terça-feira, agosto 31, 2021

Stanley Kubrick, Spike Jonze
e os nossos assistentes virtuais

Ele e ela

Falar com as máquinas deixou de ser futurismo: há mesmo quem diga que se trata de uma experiência “natural e enriquecedora” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 agosto), com o título 'Na companhia do nosso assistente virtual'.

Eis um discurso optimista, produto de algumas das mais discretas, e também mais poderosas, convulsões culturais que vão transfigurando o mundo em que vivemos: “O desenvolvimento de sistemas de voz em aplicações móveis, sites da internet, telemóveis e smartphones decorre do crescente interesse dos consumidores em estabelecer diálogo com os seus dispositivos técnicos.” Quem o diz é Donald Buckley, em artigo de opinião no Variety (5 agosto), ele que desempenha funções de consultor da Open Voice Network, associação que se define como “neutra, sem fins lucrativos”, tendo como objectivo fundamental o “desenvolvimento de directrizes para os padrões e a ética que tornarão a voz um elemento de confiança para os consumidores.”
Não tenho nenhuma razão para duvidar da seriedade da Open Voice Network, muito menos das competências do articulista e do rol de colaboradores que a instituição apresenta no seu site. Aliás, na melhor tradição anglo-saxónica da informação jornalística, Buckley está longe de reduzir a sua exposição a um banal panfleto “moral”, dando também a conhecer a tecnologia da voz (“voice technology”) na sua dimensão de gigantesca economia global.
As estatísticas americanas são elucidativas. Assim, entre 2018 e 2020, o número de pessoas com “assistentes de voz” nos smartphones cresceu 23%. Por sua vez, em janeiro de 2021, os dispositivos caseiros accionados pela voz ultrapassaram os 90 milhões de unidades, envolvendo um terço da população adulta dos EUA. Com uma crescente aplicação no consumo dos chamados conteúdos audiovisuais (notícias, filmes, séries, etc.), os negócios da tecnologia de voz deverão valer, em 2023, qualquer coisa como 80 mil milhões de dólares (contas redondas, ao câmbio actual: 68 mil milhões de euros).
Para já, a Amazon Alexa será o mais conhecido “assistente de voz” ou, de acordo com a gíria comercial, “assistente virtual”. A sua promoção sugere mesmo a possibilidade de integração nas mais variadas tarefas quotidianas, a ponto de o respectivo site oficial proporcionar um “curso de design de voz” com qualquer coisa que, à falta de melhor, poderemos classificar como nova iniciação ao canto coral: “(…) você aprenderá a criar experiências de voz naturais e enriquecedoras”.
Naturais? Enfim, não será difícil imaginar as possíveis vantagens práticas de um “assistente de voz” em situações muito variadas, da manipulação dos mais complexos artefactos da investigação científica até às situações de pura intimidade (por exemplo, nas lides com as máquinas caseiras por alguém que possua determinadas limitações físicas). Acontece que, mais do que nunca, importa lembrar que a natureza nunca é… natural. Ou melhor: aquilo que designamos como naturalidade dos comportamentos é sempre social e conjuntural, numa palavra, cultural.
O cinema, quase sempre secundarizado nas reflexões sociais e políticas sobre os nossos modos de viver (e morrer), possui uma nobre antologia de títulos que lidam com a “naturalização” da tecnologia e os seus efeitos dramáticos nas nossas vidas. Será preciso recordar as atribulações físicas e metafísicas provocadas pelo computador HAL 9000 em 2001: Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick? Penso, em particular, num filme mais recente, Her - Uma História de Amor (2013), de Spike Jonze, em que, numa paisagem futurista, mas contemporânea (Xangai dos nossos dias), Joaquin Phoenix se transfigura através da relação — entenda-se: relação falada — com o seu computador (aliás, “sistema operativo”) que se exprime com a voz de Scarlett Johansson [video].
A indiferença quotidiana aos poderes da tecnologia e a estreiteza do pensamento social sobre tais perplexidades são tanto maiores quanto há um vício (des)informativo que tende a condensar tudo numa dicotomia pueril: “pró” ou “contra” as máquinas… Como se se tratasse de reencontrar um ilusório paraíso perdido, pré-Revolução Industrial.
Estamos, afinal, a ser mobilizados para um novo sistema cognitivo que elege o “diálogo” com entidades virtuais como uma experiência “enriquecedora”. No limite, comprometemos a qualidade humana da nossa literacia, participando na decomposição de um sistema de percepção do mundo enraizado na escrita e na leitura.

domingo, agosto 29, 2021

Charlie Watts
— uma memória dos Rolling Stones

Charlie Watts relembrado pelos Rolling Stones — eis o video de homenagem da banda, publicado no Twitter (aqui em transcrição do jornal The Guardian).
 

Edgar Morin
— o filósofo selvagem [1/3]

Edgar Morin

Ao completar 100 anos de vida, Edgar Morin publicou um livro sobre as “lições de um século de vida”, viajando por caminhos plurais, da investigação antropológica à recusa de uma sociedade regida por algoritmos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 agosto).

