terça-feira, dezembro 31, 2019

A socialização da futilidade

Libération
[28 Dez. 2029]
a. Por ligeireza ou cansaço, o título do Libération cede à ironia fácil que, hoje em dia, contamina todos os domínios das nossas existências públicas: "Turismo Parisiense", escreve o jornal para enquadrar esta fotografia. Como se a rua, espaço simbólico entre todos, fosse um pretexto para celebrarmos tudo o que consagra a futilidade e a sua violência (simbólica, justamente).

b. A fotografia foi obtida por Bruno Lévy no dia 28, na sequência da passagem de uma das manifestações que, em Paris, tem pontuado os conflitos sociais relacionados com as alterações das reformas previstas pelo governo de Emmanuel Macron. Dizer que as duas personagens reduzem as matérias acidentadas da rua a cenário de uma celebração pueril é dizer pouco. Na verdade, a sua dança (o verbo usado pelo jornal é esse: dançar) ilustra um medíocre não-valor que, em nome da expressão e da liberdade, reduz a vida da rua a uma socialização anedótica, supostamente lúdica.

c. Dito de outro modo: um pouco por todo o lado, com especial visibilidade nos códigos associados à "juventude", tudo é pretexto para afirmar um simulacro de diferença. Ora, a diferença nasce, ou pode nascer, de uma afirmação contundente do individual no interior do colectivo. Aqui, a diferença não passa de uma apoteose de indiferença por tudo o que nos rodeia, incluindo os destroços do nosso difícil viver — ou como dançar pode ser a bandeira de uma alegria que nada sabe da sua irremediável tristeza. 

segunda-feira, dezembro 30, 2019

10 filmes que marcaram a década [3]


[ A Rede Social ] [ A Árvore da Vida ]

ADEUS À LINGUAGEM (2014), de Jean-Luc Godard


Um dia, será corrigida a história moderna das três dimensões no cinema. Será, sobretudo, lembrado que as aventuras mais ou menos galácticas de super-heróis e afins não esgotam esse domínio. Este é um dos filmes com que Jean-Luc Godard mostrou e demonstrou que é possível usar o 3D para lá das suas preguiçosas rotinas. Não por acaso, estamos também perante um exercício moral sobre a urgência de repensarmos a comunicação humana. Nele se diz: “Procuro a pobreza na linguagem.”

Peter Wollen (1938 - 2019)

A descoberta da Nova Vaga francesa foi o motor da sua imensa e multifacetada actividade teórica: o crítico, ensaísta e cineasta inglês Peter Wollen faleceu no dia 17 de Dezembro, na cidade de Haslemere, Surrey — contava 81 anos.
O livro Signs and Meaning in the Cinema, cuja primeira edição surgiu em 1969, é o objecto central do seu sistema de pensamento: ligando a herança teórica de Sergei Eisenstein aos estudos de semiologia do cinema na mesma época desenvolvidos em França por Christian Metz (1931-1993), Wollen sempre insistiu na necessidade de pensar o cinema como linguagem específica, fundamentando-se no trabalho de autores tão diversos como Jean-Luc Godard ou cineastas da vanguarda americana (o livro foi editado em Portugal pelos Livros Horizonte, com o título Signos e Significação no Cinema).
Com Laura Mulvey, com quem foi casado, dirigiu vários filmes, incluindo o documentário Frida Kahlo & Tina Modotti (1983) e a ficção científica Friendship's Death (1987), com Tilda Swinton e Bill Paterson. De qualquer modo, a sua contribuição mais famosa aconteceu na qualidade de co-argumentista de Profissão: Repórter (1975), de Michelangelo Antonioni, com Jack Nicholson e Maria Schneider (a autoria do argumento era partilhada com Mark Peploe e o próprio Antonioni). Entre os seus derradeiros livros, incluem-se Paris/Hollywood: Writings on Film (2002) e Paris/Manhattan: Writings on Art (2004).

>>> Trailer de Profissão: Repórter [DVD].


>>> Obituário em The Hollywood Reporter.
>>> Biografia no site do BFI.
>>> Depoimento de Tilda Swinton sobre Peter Wollen [IndieWire].

A IMAGEM: Walter Chandoah, 1984

WALTER CHANDOHA
[Cats, ed. Taschen]
Gato siamês
1984

O desastre de "Cats"

Judi Dench
É bem verdade que a tradição do musical raras vezes ecoa no cinema contemporâneo. Seja como for, a adaptação de Cats, de Andrew Lloyd Webber, por Tom Hooper, apresenta-se como um caso extremo de incompreensão das regras do espectáculo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Dezembro).

