie, inspirado na boneca da Mattel. São dois filmes lançados no mesmo dia (20 julho), cujas diferenças de matéria e tom são, à partida, evidentes.
Semelhante sugestão serve de sintoma de uma dramática falta de ideias para, comercialmente, tratar os filmes como entidades especificamente cinematográficas, não como produtos que, à semelhança dos detergentes, discutem entre si quem “lava mais branco”… Claro que as atribulações do marketing não esgotam a problemática contemporânea dos mercados de cinema, mas talvez fosse útil começar por responder a uma interrogação muito cândida: como é que os agentes (e as múltiplas) agências de marketing analisam os filmes que promovem? E ainda: que ideias têm (ou não têm) sobre a diversidade dos espectadores?
Eis um facto fulcral: mesmo não esquecendo as honrosas excepções, o marketing reconverteu-se na promoção (unívoca e unilateral) de super-heróis e afins, criando uma nova geração (se não etária, pelo menos ideológica) que gasta as suas energias a organizar alianças com marcas de telemóveis ou piedosas influencers, para não falarmos das ante-estreias com “famosos” a posar para fotografias de infinita tristeza iconográfica. Menospreza-se o simples facto de ser necessário — vital de um ponto de vista económico — vender os filmes como… objectos de cinema. O senhor de La Palice não diria melhor, porventura acrescentando que Oppenheimer é essa “coisa” maravilhosa que o marketing tende a ignorar: um filme concebido por um pensamento adulto, sério, empenhado e, sobretudo, apaixonado pela mais nobre vocação narrativa do cinema.
Há uma estupidez agressiva que sempre tentou fazer crer que “a culpa de tudo isto” é dos críticos de cinema, essas figurinhas hiper-minoritárias que, melhor ou pior, não desistem de celebrar os filmes e as suas singularidades. Aos mais distraídos, vale a pena lembrar que os gestores da indústria e os profissionais do marketing foram devidamente avisados para estes perigos (financeiros, entenda-se) por alguém que, salvo melhor opinião, sabe alguma coisa do assunto. O seu nome: Steven Spielberg.
Numa conversa na Escola de Artes Cinematográficas da Universidade da Califórnia, Spielberg comentou a evolução dos grandes estúdios, alertando para a possibilidade de decomposição de todo um sistema de produção: “O grande perigo é a implosão [do sistema]. Quando três ou quatro, talvez meia dúzia, de mega-produções forem um desastre, o paradigma vai ter de mudar”. E não foi a propósito de Oppenheimer que ele o disse: aconteceu há dez anos, no dia 12 de junho de 2013.
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P.S. - Hoje mesmo, dia 24, os números oficiais do ICA indicam que Oppenheimer e Barbie conseguiram, nas salas portuguesas, uma proeza assinalável: desde 2017 não havia um fim de semana com tão grande frequência.
Como estas questões são quase sempre mediatizadas das formas mais estúpidas (incluindo a "ideia", propriamente ofensiva, segundo a qual os "críticos" menosprezam os filmes de sucesso), permito-me lembrar que aquilo que se discute no texto aqui reproduzido não é o "maior" ou "menor" número de bilhetes vendidos — aliás, como está escrito no quinto parágrafo, trata-se de analisar uma concorrência que se deseja produtiva.
O que está em jogo é bem diferente — e é, sobretudo, de outra natureza. A saber: quais os efeitos comerciais (e, nessa medida, absolutamente culturais) de um marketing que, como se escreve no quarto parágrafo, ao longo de pelo menos duas décadas, afunilou a oferta e a procura dos produtos de natureza cinematográfica. Com ou sem "Barbenheimer", a questão permanece e justifica toda a atenção das entidades directa ou indirectamente envolvidas nas respectivas dinâmicas.