Podemos esboçar um brevíssimo inventário do último século através de algumas emblemáticas referências históricas: a morte da utopia comunista, do impulso leninista aos crimes de Estaline; a agressão nazi e a herança trágica da Segunda Guerra Mundial; a fundação de Israel e o equilíbrio nunca encontrado com o povo da Palestina; as convulsões individuais e colectivas da década de 1960, desembocando nos combates de maio de 68; a urgência de uma ecologia política, enfrentando a questão da sobrevivência do próprio planeta; o triunfo global de um aparato tecnológico capaz de alterar todas as relações humanas e, no limite, a própria definição do factor humano…
Pressentimos as infinitas ramificações de todas estas coordenadas e, em boa verdade, não temos maneira de condensar o seu labirinto numa única forma de saber ou num domínio específico de investigação. Em qualquer caso, podemos avançar com um nome que se distingue como personagem e testemunha, viva e activa, das respectivas peripécias: Edgar Morin, nascido em Paris, a 8 de julho de 1921.
Assinalando o seu 100º aniversário, Morin publicou o livro Leçons d’un Siècle de Vie (Éditions Denoël, Paris). A palavra “lições” é, por certo, elemento vital do título, quanto mais não seja porque Morin sempre foi sensível ao paradoxo de qualquer pedagogia: ensinar como forma de aprender. Mas importa sublinhar o facto de o autor não se bloquear na facilidade de um individualismo heróico: trata-se de abrir a sensibilidade e o pensamento a uma multifacetada experiência histórica, não tanto descrevendo uma vida de um século, antes percorrendo os contrastes e contradições de “um século de vida”.
Para Morin, essa multiplicidade envolve qualquer coisa de visceral: “(…) sou francês, de origem judaica sefardita, parcialmente italiano e espanhol, amplamente mediterrânico, culturalmente europeu, filho da Terra-Pátria.” O que o leva a perguntar se é possível ser-se tudo isso ao mesmo tempo, respondendo: “Não, depende das circunstâncias e dos momentos em que uma ou outra identidade pode prevalecer.”
Aliás, a sua identidade plural passa pelo nome, elemento sempre vital da nossa afirmação e das relações que podemos ou sabemos estabelecer com os outros. O autor de O Homem e a Morte (Publicações Europa-América) nasceu Edgar Nahoum, apelido do pai, Vidal Nahoum, judeu sefardita grego, originário de Salónica, a quem dedicou o livro Vidal e os Seus (Instituto Piaget). Adoptou o apelido Morin enquanto elemento da Resistência na França ocupada pelo exército hitleriano, acabando por usá-lo a partir dos primeiros artigos que escreveu no pós-guerra, embora conservando legalmente o apelido do pai — essa duplicidade onomástica sempre lhe trouxe algumas confusões burocráticas, mas é uma opção absolutamente consciente. Em recente entrevista ao Philosophie Magazine (julho/agosto), resume assim a questão: “Conservando os dois nomes, senti-me ao mesmo tempo ‘filho do meu pai’ e ‘filho das minhas obras’.

sexta-feira, agosto 27, 2021

Pearl Jam, "Ten" — 30 anos

Ten, álbum de estreia dos Pearl Jam, foi lançado a 27 de agosto de 1991, faz hoje 30 anos. Na paisagem dilacerada do grunge, nascia uma via poética que nunca cedeu à normalização do marketing, permancendo selvagem, terna e intimista. Exemplo: Black, neste caso em versão unplugged, em 1992, numa MTV que já não existe.
 

Elise LeGrow — nova canção

Três anos e meio depois da revelação de Playing Chess, a canadiana Elise LeGrow tem uma nova canção, ao que parece primeiro indício de um novo álbum... Aí está Feel Alright, produto exemplar de um sensibilidade pop alicerçada numa sofisticada nostalgia R&B.

quinta-feira, agosto 26, 2021

As lágrimas de Billie Eilish

No seu novo álbum, Billie Eilish canta o envelhecimento e a nitidez da morte: ela está “mais feliz que nunca” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 agosto).

Billie Eilish tem 19 anos. Nascida em Los Angeles, completará 20 no dia 18 de dezembro. Na canção de abertura do seu novo e belíssimo álbum, Happier than Ever (à letra: “Mais feliz que nunca”), comenta o próprio envelhecimento. Chama-se Getting Older e começa com estes versos: “Estou a ficar mais velha / Acho que estou a envelhecer bem.” Seria precipitado encarar a confissão de Billie Eilish como uma banal variação do infantilismo cultural que passou a contaminar muitas formas de figuração das personagens mais jovens. Exemplo gritante desse infantilismo é a apoteótica decadência da MTV, a estação de televisão que completa hoje 40 anos — foi a 1 de agosto de 1981 que as emissões da “TV da música” começaram nos EUA, com a lendária passagem, simbólica por excelência, do teledisco de Video Killed the Radio Star, dos Buggles. Por estes dias, a MTV ocupa horas infinitas com derivações (ainda mais) grotescas da “reality TV” ou com programas como “Ridiculousness”, acumulando videos de incidentes pessoais mais ou menos benignos, desse modo promovendo uma pornografia existencial comandada por uma nova filosofia da identidade humana: “Sou ridículo, logo existo”.
Finneas O’Connell
Bruscamente, neste verão, Billie Eilish expõe-se num registo bem diferente. A deambulação poética pelos labirintos do envelhecimento apresenta-se num canto intimista, quase ciciado, como a maior parte do álbum, envolvido no prodigioso trabalho instrumental do seu irmão Finneas O'Connell (24 anos). De tal modo que o reconhecimento desse sereno e inusitado envelhecimento reflecte as convulsões de um tempo que, por inquieto paradoxo, nos leva a questionar as próprias medidas do tempo.
A coincidência tem qualquer coisa de espectacular: o álbum de Billie Eilish surge na mesma altura em que um dos acontecimentos do mercado cinematográfico é um filme construído a partir de uma perversa reconversão do fluxo temporal. Realizado por M. Night Shyamalan, chama-se Old (“Velho”), tendo recebido o subtítulo português Presos no Tempo. Em boa verdade, não se trata de um aprisionamento, mas sim de uma deriva que põe em causa todas as coordenadas do universo humano, a começar, precisamente, pelas suas medidas temporais: as personagens de Shyamalan encontram-se numa deslumbrante praia protegida, virtualmente inacessível, em que, por cada meia hora, envelhecem um ano… Afinal, o paraíso aproxima-nos da nitidez indizível da morte.
Em entrevista na edição de junho da Vogue britânica, Billie Eilish apresentava-se em fotografias de sugestiva reconversão da iconografia tradicional da “pin-up”, dando conta, a certa altura, da sua admiração por Greta Thunberg (“She’s f**king amazing”, segundo a citação da revista). Para lá do simbolismo geracional, creio que fará sentido reconhecer nessa cumplicidade Eilish/Thunberg a marca de um pragmatismo político para o qual nem sempre estamos disponíveis. A saber: no reconhecimento das tragédias climáticas, tal como nos cânticos deste caloroso neo-romantismo, está enunciada uma relação muito directa e frontal com a imagem indefinida da morte — o planeta pode morrer e, em qualquer caso, cada um de nós é um ser para a morte.
Nada a ver, entenda-se, com a propaganda obscena do sofrimento que tem vindo a contaminar algumas linguagens do nosso planeta televisivo sem fronteiras. No caso sempre revelador do desporto, o “sofrimento” (palavra corrente nas entrevistas dos jogadores de futebol) circula envolvido com a obrigação simbólica da vitória; é francamente perturbante o facto de muitas entrevistas com os atletas olímpicos já não serem sobre o próprio labor desportivo, mas sim sobre a quase obrigação de ser medalhado (o que, regra geral, depois da prova, obriga o atleta a “justificar” o seu falhanço).
Para que não restem dúvidas, Billie Eilish atreve-se mesmo a cantar que “todos morremos”. Dir-se-ia um novo capítulo do seu álbum de estreia, lançado em 2019, cujo título era, muito literalmente: “Quando todos adormecemos, para onde é que vamos?” (When We All Fall Asleep, Where Do We Go?). Agora, a canção Everybody Dies começa assim: “Todos morremos / Surpresa surpresa”… Daí a tocante ambivalência da capa do álbum, fazendo coexistir o título de felicidade com as lágrimas da cantora. O teatro é uma forma de sinceridade.