Perante a estreia de Cats, de Tom Hooper, a partir do musical de Andrew Lloyd Webber, deparamos com uma velha questão: podemos esperar, ou não, uma renovação do musical cinematográfico? Teremos, ou não, filmes capazes de alimentar a nossa ânsia de reencontro com o fulgor da época (anos 40/50) em que Hollywood produziu títulos admiráveis como Serenata à Chuva ou A Roda da Fortuna?
Enfim, o mais rudimentar bom senso recorda-nos que não se trata de uma mera questão de “vontade”. Na verdade, há muitos anos — talvez desde essa fronteira simbólica que é West Side Story (1961) —, os estúdios americanos abandonaram a produção regular de musicais. Nessa medida, pode dizer-se que há um “know-how” técnico e artístico que a indústria secundarizou ou, pura e simplesmente, abandonou. Que Steven Spielberg esteja a trabalhar numa nova versão de West Side Story, a estrear em finais de 2020, eis um curioso sobressalto a ter em conta...
Cats é o desastroso resultado de um sistema que, de facto, deixou de pensar a especificidade do musical. Que faz, então, Tom Hooper? Pois bem, em primeiro lugar, inventa uns gatos meio humanos, meio digitais que quase nunca adquirem verosimilhança dramática. Na melhor das hipóteses, são caricaturas de felinos que talvez pudessem ter lugar num banal, mais ou menos paródico, filme de terror. Depois, menosprezando as potencialidades de cenografia e coreografia, filma tudo com muitas câmaras, promovendo uma montagem de imagens fragmentárias e aceleradas que, na prática, já nem nos permitem contemplar o que quer que seja — já não há, ao menos, gosto de olhar e descobrir.
As excepções confirmam a regra. Chamam-se Judi Dench e Ian McKellen, nos papéis de Deuteronomy e Gus, respectivamente. Com eles, apesar de tudo, durante breves minutos, podemos sentir que o trabalho do actor não se dilui na preguiçosa acumulação de efeitos visuais, preservando a arte de dizer as palavras, controlar os gestos e saber dirigir o olhar.
Andre Lloyd Webber
De resto, fica-se com a sensação de que a acumulação de “vedetas convidadas”, nomeadamente a cantora Taylor Swift e o apresentador televisivo James Corden, já nem sequer obedece a qualquer critério de encenação — trata-se apenas de compensar (?) o vazio de ideias com a agitação de alguns nomes sonantes. A participação de Taylor Swift, interpretando Beautiful Ghosts (canção original, ausente das versões de palco), mais parece uma variação tosca do novo-riquismo de muitos dos seus telediscos.
Estreado em 1981, no West End, em Londres, o original de Andrew Lloyd Webber é historicamente reconhecido como modelo fundador do moderno musical. E não será, por certo, apenas porque nele encontramos uma canção tão famosa como Memory (depois popularizada, sobretudo, pela versão de Barbra Streisand). Inspirado numa maravilhosa antologia poética de T. S. Eliot (O Livro dos Gatos Práticos do Velho Gambá, ed. Assírio & Alvim), Cats envolve um delicado e irónico projecto filosófico: a saga dos gatos confunde-se, afinal, com uma aventura universal de descoberta e preservação da identidade.
T. S. Eliot
Da sabedoria das palavras de Eliot e da energia da música de Lloyd Webber quase nada resta. Tudo se resume a um trabalho “ilustrativo” que parece acreditar que o envolvimento do espectador resulta necessariamente da ostentação tecnológica e da “velocidade” das imagens...
Entretanto, face ao mau desempenho de Cats nas salas dos EUA (6,6 milhões de dólares no fim de semana de estreia em mais de três mil ecrãs é uma catástrofe), o estúdio produtor, Universal Pictures, informou os exibidores que vai substituir as cópias enviadas por outras cópias “com alguns efeitos visuais melhorados”. Eis um sintoma esclarecedor: no interior da actual produção americana, há decisores que confundem a fabricação (e o prazer) do espectáculo com os seus instrumentos técnicos.

domingo, dezembro 29, 2019

10 filmes que marcaram a década [2]


[ A Rede Social ]

A ÁRVORE DA VIDA (2011), de Terrence Malick


Não é por acaso que o nome e a obra de Terrence Malick têm estado no centro de alguns dos debates mais interessantes sobre o presente e o futuro do cinema. Com este filme, em particular, o veterano cineasta americano consegue relançar o tema do sagrado no interior da paisagem humana, ao mesmo tempo pressentindo a necessidade de um cinema capaz de reinventar as suas linguagens clássicas, sem renegar as respectivas memórias.

Em defesa do ambiente (e das árvores)

No Reino Unido, a construção da auto-estrada HS2 (High Speed 2), ligando as cidades de Londres, Birmingham, Manchester e Leeds, tem suscitado fortes discussões sobre a preservação do ambiente, em particular das árvores ameaçadas pelo empreendimento. Este é um clip da campanha Stand for the trees, concebido pelo Greenpeace — a locução é de Emma Thompson, com Annie Lennox a interpretar a sua canção Why (tema do álbum Diva, 1992).

Sue Lyon (1946 - 2019)

LOLITA (1962)
Foi a Lolita de Stanley Kubrick: a actriz americana Sue Lyon faleceu no dia 26 de Dezembro, em Los Angeles — contava 73 anos.
A entrada de Sue Lyon na mitologia do cinema deu-se através de um dos títulos mais controversos da produção americana do começo da década de 60: Lolita (1962), a adaptação do romance de Vladimir Nabokov publicado em 1955, centrado na fixação obsessiva de um professor de literatura numa jovem de 12 anos. O célebre cartaz do filme explicitava a perturbante singularidade do filme, enunciando uma sintomática interrogação: "Como se atreveram a fazer um filme a partir de Lolita?". 


Para satisfazer as regras de produção dos estúdios de Holyywood, Kubrick mudou a idade da personagem para 15 anos — Sue Lyon tinha 14 quando foi escolhida entre cerca de oito centenas de candidatas. O filme valeu-lhe fama imediata e também um Globo de Ouro de revelação do ano, mas esteve longe de gerar uma carreira muito sólida. Surgiu, logo a seguir, em dois títulos marcantes: A Noite de Iguana (1964), adaptação da peça de Tennessee Williams realizada por John Huston, e Sete Mulheres (1966), saga no feminino que encerraria a obra de John Ford. Sempre em papéis secundários, vimo-la, por exemplo, em Tony Rome Investiga (1967) ou Evel Knievel (1971), de Marvin Chomsky. A dificuldade de obter personagens interessantes, tanto em cinema como em televisão, levou-a a desistir da representação — A Fera (1980), de Lewis Teague, uma história de ficção científica cruzada com as regras do terror, ficaria como o derradeiro título da sua filmografia.

>>> Reportagem da estreia de Lolita em Nova Iorque (13 Junho 1962).


