domingo, agosto 29, 2021

Edgar Morin
— o filósofo selvagem [1/3]

Edgar Morin

Ao completar 100 anos de vida, Edgar Morin publicou um livro sobre as “lições de um século de vida”, viajando por caminhos plurais, da investigação antropológica à recusa de uma sociedade regida por algoritmos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 agosto).

Podemos esboçar um brevíssimo inventário do último século através de algumas emblemáticas referências históricas: a morte da utopia comunista, do impulso leninista aos crimes de Estaline; a agressão nazi e a herança trágica da Segunda Guerra Mundial; a fundação de Israel e o equilíbrio nunca encontrado com o povo da Palestina; as convulsões individuais e colectivas da década de 1960, desembocando nos combates de maio de 68; a urgência de uma ecologia política, enfrentando a questão da sobrevivência do próprio planeta; o triunfo global de um aparato tecnológico capaz de alterar todas as relações humanas e, no limite, a própria definição do factor humano…
Pressentimos as infinitas ramificações de todas estas coordenadas e, em boa verdade, não temos maneira de condensar o seu labirinto numa única forma de saber ou num domínio específico de investigação. Em qualquer caso, podemos avançar com um nome que se distingue como personagem e testemunha, viva e activa, das respectivas peripécias: Edgar Morin, nascido em Paris, a 8 de julho de 1921.
Assinalando o seu 100º aniversário, Morin publicou o livro Leçons d’un Siècle de Vie (Éditions Denoël, Paris). A palavra “lições” é, por certo, elemento vital do título, quanto mais não seja porque Morin sempre foi sensível ao paradoxo de qualquer pedagogia: ensinar como forma de aprender. Mas importa sublinhar o facto de o autor não se bloquear na facilidade de um individualismo heróico: trata-se de abrir a sensibilidade e o pensamento a uma multifacetada experiência histórica, não tanto descrevendo uma vida de um século, antes percorrendo os contrastes e contradições de “um século de vida”.
Para Morin, essa multiplicidade envolve qualquer coisa de visceral: “(…) sou francês, de origem judaica sefardita, parcialmente italiano e espanhol, amplamente mediterrânico, culturalmente europeu, filho da Terra-Pátria.” O que o leva a perguntar se é possível ser-se tudo isso ao mesmo tempo, respondendo: “Não, depende das circunstâncias e dos momentos em que uma ou outra identidade pode prevalecer.”
Aliás, a sua identidade plural passa pelo nome, elemento sempre vital da nossa afirmação e das relações que podemos ou sabemos estabelecer com os outros. O autor de O Homem e a Morte (Publicações Europa-América) nasceu Edgar Nahoum, apelido do pai, Vidal Nahoum, judeu sefardita grego, originário de Salónica, a quem dedicou o livro Vidal e os Seus (Instituto Piaget). Adoptou o apelido Morin enquanto elemento da Resistência na França ocupada pelo exército hitleriano, acabando por usá-lo a partir dos primeiros artigos que escreveu no pós-guerra, embora conservando legalmente o apelido do pai — essa duplicidade onomástica sempre lhe trouxe algumas confusões burocráticas, mas é uma opção absolutamente consciente. Em recente entrevista ao Philosophie Magazine (julho/agosto), resume assim a questão: “Conservando os dois nomes, senti-me ao mesmo tempo ‘filho do meu pai’ e ‘filho das minhas obras’.