"Spencer" — o poster

Com assinatura de Pablo Larraín, Spencer, um retrato da Princesa Diana, interpretada por Kristen Stewart, vai estar na competição do Festival de Veneza. Como será? Pouco ou nada se sabe, mesmo se não podemos deixar de recordar que, no género "biográfico", Larraín tem na sua filmografia o prodigioso Jackie (2016), sobre Jacqueline Kennedy. Uma coisa é certa: já temos o poster do ano!

quarta-feira, agosto 25, 2021

Charlie Watts (1941-2021)

[ rollingstones.com ]

Figura emblemática da história dos Rolling Stones, a sua herança define-o como um dos maiores bateristas da história do rock'n'roll: Charlie Watts faleceu no dia 24 de agosto, num hospital de Londres — contava 80 anos.
Elegante, seguro e discreto, Watts fica como símbolo exemplar de um sentido do ritmo e da performance cujas raízes estão, como ele sempre disse, no jazz. Daí que as suas gravações para lá dos Stones, nomeadamente com o seu quinteto, constituam uma parte discreta, mas essencial, da sua biografia artística.
No dia 5 de agosto, tinha sido oficialmente anunciado que Watts não estaria na fase final da 'No Filter Tour', dos Stones (primeira data: 26 de setembro, St. Louis, Missouri), tendo sido substituído por Steve Jordan.

>>> Fragmento de One Plus One/Sympathy for the Devil (1968), de Jean-Luc Godard.
 

>>> The Rolling Stones: Dead Flowers [The Marquee Club, 1971]
 

>>> The Rolling Stones: Emotional Rescue (1980).
 

>>> The Charlie Watts Quintet: Lover Man; voz: Bernard Fowler [Dennis Miller Show, 1992].
 

>>> The Charlie Watts Quintet: All or Nothing at All; voz: Bernard Fowler; álbum Long Ago and Far Away (1996).
 

>>> Paint it Black, Havana Moon (2016), de Paul Dugdale.
 

>>> Obituário na CNN.
 

>>> Obituário na Rolling Stone.
>>> Charlie Watts Instagram.
>>> Charlie Watts no Drummerworld.

terça-feira, agosto 24, 2021

St. Vincent, "Daddy's Home"

Agora em teledisco: Daddy's Home, tema título do sexto álbum de estúdio de St. Vincent renasce em encenação retro e surreal, incluindo corpo de baile — that's entertainment!

domingo, agosto 22, 2021

Uma nova/velha canção dos Rolling Stones

Tattoo You está a fazer 40 anos e vem aí uma especialíssima reedição (a 22 de outubro), incluindo nove temas inéditos — ou "não ouvidos", unheard, como se diz no site dos Rolling Stones. Eis a primeira dessas canções a ser divulgada: Living In The Heart Of Love.
 

A IMAGEM: Chris Steele-Perkins, 1998

CHRIS STEELE-PERKINS / Magnum
Afeganistão
1998

sexta-feira, agosto 20, 2021

Quentin Tarantino
— era uma vez o cinema

Margot Robbie no papel de Sharon Tate,
ou o cinema para lá da morte

Ao tratar Sharon Tate como personagem de Era uma Vez em Hollywood, Quentin Tarantino libertou a sua memória do estatuto de vítima este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 julho).