>>> Obituário em The Hollywood Reporter.

sábado, dezembro 28, 2019

10 filmes que marcaram a década [1]

Não se trata de propor uma lista dos “melhores” filmes da década, mesmo se todos eles são invulgares proezas cinematográficas. Procura-se, sobretudo, evocar alguns dos filmes que nos levaram a pensar como vivemos, como olhamos o mundo à nossa volta — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Dezembro).

Para a história, a década cinematográfica de 2010-2019 ficará como a da consolidação da Internet como novo veículo de conhecimento e consumo dos produtos audiovisuais. O triunfo comercial das chamadas plataformas de streaming (Netflix, HBO, Amazon, etc.) trouxe mesmo uma convulsão simbólica na paisagem da cinefilia: o espectador empenhado em conhecer a história do cinema deu lugar ao consumidor que se diferencia por “só ver séries”... Escolher dez títulos marcantes dos últimos dez anos de cinema envolve, por isso, qualquer coisa de requiem. E fica uma pergunta: a próxima década será de desagregação ou renascimento do mercado tradicional das salas escuras?

* * * * *

A REDE SOCIAL (2010), de David Fincher


Desde o momento em que o conceito do Facebook começou a insinuar-se na vida humana, houve quem lembrasse a questão essencial. A saber: em vez de celebrar a “rede”, importa discutir o seu funcionamento “social”. O filme de David Fincher, escrito por Aaron Sorkin, é um objecto pioneiro desse processo crítico — para além do seu génio artístico, os sobressaltos que se seguiram (Cambridge Analytica, etc.) confirmaram a desencantada pertinência da sua visão.

Nirvana x 1.000.000.000

Saborosa ditadura da estatística: o teledisco de Smells Like Teen Spirit, dos Nirvana, superou no YouTube os mil milhões de visualizações [Stephen Thompson, NPR].
De facto, os números não falam por si. Citemos apenas um exemplo esclarecedor: Shape of You, de Ed Sheeran, consegue um valor que multiplica esse número por 4,5 vezes (exacto: mais de 4,5 mil milhões de visualizações) e, salvo melhor opinião, não creio que, apesar da inteligência caótica do planeta, haja algures algum heróico cidadão capaz de proclamar, com convicção, que se pode estabelecer qualquer paralelismo, seja de que natureza for, entre uma e outra canção...
Fiquemo-nos pela noção vaga, mas suavemente reconfortante, de que há uma tribo virtual gerada pela composição de Kurt Cobain, Krist Novoselic e Dave Grohl, produzida por Butch Vig. Tema de abertura do segundo álbum dos Nirvana, Nevermind (1991), Smells Like Teen Spirit incrustou-se no imaginário musical das últimas décadas como bandeira relutante do grunge — I feel stupid and contagious... —, proeza obviamente indissociável do teledisco assinado por Samuel Bayer. Em boa verdade, participamos dessa cumplicidade tribal através de uma vertigem de negação que a própria canção consagra no final, silenciando-se através do grito derradeiro de Cobain.


Load up on guns, bring your friends
It's fun to lose and to pretend
She's over-bored and self-assured
Oh no, I know a dirty word

Hello, hello, hello, how low
Hello, hello, hello, how low
Hello, hello, hello, how low
Hello, hello, hello

With the lights out, it's less dangerous
Here we are now, entertain us
I feel stupid and contagious
Here we are now, entertain us
A mulatto, an albino, a mosquito, my libido
Yeah, hey

I'm worse at what I do best
And for this gift I feel blessed
Our little group has always been
And always will until the end

Hello, hello, hello, how low
[...]

With the lights out, it's less dangerous
[...]

And I forget just why I taste
Oh yeah, I guess it makes me smile
I found it hard, it's hard to find
Oh well, whatever, never mind

Hello, hello, hello, how low
[...]

With the lights out, it's less dangerous
Here we are now, entertain us
I feel stupid and contagious
Here we are now, entertain us
A mulatto, an albino, a mosquito, my libido
A denial, a denial, a denial, a denial, a denial
A denial, a denial, a denial, a denial

Art Sullivan (1950 - 2019)

Cantor de sucesso sobretudo ao longo da década de 1970, o belga Art Sullivan faleceu no dia 27 de Dezembro, vítima de cancro no pâncreas — contava 69 anos.
Nascido numa família aristocrata, de seu nome verdadeiro Marc Liénart van Lidth de Jeude, Art Sullivan foi símbolo de uma pop esquemática e ligeira, uma espécie de contraste conservador com as convulsões do punk. Através de canções como Petite Demoiselle, Ensemble ou Petite fille aux yeux bleus, vendeu cerca de dez milhões de discos, obtendo enorme popularidade em países tão diversos como Alemanha, Brasil ou Portugal — um dos seus derradeiros concertos foi nas Caldas da Rainha, no passado mês de Agosto. Em 2014, publicou a autobiografia Drôle de Vie en Chansons.

>>> Petite Demoiselle (1976).


>>> Obituário no jornal Le Soir (Bruxelas).

sexta-feira, dezembro 27, 2019

Jerry Herman (1931 - 2019)

Figura lendária do teatro musical, assinou, entre muitos outros temas, Hello, Dolly!: o americano Jerry Herman faleceu no dia 26 de Dezembro, em Miami — contava 88 anos.
Começou a compor muito jovem, ainda estudante, reflectindo uma formação multifacetada em que as matrizes clássicas se cruzavam com as dinâmicas do jazz. Primeiro nos circuitos marginais, depois na Broadway, teve uma carreira de crescente prestígio, alicerçada em musicais tão famosos como Milk and Honey (1961), Hello, Dolly! (1964), Mame (1966) e A Gaiola das Malucas (1983), vários deles adaptados ao cinema. O mais famoso é, obviamente, Hello, Dolly! (1969), dirigido por Gene Kelly, com Barbra Streisand a interpretar a canção-tema num célebre dueto com Louis Armstrong — entre as suas distinções inclui-se, precisamente, o Grammy de melhor canção para Hello, Dolly!. Recebeu prémios honorários dos Tony e do Kennedy Center, em 2009 e 2010, respectivamente.

