Para além da medíocre formatação de quase todos os seus "blockbusters", a Marvel parece apostada também em simplificar abusivamente a história das ideias e das imagens — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Fevereiro).
A propósito da nova produção da Marvel, Black Panther, sobre um super-herói de pele negra, muito se tem falado da evolução da figuração das personagens afro-americanas. O filme tem sido mesmo celebrado como uma viragem decisiva. No YouTube, encontro várias entrevistas da equipa do filme e registo esta afirmação de Kevin Feige, presidente dos Marvel Studios: “Havia, claramente, a expectativa de um público que nunca se tinha visto representado deste modo” (ABC News, 17 de Fevereiro). As palavras de Feige não são um detalhe. Reflectem um discurso transversal — muito forte no interior do jornalismo nos EUA — que poderá resumir-se num enunciado esquemático: havia uma representação maniqueísta dos afro-americanos, agora superada pela narrativa de Black Panther.
Encaro Black Panther como um filme tão banal como os muitos que a Marvel tem produzido com super-heróis brancos. Mas não é o facto de ser “bom” ou “mau” que está em jogo. Acontece que o discurso de Feige, aliás repercutido nas declarações de muitos actores afro-americanos, acaba por reforçar um dramático fenómeno dos nossos dias. A saber: a proliferação de “informação” (no cinema e não só) favorece um bizarro apagamento da complexidade das memórias históricas.
Não precisamos de recuar a um clássico como E Tudo o Vento Levou (1939) para recordar que a história das personagens afro-americanas não pode ser reduzida a uma qualquer visão panfletária, “pró” ou “contra”. Consagrada pela Academia de Hollywood como melhor actriz secundária, Hattie McDaniel foi mesmo, graças a E Tudo o Vento Levou, a primeira pessoa afro-americana a ser nomeada para, e a vencer, um Oscar.
Lembremos, por exemplo, o papel decisivo de um filme como Shaft (1971), de Gordon Parks, com Richard Roundtree a interpretar a figura de um detective privado, tradicionalmente entregue apenas a actores brancos. Ou ainda o valor simbólico da carreira de Sidney Poitier, sobretudo a partir de Sementes de Violência (1955), de Richard Brooks, a par da emblemática filmografia de um cineasta como Spike Lee, desde Os Bons Amantes (1986). Isto sem esquecer que com Carmen Jones, protagonizado por Dorothy Dandridge, Otto Preminger assumiu o risco pioneiro de realizar um filme com um elenco totalmente negro — foi em 1954 [trailer].
Dir-se-ia que, além de dominar o mercado, a Marvel está também apostada em reescrever a história de Hollywood e, no limite, dos afro-americanos na sociedade americana. Nem mesmo os artifícios do espectáculo podem legitimar tal irresponsabilidade.