Quentin Tarantino é um genuíno cinéfilo: alguém que filma a partir de memórias precisas da história do cinema, não para as congelar numa nostalgia complacente, antes revendo-as e reinventando-as como coisa do presente. O seu filme de 2019, Era uma Vez em Hollywood, constitui um exemplo modelar de tal atitude.
Aí revisitamos o ano de 1969, nos cenários da “fábrica de sonhos” da Califórnia, reconvertidos pela emergência de novos protagonistas ligados ao poder crescente da televisão. As personagens interpretadas por Leonardo Di Caprio e Brad Pitt são sintomas dessa conjuntura: figuras de um novo tempo em que persiste a herança da idade de ouro de Hollywood, mesmo se já não parece possível refazer o seu poder mitológico.
Ilustrando a elaborada consciência crítica das raízes estéticas e simbólicas do seu trabalho, Tarantino acaba de lançar uma “novelização” do seu filme, adoptando o formato de bolso e o visual dos tradicionais romances policiais (“pulp fiction”). O livro Once Upon a Time in Hollywood (HarperCollins) surgiu, assim, como expressão de uma ancestral relação de amor — entre a narrativa cinematográfica e o desejo literário da escrita.
Tarantino tem dado vários entrevistas sobre esta estreia como romancista, afinal um prolongamento do seu trabalho como escritor de argumentos: foi, aliás, como argumentista que já ganhou dois Oscars, com Pulp Fiction (1994) e Django Libertado (2012). Há dias, no programa “The Jess Cagle Show” da rádio SiriusXM, falou das memórias de Sharon Tate (1943-1969) e do seu tratamento enquanto personagem de Era uma Vez em Hollywood.
Mesmo não conhecendo o filme, o leitor saberá que Sharon Tate, na altura casada com Roman Polanski, foi assassinada a 9 de agosto de 1969 pelo gang da Família Manson. E, sobretudo para quem não conhece o filme, creio que é essencial não revelar como é que a personagem de Tate, interpretada por Margot Robbie, surge encenada por Tarantino…
Gostaria apenas de citar algumas palavras cristalinas de Tarantino à Sirius XM, depois de evocar a sua deslumbrada descoberta da actriz na comédia policial The Wrecking Crew/Um Perigo em Cada Curva, aliás citada em Era uma Vez em Hollywood (foi em 1968, tinha Tarantino cinco anos). Diz ele que “é horrível que ela tenho sido definida (apenas) através do seu assassinato”. E acrescenta que um dos aspectos de que se orgulha é o facto de, “depois do filme”, já não ser definida dessa maneira. Graças ao filme, e à composição de Margot Robbie, deixou de ser vista através do “estatuto de vítima” — é alguém “com significado” e não apenas uma “estatística”.
Poderemos recordar que, para muitos cinéfilos, em particular os jovens espectadores das décadas de 60/70, Tate nunca foi uma mera “estatística”, quanto mais não fosse por causa do seu protagonismo no popularíssimo Por Favor, Não Me Morda o Pescoço (1967), homenagem paródica de Polanski aos filmes de vampiros que, subtilmente, se vai transformando em fábula política. Mas as palavras de Tarantino não envolvem apenas a preservação dessas memórias.
De que se trata, então? Em boa verdade, creio que aquilo que está em jogo é o poder social e simbólico do cinema. Quando refere a alteração da percepção de Sharon Tate através do seu filme, Tarantino está a celebrar o cinema, não como um entretenimento abstracto, antes um evento específico através do qual a nossa visão do mundo — e, nessa medida, as formas concretas do nosso conhecimento — vive um processo de permanente transfiguração.
Não é secundária esta questão, sobretudo se nos lembrarmos que, nas últimas duas décadas, o triunfo económico e promocional dos super-heróis (com alguns filmes magníficos, não é isso que está em causa) consolidou uma imagem esquemática, profundamente redutora, da diversidade cinematográfica. Temos estado a desvalorizar a dimensão social do próprio cinema. “Social”, entenda-se, não é uma banal derivação das redes (ditas) sociais, muito menos a definição do cinema como um sermão sociológico. Ao evocar Sharon Tate através, e para lá, da sua morte, Tarantino celebra o cinema como coisa íntima do nosso olhar. Não há nada mais social.

quinta-feira, agosto 19, 2021

The Isley Brothers em concerto da NPR


A imagem de The Isley Brothers tem data de 1975... Por estes dias, a banda anda em digressão para comemorar os seus 60 anos! Referência lendária na história da soul & funk, gravaram recentemente este Tiny Desk (Home) Concert, para a NPR. Segundo as notas da rádio pública americana, as quatro canções interpretadas já foram reinventadas (samples e covers) por mais de 300 artistas...
 

terça-feira, agosto 17, 2021

Stephen Colbert
How to do the right thing?

Dialéctica televisiva: não é um remédio mágico (seja para o que for), mas envolve sempre um fundamental respeito pelos factos e pela capacidade do espectador pensar — eis o momento do Afeganistão comentado por Stephen Colbert.

Memórias de "Pânico em Needle Park"

Al Pacino e Kitty Winn

Meio século depois da estreia, Pânico em Needle Park é um filme que continua a distinguir-se por uma fundamental energia realista — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 julho), com o título'Face ao olho gelado da câmara'.