>>> Barbra Streisand e Louis Armstrong em Hello, Dolly!.


>>> Obituário na revista Playbill.

Carreira [citação]

>>> As coisas que fazem com que sejamos despedidos quando somos jovens são as mesmas coisas que nos valem prémios de carreira quando somos velhos.

FRANCIS FORD COPPOLA
2015 — 92nd Street Y

THX 1138 + A Guerra das Estrelas + Star Wars

Robert Duvall em THX 1138
A estreia do episódio final da saga Star Wars é um bom pretexto para revisitarmos THX 1138, a primeira longa-metragem de George Lucas: em regime de produção independente, ele começou também pela ficção científica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Dezembro).

É para mim um mistério a alegria mediática com que, face a cada novo filme da saga Star Wars, as acções dos respectivos fãs adquirem tão especial peso público. É verdade que não sinto qualquer entusiasmo pelo episódio IX, A Ascensão de Skywalker, agora lançado nas salas de todo o planeta. Mas não é esse o motivo da minha perplexidade, quanto mais não seja porque há décadas, com argumentações certamente discutíveis, me mantenho fiel a uma linha básica de pensamento crítico: a acção desse pensamento não é normativa, quer dizer, não procura qualquer confirmação ou gratificação nos pontos de vista de outros.
O que está em causa é a própria globalização do fenómeno. Assim, por exemplo, no mesmo dia em que o planeta se agitava com a estreia de A Ascensão de Skywalker, chegou às salas portuguesas a versão final (“final cut”) de Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola, um dos títulos mais lendários de toda a história do cinema, além do mais em cópia primorosamente restaurada… Mas não houve espectáculo de fãs… Para quê, aliás?
Se o leitor teve a bondade de me acompanhar até aqui, peço que compreenda que nada disto pretende suscitar a aplicação dessa frase feita — “de quem é a culpa?” — que, hoje em dia, tende a enquadrar quase todos os debates, sejam eles sobre as complexidades das políticas sociais ou os golos sofridos pela instável defesa do Sporting… Não se trata de procurar “culpados”, mas de tentar perceber o que ganhamos e, sobretudo, perdemos com a visão clubista dos objectos cinematográficos.
No nosso país, Star Wars já se chamou A Guerra das Estrelas (título com que, em 1977, foi lançado o primeiro filme da saga). Era um tempo em que a violência normativa do marketing global ainda não tinha o poder de obliterar as singularidades da língua de um país. Mas era também um tempo em que, apesar de tudo, a pluralidade interior do cinema era objecto de conhecimento da maioria dos espectadores. Isso tinha um nome: cinefilia. Agora, dir-se-ia que ser fã de um filme, ou conjunto de filmes, implica a ignorância festiva dessa pluralidade. Não é uma questão que tenha a ver com a inteligência das pessoas — a sua agressiva formatação começa nos valores dominantes do mercado.
Seria interessante lembrar que a resistência às transformações introduzidas na saga pelos estúdios Disney, actuais proprietários da Lucasfilm (produtora de Star Wars), começaram no seu criador: George Lucas. O que, entenda-se, não exclui o reconhecimento de alguma fraqueza das razões de Lucas, já que as limitações dramáticas e dramatúrgicas de A Ascensão de Skywalker não podem ser separadas de um sistema de narrativa e produção que ele próprio colocou em movimento.
Ainda assim, é desconcertante que, com o passar das décadas, o triunfo económico e simbólico da “franchise” Star Wars não tenha gerado qualquer movimento de redescoberta de THX 1138 (1971), a primeira longa-metragem de Lucas produzida em regime rigorosamente independente. Porquê? Desde logo, porque se trata de um exemplar exercício narrativo, filiado na mais nobre tradição da ficção científica (literária, antes do mais), figurando um futuro distópico em que a “normalização” das relações humanas acontece através da proibição de tudo o que possa ser carnal, das emoções ao sexo.
Na sociedade hiper-vigiada de THX 1138, cada humano deixou de ter nome, sendo designado por um código imposto pelo estado: THX 1138 é a personagem de Robert Duvall, precisamente um trabalhador de uma fábrica de polícias-andróides. São esses “bonecos” que vigiam todas as actividades quotidianas, obedecendo apenas (e este “apenas” é terrível) a uma interpretação literal de um sistema fechado de leis. É certo que a acção do filme tem lugar no século XXV, mas a inquietação da frase promocional do seu cartaz persiste: “O futuro está aqui”.

quinta-feira, dezembro 26, 2019

O eco de Ambrose Akinmusire

Aconteceu no Jazzfest Berlin de 2019. Sob o lema "wait for the echo", o certame apresentou diversas experiências colectivas, favorecendo encontros e cruzamentos de referências. O trompetista americano Ambrose Akinmusire foi uma das personalidades em destaque, revisitando o seu álbum Origami Harvest (2018), especialmente revelador do seu gosto pela criação de um espaço expressivo que nasce da contaminação do jazz pelas narrativas do hip-hop. Surpreendentemente ou não, a performance de palco transfigura as sonoridades do álbum num fascinante evento a que, à falta de melhor, chamaremos sinfónico — o canal Arte oferece-nos o registo.

quarta-feira, dezembro 25, 2019

A bênção da vida [citação]

