Cillian Murphy no papel de J. Robert Oppenheimer: um actor prodigioso, uma proeza cinematográfica |
Depois da ficção científica de Tenet, Christopher Nolan revisita a herança trágica da Segunda Guerra Mundial: o filme Oppenheimer faz um retrato do “pai da bomba atómica” em que a infinita complexidade da história é tratada através de uma genuína paixão pelos valores espectaculares do cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 julho), com o título 'O cientista, o inferno, a sua bomba e o fogo dela'.
Tom Cruise e vários elementos da produção e do elenco do mais recente título de Missão Impossível (estreado a 13 de julho) têm insistido nas singularidades da respectiva projecção. Não se trata apenas, nem sobretudo, de contar uma aventura que se quer invulgar, mas de convocar o espectador para um acontecimento especial: uma experiência (em sala, acrescente-se). A palavra tem reaparecido a propósito da nova epopeia de Christopher Nolan, Oppenheimer, dita pelo realizador e também por vários actores.
O caso não é para menos, sobretudo se nos lembrarmos que os valores específicos da “experiência” cinematográfica têm sido pirateados por discursos e valores de marketing que só sabem papaguear a dimensão “imersiva” dos ecrãs IMAX e a surpresa (?) de vermos algum herói da Marvel a destruir pela milésima vez um qualquer planeta…
Assim como os efeitos especiais podem ser um instrumento, mas não são uma garantia, dos resultados espectaculares de um filme, assim também importa reavaliar, eventualmente discutir, o que entendemos por “imersão” num filme. Ora, justamente, a resposta de Oppenheimer decorre de uma crença inabalável no cinema, não como acumulação de “acções” mais ou menos vistosas, mas sim como um companheiro das certezas e incertezas que definem essa outra experiência que acompanha, e pode transfigurar, todas as outras: a experiência humana.
Neste caso, tudo isso se torna tanto mais complexo e envolvente quanto J. Robert Oppenheimer (1904-1967), tradicionalmente rotulado de “o pai da bomba atómica”, existe como uma memória muito viva, recheada de contrastes e contradições — e não apenas na comunidade científica. Afinal de contas, o seu génio está associado ao nascimento da mais devastadora arma de destruição que os seres humanos já conceberam.
Podemos descrever o filme de Nolan através do admirável trabalho do seu elenco. Desde logo, claro, celebrando a composição de Oppenheimer por Cillian Murphy, nunca simplificando as convulsões que o habitam: a sua personagem existe, de uma só vez, como arauto da ciência e um peão da política. Emily Blunt é um caso invulgar, talvez inesperado, de superação de uma certa imagem de marca, de dramatismo algo estereotipado: a sua interpretação de Katherine, mulher de Oppenheimer, consegue evoluir da função quase decorativa que lhe é atribuída no início até uma afirmação ideológica e emocional de inusitada intensidade.
E que dizer de Robert Downey Jr. no papel de Lewis Strauss, oficial da marinha e filantropo que presidiu à Comissão de Energia Atómica, acabando por explorar as atribulações da época “maccartista” para se vingar da humilhação pública a que Oppenheimer o sujeitara? Aqui está uma personagem em que dedicação e traição se enredam de forma perversa, conferindo-lhe a vertigem de uma figura genuinamente “shakespeareana”. Aqui está, sobretudo, um verdadeiro resgate de Robert Downey Jr.: depois de anos “perdido” dentro do fato do Homem de Ferro, reencontramo-lo, finalmente, na sua verdade artística, ou seja, como um dos maiores actores do cinema contemporâneo.
A celebração dos actores, a par, por exemplo, da admirável direcção fotográfica de Hoyte van Hoytema (colaborador frequente de Nolan, nomeadamente no seu filme anterior, Tenet) está longe de se esgotar na redução do cinema a uma mera acumulação de contribuições “técnicas e artísticas”. O que importa sublinhar é o modo como Nolan sabe aplicar todos os meios específicos da sua linguagem — incluindo um espantoso tratamento do som que só adquire a devida intensidade numa sala IMAX — para criar uma narrativa em que, como coordenador do Projecto Manhattan que fabricou as bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaqui, Oppenheimer reencarna, de início de forma incauta, depois enfrentando o inferno da culpas, o mito de Prometeu. A saber: uma figura da mitologia grega que se atreveu a partilhar o fogo com os mortais, sendo castigado por Zeus a ficar, para a eternidade, atado a uma rocha.
Foi o próprio Nolan que escreveu o argumento de Oppenheimer, tendo como base o livro American Prometheus: The Triumph and Tragedy of J. Robert Oppenheimer (ed. Alfred A. Knopf, 2005), da autoria de Kai Bird e Martin J. Sherwin — o primeiro um estudioso de momentos definidores da história do século XX, com destaque para os bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaqui; o segundo um professor universitário que se tem dedicado, em particular, à investigação da proliferação das armas nucleares. O livro foi distinguido com o Prémio Pulitzer de 2006, referente ao domínio das biografias ou autobiografias.
O filme segue uma estrutura em ziguezague que não corresponde exactamente a uma lógica de flashbacks, mesmo se as cenas do interrogatório oficial a que Oppenheimer é sujeito depois da guerra (procurando acusá-lo de traição aos EUA motivada pelas suas “simpatias” comunistas) funcionam como pólo de ligação, e também de lançamento, dos vários tempos da acção, antes e depois da guerra. Nesta perspectiva, Nolan parece apresentar-se como herdeiro directo da sofisticação clássica (temporal, justamente) de uma autor como Joseph L. Mankiewicz e, em particular, de títulos como All About Eve (1950) ou A Condessa Descalça (1954).
No limite, a odisseia de Oppenheimer confunde-se com a ancestral tragédia da verdade. Quem a detém? Ou melhor, quem a diz, pode ou sabe dizer? Daí a opção por uma alternância de imagens a cores e preto e branco que nunca se confunde com uma simples dicotomia passado/presente. Aliás, o próprio Nolan já explicou que tal alternância serve para sustentar um vai-vém entre objectividade e subjectividade que, no limite, sugere a ambivalência em que se desenvolve qualquer procura de algum efeito de verdade. Os contrastes das imagens justificam a evocação de outra referência clássica de Hollywood: JFK (1991), de Oliver Stone, sobre a investigação do assassinato de John F. Kennedy.
Raras vezes temos visto um tão fascinante colectivo de personagens representados desta maneira, ao mesmo tempo tão precisa e tão aberta à disseminação simbólica das suas componentes — será preciso sublinhar que o desencanto do filme face à gestão humana (sem dúvida desumana) dos nossos meios de destruição ecoa, ponto por ponto, no presente?
Porventura o mais espantoso do labor de realização de Nolan decorre do facto de fazer passar essa angústia colectiva sem nunca encerrar a personagem de Oppenheimer (ou qualquer outra, em boa verdade) num cliché dramático ou ideológico que possa satisfazer os fundamentalismos “históricos” dos nossos dias, em especial os que alimentam as formas mais antigas de anti-americanismo primário. O Oppenheimer encarnado por Cillian Murphy é uma personagem maior que a vida. E ainda, se tal é possível, maior que a morte. A perturbação que tudo isso arrasta é também um hino ao cinema.