Penso na facilidade com que, através de manchetes delirantes e efémeras, se aplica a palavra “chocante”. Objectivo: designar aquilo que, supostamente, abala as estruturas de toda a sociedade. Trata-se de um jogo pueril: na semana seguinte, eventualmente daí a poucas horas, o “choque” de uma notícia, acontecimento ou filme acaba substituído por um qualquer sucedâneo, igualmente superficial e fugaz. Adoptámos o “choque” (“bom” ou “mau”, não é essa a questão) como um valor cultural.
Jerry Schatzberg
Duvido do ecumenismo com que nos chocamos. Não pelo eventual abalo “colectivo” mas, precisamente, pela sua chantagem ecuménica — os olhares individuais definem uma paisagem de infinitas variações. Gosto de citar um exemplo cinéfilo, por excelência, para sugerir o enigma que assim nos convoca. Penso, então, nos espectadores que, em 1896, viram o lendário filme de 50 segundos dos irmãos Lumière que regista a chegada de um comboio à gare de La Ciotat. Penso no medo que alguns deles experimentaram, fugindo do comboio que, no ecrã, se movia em direcção aos seus lugares… E pergunto-me se alguma vez conseguirei sentir algo próximo desse “choque” primordial — a minha resposta é sempre negativa.
Uma efeméride destes dias ajuda-me a acrescentar um pouco mais a esse misto de desencanto e fascínio. Assim, está a fazer 50 anos um filme que adoro e, creio, terá sido marcante para alguns espectadores da minha geração: foi a 13 de julho de 1971 que Pânico em Needle Park, uma realização de Jerry Schatzberg, se estreou na salas dos EUA.
A expressão Needle Park (à letra: “parque das agulhas”) designava, na altura, a zona de Sherman Square, em Manhattan, local de venda de drogas onde se cruzavam consumidores e vendedores. O filme acompanha a saga de Bobby e Helen — interpretados por Al Pacino e Kitty Winn, respectivamente —, vivendo um turbilhão em que coexistem os períodos em que escasseiam as doses de heroína (é esse o “pânico” a que o título se refere), a venda do corpo para obter dinheiro e a crescente degradação das condições materiais de habitação e alimentação.
Claro que o “choque” de Pânico em Needle Park não era estranho a esse novelo de situações. Seja como for, faço questão em dizer que resisto a hierarquizar os filmes em função do seu “tema” — afinal de contas, Janela Indiscreta (1954), de Alfred Hitchcock, é “apenas” sobre um homem que, da sala de sua casa, observa a vizinhança… e não deixa de ser uma esplendorosa obra-prima.
Essencial era o facto de tudo aquilo que acontece no filme passar pelos corpos dos actores. Passar, insisto: há (ou pode haver) no cinema esse ritual de passagem que faz com que um homem ou uma mulher, face ao olho gelado de uma câmara, mesmo através do máximo artifício, possa imprimir no ecrã uma verdade primitiva que tem tanto de singular como de irredutível. Vemo-los como seres em que nem tudo será do domínio corporal, mas tudo passa pelo corpo — incluindo as palavras que não conseguem inventariar a comoção que define a vulnerabilidade de ser. E escusado será sublinhar a importância de o par de intérpretes principais terem chegado ao cinema depois de uma sofisticada prática teatral (Pânico em Needle Park foi, para ambos, o arranque da carreira cinematográfica).
Realismo, quero eu dizer. Tanto mais paradoxal e admirável quanto Schatzberg, além de cineasta, possui também uma obra brilhante como fotógrafo retratista e de moda. O cinema americano da época era um caldeirão fascinante de criadores apostados em reconverter os métodos de relação com a realidade que filmavam, expondo a urgência — não apenas cinéfila, mas narrativa — de integrar as lições do classicismo, superando-o. Para nos ficarmos por dois títulos muito premiados desse ano de 1971, lembremos The French Connection, de William Friedkin, sobre outro domínio da droga (os cartéis internacionais), e The Last Picture Show, de Peter Bogdanovich, um retrato da geração marcada pela guerra da Coreia.
Como se costuma dizer, o resto é história. No ano seguinte, Al Pacino contracenava com Marlon Brando em O Padrinho, de Francis Ford Coppola. Quanto a Kitty Winn, por opção pessoal, abandonou o cinema ainda na década de 70; Pânico em Needle Park valeu-lhe o único prémio da sua carreira: melhor actriz no Festival de Cannes de 1971.

domingo, agosto 15, 2021

The Rolling Stones, 1968

Nenhuma efeméride a assinalar... Apenas a evidência de um tempo que transcendeu os limites de qualquer calendário. A saber: Sympathy For The Devil, tal como foi interpretado em The Rolling Stones Rock and Roll Circus. A data, já agora: 11 de dezembro de 1968.
 

sábado, agosto 14, 2021

As Doce
— história, televisão e um resto de cinema

Lia Carvalho, Bárbara Branco, Ana Marta Ferreira e Carolina Carvalho

Evocando a saga da Doce, o filme Bem Bom apresenta-se limitado pela sua lógica televisiva, embora tendo como trunfo o quarteto de actrizes principais — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Julho), com o título 'Memórias entre escândalo e popularidade'.