>>> No seu conjunto, a bênção da vida inerente ao labor não pode nunca ser encontrada no trabalho e não deve ser confundida com o inevitavelmente breve intervalo de alegria que se segue à realização e que está presente na concretização. A bênção do labor incide no facto de o esforço e a gratificação se sucederem tão estreitamente como a produção e o consumo, no que resulta que a felicidade é concomitante em relação ao próprio processo. Não existe felicidade e satisfação duradoura para os seres humanos fora do ciclo prescrito de exaustão penosa e aprazível regeneração. O que quer que desequilibre este ciclo — na miséria, em que a exaustão é seguida de infortúnio ou, por outro lado, numa vida inteiramente passiva, em que o tédio assume o lugar da exaustão e em que os moinhos da necessidade, do consumo e da digestão moem sem piedade um corpo humano impotente até à morte — arruina a felicidade elementar que advém do facto de estarmos vivos. Em todas as atividades humanas está presente um elemento de labor, mesmo nas mais elevadas, na medida em que são desempenhadas como trabalhos "rotineiros" através dos quais ganhamos a vida e nos mantemos vivos. O seu caráter repetitivo, que as mais das vezes sentimos como fardo que nos extenua, é o que fornece aquele mínimo de contentamento animal pelo qual os grandes e profundos intervalos de alegria, que são raros e nunca perduram, não podem ser substituídos, e sem os quais os mais duradouros mas igualmente raros intervalos de verdadeira dor e tristeza dificilmente seriam suportáveis.

HANNAH ARENDT
tradução: João Moita
ed. Relógio D'Água, 2019

terça-feira, dezembro 24, 2019

"Viver em conjunto" [cartoon]

MICHEL KICHKA [Cartoons pela paz]
"Viver em conjunto" *
2016
_____

* "Eu, o meu papá é preto e a minha mamã branca." / "Eu é o contrário."

"White Christmas" por David Fonseca

White Christmas/Natal Branco (1954), de Michael Curtiz, com Bing Crosby, Danny Kaye e Rosemary Clooney — eis uma referência natalícia da cinefilia, obviamente indissociável da canção composta por Irving Berlin. Bing Crosby, precisamente, é o nome lendário associado à canção, uma vez que a estreou em 1941, no seu programa de rádio na NBC. Entre as muitas versões que suscitou, incluem-se as de Perry Como, Frank Sinatra e Elvis Presley.
Agora, David Fonseca propõe-nos uma deliciosa revisitação de White Christmas, conjugando bicicleta, ponte sobre o Tejo e uma elegante encenação em continuidade — à sua maneira, um belo plano de cinema.

segunda-feira, dezembro 23, 2019

Animais & jornalismo

Das monstruosidades genéticas ao gato de Downing Street, a edição de Natal do Libération [24-25 Dez.] é dedicada ao mundo plural dos animais — jornalismo humano, demasiado humano, a não perder.

domingo, dezembro 22, 2019

A política como drama e melodrama

Fabriche Luchini e Anaïs Demoustier
Escrito e realizado por Nicolas Pariser, Alice e o Presidente é um delicioso exercício cinematográfico sobre os bastidores da política, com excelentes interpretações de Fabriche Luchini e Anaïs Demoustier — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Novembro).

É relativamente fácil resumir o que acontece no filme Alice e o Presidente, escrito e realizado port Nicolas Pariser. Assim, tudo se passa em torno do presidente da Câmara da cidade de Lyon que atravessa uma crise de identidade ou, como ele diz, experimenta uma perturbante incapacidade de pensar… A pouco e pouco, a figura de Alice, uma funcionária da Câmara, vai ganhando peso no seu trabalho e, em última instância, nas suas decisões políticas.
Enfim, como sempre, qualquer sinopse é insuficiente para explicar o que está em jogo. E neste caso tanto mais quanto o trabalho de Pariser arrisca um equilíbrio instável entre a ameaça do drama e a sugestão do melodrama, sem deixar de desmontar com contundência, mas também com insólito carinho, os bastidores de uma política nem sempre de consciência muito leve.
Servido por magníficas interpretações de Fabrice Luchini e Anaïs Demoustier, Alice e o Presidente é uma surpresa tanto mais deliciosa quanto os seus diálogos retomam uma tradição eminentemente francesa que talvez possamos remeter para Sacha Guitry, pela crueza da sua ironia, mas sobretudo para a obra de Eric Rohmer (O Joelho de Claire, A Minha Noite em Casa de Maud, etc.). Também aqui, o essencial da acção está naquilo que é dito: a palavra, mais do que um instrumento de comunicação, funciona como matéria de definição (ou desagregação) das identidades.
Numa época em que o mercado está dominado pelos filmes (bem ou mal) associados à quadra festiva, Alice e o Presidente aí está como um pequeno ovni que merece ser descoberto. Podemos reconhecer, afinal, que há uma tradição francesa que não se perdeu e que, para além da subtileza da sua escrita, não desiste de contemplar as convulsões do seu/nosso presente.

sábado, dezembro 21, 2019

Lana Del Rey x 3

Lana Del Rey volta a contar com a colaboração de Chuck Grant, sua irmã, para acrescentar mais um capítulo à sua magnífica galeria de telediscos. No plural, entenda-se. Isto porque o video de Norman Fucking Rockwell, canção-título do seu sexto registo de estúdio, contém mais duas canções do mesmo álbum: Bartender e Happiness Is a Butterfly. Tudo devidamente encenado em deliciosas imagens retro, com a nostalgia da película Super 8 a integrar alguns efeitos especiais tão discretos quanto irónicos.

"Star Wars"
ou Hollywood já não é o que era

Com a estreia do episódio nº 9 de Star Wars, está encerrada a saga inter-galáctica concebida por George Lucas há mais de quatro décadas. Mas já não é o seu nome que identifica o fenómeno: agora, a galáxia muito, muito distante pertence aos estúdios Disney — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Dezembro).

Nestes tempos em que tudo pode ser objecto de mercantilização, talvez seja adequado cedermos à linguagem dos tecnocratas, resumindo a história de Star Wars num número: 4,05. Não será muito impressionante, convenhamos. Mas devemos ser mais explícitos: 4,05 mil milhões de dólares, qualquer coisa como 3,6 mil milhões de euros (quase sete vezes a despesa prevista para a Cultura, em Portugal, no Orçamento de Estado para 2020). Foi esse o valor que, em 2012, os estúdios Disney pagaram para adquirir a Lucasfilm, precisamente a empresa através da qual George Lucas geriu as suas histórias de uma galáxia muito, muito distante.
A Ascensão de Skywalker é, assim, o terceiro título da saga concebido, produzido e distribuído pela marca Disney, depois de O Despertar da Força e Os Últimos Jedi, respectivamente em 2015 e 2017. Uma hipótese clássica, simplista e sedutora levar-nos-ia a especular sobre o modo como o estúdio do Rato Mickey e do Pato Donald “respeitou” ou “atraiçoou” o legado de Lucas. Na verdade, podemos poupar nas especulações. No seu livro de memórias, The Ride of a Lifetime (publicado em setembro deste ano), Bob Iger, CEO da Walt Disney Company, fornece um quadro objectivo do que aconteceu.
Assim, ao vender o seu estúdio de produção, Lucas achou por bem fornecer aos executivos da Disney um projecto com as linhas gerais de argumento que ele considerava interessantes para a derradeira trilogia de Star Wars, agora encerrada com A Ascensão de Skywalker. Com o apoio de Alan Horn, director criativo da companhia, Iger analisou o projecto, tendo ambos considerado que era lógico que o comprassem a Lucas. “Claro que estávamos abertos às ideias de George Lucas.” Sem deixar de sublinhar: “(…) no acordo de compra deixámos claro que não estaríamos contratualmente obrigados a aderir às linhas de argumento que ele definira.”
Há outra maneira de dizer isto. E não apenas porque, seja qual for a avaliação que cada espectador possa fazer destes títulos mais recentes, Star Wars já não existe, de facto, com um “produto da imaginação de George Lucas”. Acontece que este exílio multimilionário de Lucas encerra também um perverso conto moral sobre o fim da noção de independência criativa que ele tão exemplarmente simbolizou.
As galáxias podem ser as mesmas, mas tudo acontece agora numa outra paisagem de produção em que se esbateu o protagonismo dos autores que entraram na história com o rótulo carinhoso de “Movie Brats” (qualquer coisa como “a miudagem dos filmes”). Observe-se a sua contraditória actualidade. Francis Ford Coppola conseguiu, este ano, completar a montagem final (“final cut”) da sua obra-prima de 1979, Apocalypse Now — por irónica coincidência, o filme chega também esta semana às salas portuguesas e, apesar da sua irredutível importância histórica e estética, constitui um heróico acontecimento minoritário, claramente exterior às estratégias dominantes no mercado... Por sua vez, Martin Scorsese realizou o prodigioso O Irlandês com o dinheiro, e também a liberdade criativa, que a Netflix lhe concedeu, mas a plataforma de streaming persiste numa estratégia de confronto com as empresas tradicionais de distribuição/exibição, a ponto de em vários países (incluindo Portugal) o filme não passar nas salas escuras.
Hollywood, de facto, já não é o que era. O protagonismo do realizador J. J. Abrams na fase Disney de Star Wars é revelador — foi ele que dirigiu O Despertar da Força, reassumindo as mesmas funções em A Ascensão de Skywalker. Lucas era um experimentador, um “criador de ilusões” à maneira tradicional de George Méliès (1861-1938), o ilusionista francês que foi pioneiro cinematográfico. Não por acaso, o sucesso comercial do seu Star Wars — entre nós ainda estreado como A Guerra das Estrelas — levou-o a desenvolver um império de produção que integra alguns dos estúdios mais sofisticados dos EUA no domínio do som (Skywalker Sound) e dos efeitos visuais (Industrial Light & Magic).
Abrams será um novo “movie brat”, mas agora de uma geração mais marcada pela vertigem visual dos videojogos (vejam-se os dois títulos de outra saga, Star Trek, por ele realizados em 2009 e 2013) do que pelos valores clássicas das narrativas “hollywoodianas”. Para ele, a tecnologia não é uma área de pesquisa, antes uma colecção de instrumentos que lhe permite criar variações mais ou menos exuberantes de modelos cujas regras reconhece, mas que, na prática, já não integram o seu imaginário. Por alguma razão, Lucas e Abrams discordaram sobre os resultados de O Despertar da Força. Mais uma vez, foi o livro de Iger que tornou pública essa discussão: Lucas considerando que o filme não trazia “nada de novo”, Abrams reiterando a sua admiração por Lucas e dizendo compreender que “deve ser complicado" ter vendido “o seu bebé”...
Em qualquer caso, a saga fica, agora, completa. Na primeira trilogia rodada, Lucas apenas dirigiu o título inicial, entregando a realização de O Império Contra-Ataca (1980) e O Regresso de Jedi (1983) a Irving Kershner e Richard Marquand, respectivamente. Regressou para realizar A Ameaça Fantasma (1999), O Ataque dos Clones (2002) e A Vingança dos Sith (2005). Agora, os dois filmes de Abrams tiveram pelo meio Os Últimos Jedi, de Rian Johnson.
Fica uma indefinição que, como é óbvio, os estúdios Disney têm sabido instalar (entenda-se: rentabilizar) no imaginário comercial da saga. Assim, é verdade que os nove episódios “canónicos”, previstos e programados por Lucas nos tempos heróicos da década de 1970, estão concluídos. Mas não é menos verdade que as derivações, cinematográficas ou televisivas, andam por aí — recordemos apenas os exemplos de Rogue One (2016) e Solo (2018), ambos explorando “outras vidas” de algumas personagens da saga.
Se quisermos ser nostálgicos, diremos que há em tudo isto um retorno do primitivo conceito de “serials”, especialmente importante na evolução cinematográfica das décadas de 1930-40, depois da consolidação do som. Talvez que a “produção em série” de universos como Star Wars seja uma espécie de derivação pós-moderna, intelectual e digital, desses modelos de produção que, em qualquer caso, existiam através de um mercado bem diferente do actual, porque totalmente centrado e concentrado nas salas escuras.
Se gostamos de cultivar o paradoxo artístico, seremos inevitavelmente levados a lembrar que George Lucas se estreou na longa-metragem há quase meio século, em 1971, com THX 1138 (a meu ver, o seu melhor filme). Explorando vectores clássicos da ficção científica — tudo acontecia no século XXV, numa sociedade que proibira as relações sexuais, estando o policiamento a cargo de andróides —, o filme inscreveu-se na história da produção americana como um caso modelar do espírito independente da época, a par de Mean Streets (1973), de Martin Scorsese, ou O Fantasma do Paraíso (1974), de Brian De Palma.
Se nos ficarmos pela prudência do cepticismo, poderemos perguntar até que ponto — ou de que modo — tudo aquilo que tem acontecido nas últimas três décadas, incluindo o crescente e devastador poder normativo dos filmes de super-heróis da Marvel, corresponde já a um conceito de mercado cada vez mais distante dos valores clássicos da cinefilia e, sobretudo, mais movido pelas lógicas económicas do “streaming” (filmes, séries, etc.). Com ironia ou angústia (o leitor faça a sua escolha), não podemos deixar de lembrar que, em 2009, a Marvel Entertainment foi comprada pelos... estúdios Disney. O preço: 4 mil milhões de dólares.