Curioso fenómeno mediático: há uma ideologia “redentora” que gosta de reduzir a nossa história colectiva a uma colecção de contrastes maniqueístas. Exemplo corrente é a descrição do 25 de abril como um milagre sem passado, a não ser Salazar e a PIDE. Como se a inventariação dos símbolos da ditadura dispensasse o conhecimento das pessoas que nasceram e viveram no tempo do Estado Novo.
O filme Bem Bom, realizado por Patrícia Sequeira, não é estranho a essa ideologia. Neste caso, o retrato das Doce parece reduzir-se a uma cruzada feminista que veio purificar o pântano cultural que se seguiu ao 25 de abril… Mesmo aceitando a ideia de que os homens eram um sinistro batalhão de obscenidades, parece difícil sustentar a noção de que as Doce foram, em 1979, a vanguarda de um Portugal finalmente liberto de todos os conformismos. “Elas sabem cantar, brilham a dançar e escandalizam o país…”, diz a sinopse oficial do filme para, na frase seguinte, proclamar exactamente o contrário: “Elas tornam-se um fenómeno de popularidade.”
Não está em causa a legitimidade de definir as Doce (ou qualquer outro fenómeno cultural) de uma maneira ou de outra. O que se discute é o facto de haver toda uma lógica televisiva — que Bem Bom reflecte de princípio a fim, com a sua montagem acelerada, vistosa e nem sempre muito atenta às especificidades de cada situação dramática — que “obriga” a que as personagens existam menos como pessoas e mais como bandeiras para ilustrar uma “causa”.
Seja como for, importa não simplificar ainda mais e, como lembra a sabedoria popular, não deitar fora o bebé com a água do banho… Parece evidente que Bem Bom resulta de um trabalho genuinamente empenhado, tentando, pelo menos, vislumbrar a hipótese de um cinema português sem preconceitos de se envolver com fenómenos como as Doce.
Até porque, importa também sublinhar que, a partir do momento em que é evocado o processo de difamação das Doce (através de um boato sórdido), o filme consegue gerar alguns momentos mais subtis em que as personagens são libertadas do peso de ilustrarem um “simbolismo” anterior ao próprio trabalho narrativo. O mérito das actrizes (e da sua direcção, naturalmente) é decisivo. Ou seja: Lia Carvalho, Bárbara Branco, Carolina Carvalho e Ana Marta Ferreira, interpretando, respectivamente, Teresa Miguel, Fátima Padinha, Lena Coelho e Laura Diogo. Há nelas os sinais de um talento plural que, devidamente enquadrado e desenvolvido, só pode ser enriquecedor para o cinema (e, já agora, para as produções televisivas).
Resta dizer que ninguém detém o exclusivo do escândalo. Em nome da mais básica atenção à complexidade histórica (do cinema e do país), valerá a pena recordar que 1979 foi, justamente, o ano de um verdadeiro escândalo cultural. A saber: a série televisiva, depois filme, Amor de Perdição, com assinatura de Manoel de Oliveira — existe, aliás, uma galeria imensa de espectadores que julgam saber tudo sobre o filme sem nunca terem mostrado disponibilidade para o ver. Esperemos que cada um pense pela sua cabeça e que Bem Bom não seja objecto de um assombramento do mesmo género.

terça-feira, agosto 10, 2021

Sari Soininen
— na companhia dos gatos

Fotógrafa finlandesa, a viver em Bristol, Reino Unido, Sari Soininen viveu o seu confinamento na companhia dos gatos. De tal modo que, entre terna proximidade e obrigatória distância, foi construindo um portfolio em que a vibração realista não exclui, antes pelo contrário, o delírio cromático. Em França, o jornal Libération dá a conhecer a sua aventura gráfica e filosófica, com o mais belo dos subtítulos: "chat va mieux".

segunda-feira, agosto 09, 2021

"O Livro de Imagem" no IMDb

Da Vinci, 1513-16 + Godard, 2018

>>> 2018, JEAN-LUC GODARD - O Livro de Imagem

* Na respectiva página do IMDb, O Livro de Imagem, um dos títulos-chave do cinema do século XXI, está identificado como um "documentário".

* Gostaríamos, talvez, de mostrar alguma candura e supor que os responsáveis quiseram dar conta do modo como Godard, militantemente, "documenta" o estado do mundo.

* Mas não, trata-se apenas da incapacidade de lidar com qualquer coisa que exceda os estereótipos das maiores mediocridades da Marvel e afins, todos os dias promovidas como padrão absoluto do cinema que importa ver.

* Aliás, o efeito muito concreto desta irresponsabilidade editorial é a contínua ampliação do exército de espectadores alheados da fascinante pluralidade do cinema, indisponíveis para tudo o que ponha em causa a preguiça narrativa em que foram (des)educados.

* Exemplo? A classificação de O Livro de Imagem — obviamente estabelecida por esses espectadores democraticamente celebrados e multiplicados pelo IMDb — é, neste momento, de 6,2 (numa escala de 0/10).

* Digamos, para simplificar, que se aproxima, heroicamente, dos 6,5 de Kickboxer (1989), com Jean-Claude Van Damme...

domingo, agosto 08, 2021

A invasão do Capitólio
revista pelo "New York Times"

Capitólio, Washington, 6 de janeiro de 2021
(video de The New York Times)

Num video do jornal The New York Times, revisitamos a invasão do Capitólio: o jornalismo expõe a angustiante duração dos acontecimentos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 julho), com o título 'A informação e a sua batalha contra o tempo'.

A proliferação de circuitos audiovisuais de informação gerou um culto beato da própria informação. A mais básica interrogação pedagógica — que informação? — é muitas vezes dispensada, e tratada como dispensável, cedendo espaço à pueril exaltação do simples facto de “existir” informação.
Somos mesmo levados a aplicar uma curiosa expressão para celebrar essa vertigem. Assim, em particular face à paisagem política, dizemos que determinada informação “vale o que vale”. Regra geral, não vale nada, a não ser o próprio efeito de acumulação que consagra. Não é um fenómeno dos nossos dias. E escusado será dizer que não será possível compreendê-lo a partir de fronteiras nacionais — é mesmo uma “coisa” que justifica uma palavra também frequente na retórica mediática: transversal.
Como se as repetições e redundâncias que sustentam tal retórica nos projectassem no ecumenismo da globalização cuja existência, em qualquer caso, da euforia ao cepticismo, todos reconhecemos.
Em 1994, o historiador e filósofo norte-americano Theodore Roszak (1933-2011) tratou tais questões num livro cujo título não poderia ser mais eloquente: The Cult of Information (University of California Press). A sua avaliação crítica do nosso “culto da informação”, envolvendo o endeusamento do trabalho dos computadores, está longe de ter perdido actualidade: “Se pensar é apenas uma questão de processamento de informação, então, na verdade, não há nenhuma diferença significativa entre o modo de pensar dos seres humanos e o das máquinas, a não ser o reconhecimento de que as máquinas são melhores nessa tarefa. E se processar informação é a primeira necessidade do nosso tempo, então é óbvio que importa reconhecer a vantagem selectiva das máquinas. Mas que espécie de “selecção” estamos aqui a discutir? Não natural, mas, por certo, selecção cultural. O “ambiente informativo” é, afinal, uma coisa gerada por nós. Deveríamos, por isso, ter o poder de o mudar de modo a servir os nossos valores. Será uma visão sombria da vida considerar que, timidamente, devemos tornar-nos vítimas da cultura que criámos.”
Na Internet, no site do jornal The New York Times (e também no respectivo canal do YouTube), podemos encontrar um esclarecedor exemplo dessa vontade de não nos instalarmos, passivamente, no caldeirão da informação quotidiana que recebemos, não poucas vezes sem sequer termos a consciência plena de que a estamos a receber. Tratou-se, neste caso, de fazer um inventário do dia 6 de janeiro, em Washington, quando uma multidão invadiu o Capitólio.
Estamos perante um video de 40 minutos intitulado “Day of rage” (“Dia de raiva”) em que se começa por recordar a campanha de Donald Trump, não apenas apontando o Capitólio como um alvo simbólico, mas também, antes disso, conseguindo convencer muitos cidadãos americanos que as eleições presidenciais estavam “viciadas”. Seja como for, o essencial deste extraordinário exemplo de “investigações visuais” (designação de uma secção audiovisual do jornal) decorre do didactismo do seu labor: através e, sobretudo, para lá das imagens que criaram um “emblema” informativo da invasão, trata-se de revisitar os factos a partir de uma lógica narrativa que resiste à aceleração banal do “clip” noticioso.
Nesta perspectiva, o tema fulcral do video — tema político, por excelência — é o tempo. Entenda-se: a duração dos acontecimentos. Mais do que isso: a simultaneidade de alguns factos, a começar pelo discurso de Trump no parque “The Ellipse”, da Casa Branca, a cerca de 3 quilómetros do Capitólio (“Vamos em direcção ao Capitólio”) e o primeiro ataque dos manifestantes contra as barreiras das forças de segurança.
Subitamente, a confusão figurativa dos eventos vai-se dissipando, revelando uma estratégia montada ao longo de vários meses. As palavras de Trump e seus apaniguados deixam de existir como pontuações mais ou menos delirantes, porventura caricatas, para emergirem como elementos materiais de um projecto de desmantelamento de algumas estruturas básicas da democracia americana (a começar pelo Capitólio). A elaboração do video de The New York Times durou seis meses, lembrando-nos assim que, para lá da equívoca velocidade do dia a dia, o jornalismo pode ser também uma angustiante batalha contra o tempo.

Billie Eilish na BBC

Eis uma bela performance de Billie Eilish: é um registo do Live Lounge, da BBC Radio 1, com Getting Older, uma das canções do novíssimo Happier Than Ever.
 

sexta-feira, agosto 06, 2021

A leitura segundo Steve McCurry

Ler: eis uma actividade fotogénica. Na secção Photos Box, o site da agência Magnum tem estado a recordar (e vender) portfolios de alguns dos seus fotógrafos, por exemplo celebrando a nobre actividade da leitura. São imagens assinadas pelo americano Steve McCurry [em cima, Tailândia; em baixo, Brasil], mostrando que a relação com um livro pode florescer nos mais variados cenários — sem divagações pelo mundo virtual.

quinta-feira, agosto 05, 2021

"E o Tempo Passa" em DVD

Sofia Aparício
E o Tempo Passa (2011)

E o Tempo Passa, uma visão pedagógica sobre o lugar social e emocional da telenovela, já está disponível em DVD — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 julho).

Foi a derradeira longa-metragem de um dos autores maiores do nosso cinema: Alberto Seixas Santos (1936-2016). Lançado em 2011, E o Tempo Passa arrisca num domínio que, afinal, o cinema português quase sempre tem evitado: a telenovela. Entenda-se: há um número crescente de títulos que se demitiram da sua singularidade cinéfila, cedendo à formatação preguiçosa e à moral narrativa da telenovela; mas são muito poucos com a coragem de lidar com a telenovela como fenómeno de normalização da percepção das imagens e dos sons.
Esta é a história de Teresa, actriz de telenovela. Gerido por rotinas de escassa imaginação, o estúdio em que trabalha acaba por funcionar como microcosmos de uma sociedade em que as ilusões da fama contrariam as relações humanas genuínas. O resultado é um fresco social sobre um desencanto muito português, filmado com o obstinado rigor de quem sempre admirou e respeitou o trabalho dos actores: no elenco encontramos, entre outros, Sofia Aparício (no papel de Teresa), Isabel Ruth, Rita Durão, Américo Silva e Joana Metrass.

quarta-feira, agosto 04, 2021

Dinosaur Jr. em concerto na NPR

Lançado em abril, Sweep It Into Space, 12º álbum de estúdio dos Dinosaur Jr., é um objecto em tudo e por tudo fiel ao espírito fundador de uma banda que vem dos tempos convulsivos da década de 80, punk, noise & etc. — com a batida enérgica do baterista Murph, a precisão do baixo de Lou Barlow e, claro, o inconfundível grão da voz de J Macis, também na guitarra.
Recentemente, deram o seu contributo à série de dos Tiny Desk (Home) Concerts da rádio NPR — são cinco canções de alta voltagem, combinando novidades e clássicos, tudo registado no palco do Shea Theater em Turners Falls, Massachusetts.

terça-feira, agosto 03, 2021

"Os Homens do Presidente"
— a verdade e as suas narrativas

Dustin Hoffman e Robert Redford
Os Homens do Presidente (1976)

Os Homens do Presidente (1976), sobre o escândalo Watergate, é um filme sempre actual: em cena está a elaboração narrativa da verdade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 junho), com o título 'A verdade dos factos e o seu drama'.