sexta-feira, dezembro 20, 2019

A IMAGEM: Henri Cartier-Bresson, 1954

HENRI CARTIER-BRESSON
Escola do Ballet Bolshoi
Moscovo, 1954

Anna Karina viveu a sua vida

Vivre sa Vie (1962)
Com a morte de Anna Karina, redescobrimos, em particular, a herança artística do seu trabalho nos filmes realizados por Jean-Luc Godard: Viver a sua Vida pode servir de mote para as nossas memórias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Novembro).

Em Viver a sua Vida (1962), um dos filmes em que foi dirigida por Jean-Luc Godard, então seu marido, Anna Karina interpreta Nana, uma prostituta de Paris. Trata-se de um dos momentos em que Godard integra o tema da prostituição nas suas narrativas, directa ou indirectamente expondo a mercantilização do corpo e o esvaziamento da alma como componentes viscerais do “progresso” nas sociedades modernas. Ao tema regressaria, por exemplo, em duas produções de 1967, Duas ou Três Coisa sobre Ela e Antecipação (episódio da longa-metragem A Mais Antiga Profissão do Mundo, também com Karina), ou Salve-se quem Puder (1980).
Seja como for, convém lembrar que não há em Viver a sua Vida nada que se possa confundir com a sociologia de bolso que, hoje em dia, muitas vezes, vai pontuando as mais banais narrativas (cinematográficas e televisivas) que se escudam na “gravidade” dos respectivos temas. Ao filmar Karina como Nana, Godard constrói uma das mais belas confissões de amor que a história do cinema regista — em última instância, Viver a sua Vida é uma crónica intimista sobre o olhar do cineasta face a uma mulher.
Momento sublime desse intimismo é a cena em que uma personagem masculina lê para Nana O Retrato Oval, de Edgar Allan Poe, publicado em 1842. O brevíssimo conto de Poe condensa o misto de ternura e crueldade que pode marcar a relação de um artista com o seu modelo. Dito de forma esquemática, nele se narra a tragédia de um pintor que, obcecado pela sua arte, vai pintando o retrato da sua mulher cujo estado de saúde é cada vez mais frágil; ao concluir, siderado pela intensidade do seu labor, proclama que aquele retrato “é a própria vida” — nesse momento, descobre que, enquanto posava, a sua mulher morreu.
Rezam as crónicas que o casamento de Karina e Godard (desfeito em 1967) foi atribulado e terminou de forma triste. Enfim, por uma vez, face à nitidez da morte e, sobretudo, celebrando a exuberância da vida, podemos dispensar a crónica cor de rosa. E lembrar que o seu trabalho conjunto define um capítulo à parte, não apenas na filmografia godardiana, mas em toda a paisagem da Nova Vaga francesa.
Em boa verdade, mesmo tendo em conta que a sua filmografia se prolongou por mais algumas décadas, uma actriz como Karina pertence a um imaginário cinematográfico que, muitas vezes, os espectadores mais jovens não conhecem nem reconhecem. No limite, o actor/actriz vivia perante a câmara de filmar, não o confessionalismo patético dos “famosos”, mas sim esse despojamento do ser (e do estar) que torna o cinema uma experiência única e irredutível.
Vale a pena recordar que o nome de Anna Karina ocupa também um lugar muito especial na história da exibição cinematográfica em Portugal, através de um dos títulos mais belos (e também mais polémicos) da Nova Vaga: A Religiosa (1966), de Jacques Rivette, adaptando a obra de Denis Diderot. Estreado em Portugal no pós-25 de Abril (em 1975), seria um dos maiores sucessos de exibição do cinema Quarteto, programado por Pedro Bandeira Freire. À distância de mais de quatro décadas, já não há Quarteto e a cinefilia tornou-se uma resistência minoritária. Tal memória poderá parecer uma banal especulação de ficção científica. Mas não, é apenas um dado jornalisticamente objectivo.

quarta-feira, dezembro 18, 2019

Billie Eilish, aqui e agora

De Greta Thunberg a Billie Eilish, o espaço mediático está cheio de figuras que, de uma maneira ou de outra, encenam a juventude dos nossos dias. Como lidar com tudo isso sem promover os clichés juvenis? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Dezembro).