A estreia do filme romeno Colectiv - Um Caso de Corrupção relançou na actualidade algum pensamento crítico sobre o jornalismo. Retomando também um desafio cinematográfico: como figurar o trabalho jornalístico?
A questão é tanto mais pertinente quanto há toda uma ideologia político-mediática que passou a alimentar formas pueris de heroicização do jornalista. Em algumas das suas variantes, o labor específico do jornalismo — conhecer a complexidade do mundo — passou a ser confundido com a instauração de tribunais “populares” de que o jornalista seria o juiz sem recurso e, no limite, o demiurgo inimputável.
O filme debruça-se sobre a tragédia vivida, em 2015, num clube noturno de Bucareste (de nome Colectiv), quando um incêndio provocou a morte imediata de 27 pessoas. Nas semanas seguintes, o falecimento de mais 37 pessoas que tinham ficado feridas, algumas delas sem gravidade, veio expor toda uma teia de corrupção no sistema hospitalar da Roménia, em particular através da venda de desinfectantes cuja composição tinha sido viciada.
O impacto do filme realizado por Alexander Nanau é tanto maior quanto a sua estratégia documental evolui em paralelo com a própria investigação jornalística — a equipa de Nanau viveu e conviveu com os jornalistas da Gazeta Sporturilor que expuseram os factos. Daí a sugestiva evocação de outros filmes que, não necessariamente em registo documental, tratam esse modelo de investigação, suas opções e limites — entre tais filmes emerge o clássico Os Homens do Presidente (1976), de Alan J. Pakula.
Tratou-se, neste caso, de evocar a investigação de Bob Woodward e Carl Bernstein, para o jornal The Washington Post, sobre o chamado escândalo Watergate — Robert Redford, também produtor do filme, interpreta Woodward, estando a personagem de Bernstein entregue a Dustin Hoffman. Em termos esquemáticos, lembremos que, em 1972, um assalto à sede do Comité Nacional Democrata, nos edifícios Watergate, em Washington, suscitou suspeitas que foram envolvendo vários membros da administração de Richard Nixon. A confirmação dessas suspeitas, apontando para “todos os homens do presidente” (para usarmos a expressão do título original, All the President’s Men), desembocaria na resignação de Nixon, no verão de 1974, cerca de dois anos depois do assalto.
Vale a pena lembrar a celeridade da produção do filme: a sua estreia ocorreu, nas salas dos EUA, a 4 de abril de 1976 (chegaria a Portugal em janeiro de 1977), tendo Nixon resignado a 9 de agosto de 1974. Não é, entenda-se, uma banal curiosidade: vivia-se um tempo ainda não contaminado pela ilusória aceleração informativa do presente, com o cinema a funcionar como elemento criativo da “consciência popular” da política. Ou ainda: um tempo em que as redes do tecido social não estavam confinadas aos mecanismos do virtual.
Adaptado do livro que a dupla Woodward/Bernstein escreveu sobre a sua investigação, o extraordinário argumento assinado por William Goldman confere especial importância a essa questão do tempo jornalístico. Há mesmo vários momentos do filme em que a intensidade dramática nasce de uma dúvida pacientemente formulada e reformulada por Ben Bradlee (Jason Robards), o lendário editor executivo de The Washington Post (em 2017, a sua personagem foi interpretada por Tom Hanks no filme The Post, de Steven Spielberg). Assim, para Bradlee, não se trata apenas de discutir a pertinência, isto é, a veracidade confirmada das informações que vão sendo recolhidas por Woodward e Bernstein; importa também avaliar o momento em que tais informações adquirem consistência e coerência para serem tratadas como matéria para publicação.
Nesta perspectiva, Os Homens do Presidente é um objecto de cinema cuja riqueza filosófica excede a clássica dicotomia “verdade/mentira”. Entenda-se: ninguém menospreza, como é óbvio, a procura da verdade dos factos — em última instância, seria o valor cristalino dessa verdade a provocar a resignação de Nixon. Acontece que nenhuma narrativa jornalística pode dispensar uma permanente reflexão sobre as linguagens que sustentam a sua relação com os factos. Talvez seja essa a dimensão mais contundente, porque mais perturbante, do admirável filme de Pakula: a verdade não existe, disponível, imóvel e unívoca, num altar imaculado, enraiza-se no movimento das narrativas que nos fazem ser animais sociais.

Cine-Caravana
— cinema português em movimento

Cine-Caravana — a designação faz lembrar, porventura com alguma nostalgia, o velho "cinema-ambulante"... E não é por acaso. As circunstâncias e os meios mudaram, como é óbvio, mas o espírito mantém-se. Neste caso, trata-se de projectar obras portuguesas por todo o país, em sessões gratuitas, criando uma boa alternativa para as noites de calor.
Organizada pelos CTT, com o apoio do Ministério da Cultura e do Instituto do Cinema e Audiovisual, a Cine-Caravana está a percorrer o país até ao dia 15 de setembro: 18 distritos, 27 cidades, sessões às 21h30 — uma boa ideia para o verão, um respeitável projecto cinéfilo.

>>> Calendário das sessões no site dos CTT.
>>> Artigo de Rui Pedro Tendinha sobre a Cine-Caravana [DN].

London Grammar no Arte


Valeria a pena conhecer o concerto dos London Grammar no canal Arte [série: Ground Control], nem que fosse apenas para escutar a deliciosa pronúncia do seu nome em francês... Eis 20 minutos de excelência, com Hannah Reid, Dominic "Dot" Major e Dan Rothman interpretando cinco temas da sua discografia, incluindo quatro do álbum mais recente, Californian Soil, lançado no passado mês de abril.