A sagração mediática de Greta Thunberg relançou no nosso quotidiano um insidioso cliché geracional. Ou de cruzamento de gerações. A saber: devemos reaprender com os jovens a candura das verdades mais básicas que nós, adultos e cínicos, costumamos evitar.
Este é um tempo em que, de facto, em nome da juventude, se perpetram as maiores grosserias comunicacionais. Observe-se a cruel decomposição das linguagens da MTV: o canal da música que desempenhou um papel revolucionário na década de 80 especializou-se em encenar os mais jovens como patéticas personagens de universos contaminados pelas leis da “reality TV”.
O caso de Thunberg é tanto mais revelador quanto a sua importante cruzada em defesa do planeta nos leva a reconhecer o paradoxo da sua performance pública. Por um lado, ela tem servido de porta-voz das mais sérias inquietações sobre o aquecimento global, a ponto de ser visada por um lamentável tweet de Donald Trump (aconselhando-a a obter tratamento para a “raiva” das suas intervenções); por outro lado, a sua omnipresença no espaço público favorece essa adoração beata dos mais jovens como anjos salvadores de coisa nenhuma.
Nada disto, entenda-se, envolve qualquer reticência perante a criatividade, a inteligência e até a qualidade da intervenção política que pode emanar dos mais jovens. Lembremos apenas o exemplo de Emma González, uma das sobreviventes da tragédia do Stoneman Douglas High School (Parkland, Califórnia), em que um atirador matou 17 estudantes. O seu discurso de 17 de fevereiro de 2018 (três dias depois do massacre) ficou como gesto modelar de consciência cívica e política, tendo sido, aliás, citado por Madonna na sua canção I Rise, do álbum Madame X. Sintoma esclarecedor: a canção foi quase ignorada, suplantada pela magna questão do número de lugares de estacionamento concedidos pela autarquia lisboeta a Madonna…
Entenda-se também: nada disto pretende favorecer qualquer visão (ainda mais) generalista do estado de coisas da juventude. Importa estarmos atentos à pluralidade dos acontecimentos, tendências ou modas, sem esquecer que é sempre possível agir e pensar um pouco ao lado da preguiça do óbvio.
Cito, a propósito, o fenómeno, a meu ver fascinante, da americana Billie Eilish, 17 anos (completará 18 a 18 de dezembro). Creio que o seu álbum de estreia, When We Fall Asleep, Where Do We Go?, lançado em março deste ano, bastaria para lhe conferir um lugar de destaque nas mais recentes convulsões e experimentações da música pop. Acontece que Eilish é também uma verdadeira artista das imagens. E não pelo facto de mudar de visual com festiva agilidade (em tempos recentes, teve uma fase de unhas e cabelos pintados de verde). Em particular através dos telediscos das suas canções, ela tem sabido encenar um misto de celebração e angústia que envolve uma pergunta singela: como ser adolescente e procurar a identidade adulta?
O novíssimo teledisco de Eilish, para a canção Xanny, parece-me uma admirável derivação criativa a partir de tal pergunta (apesar de tudo, até pode ser visto na MTV…). A canção resiste à profilaxia social do Xanax (“xanny”), proclamando que “não preciso de um xanny para me sentir melhor”. Eilish surge sentada num banco, comentando o facto de estar sujeita ao fumo passivo (“second hand smoke”), ao mesmo tempo que diversas mãos entram em campo, apagando cigarros no seu próprio rosto.
É uma representação de perturbante intensidade cuja chave não está no aparente masoquismo das imagens (afinal, os efeitos especiais não servem apenas para por a voar os super-heróis da Marvel…). O que conta é a despojada solidão das palavras: “Que se passa com eles? / Há qualquer coisa que me está a escapar / Continuam sem fazer nada / Demasiado intoxicados para sentir medo.” Eis um radical axioma ideológico: no tempo do entorpecimento fabricado por todos os alarmistas mediáticos, conseguir voltar a ter medo.

terça-feira, dezembro 17, 2019

Robert Capa, 1944

ROBERT CAPA
Bulge, Dez. 1944
Nesta fotografia está registado um momento emblemático da Batalha de Bulge (ou Batalha das Ardenas), travada em Dezembro de 1944: o soldado americano e o prisioneiro alemão são duas figuras de um confronto que contribuiria decisivamente para a vitória dos Aliados. A imagem tem assinatura de Robert Capa, que seria, em 1947, um dos fundadores da agência Magnum — agora, precisamente para assinalar o 75º aniversário dos acontecimentos, a Magnum publica um portfolio de Capa, acompanhado por um didáctico texto de contextualização.

ROBERT CAPA
Soldados dos EUA perto de Bastogne, 1944

segunda-feira, dezembro 16, 2019

Lil Nas X, ou a nova conquista do Oeste

Old Town Road, do rapper americano Lil Nas X, ficará, por certo, como um dos temas mais populares de 2019. A sua versão com a colaboração de Billy Ray Cyrus constitui também um sintoma feliz de um cruzamento de referências e sensibilidades a que, com propriedade, já foi chamado country rap — o respectivo teledisco tem qualquer coisa de reinvenção da noção clássica de conquista do Oeste.