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O IRLANDÊS > na foto: Lucy Gallini e Al Pacino |
Em O Irlandês, através de memórias do sindicalismo, da Mafia e da política, Martin Scorsese coloca em cena o equilíbrio instável entre o que somos e o que desejamos ser. Não há nada mais humano — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 Novembro).
Nas cenas finais de O Irlandês, de Martin Scorsese, Frank Sheeran (Robert De Niro), que foi homem de mão de uma família mafiosa, vive as rotinas de um lar para a terceira idade. Um dia, quando uma enfermeira (Dascha Polanco) verifica a sua tensão arterial, Sheeran mostra-lhe algumas fotografias de tempos remotos. Numa delas está a sua filha Peggy (Lucy Gallini) na companhia de Jimmy Hoffa (Al Pacino), o líder do sindicato dos camionistas de que ele próprio foi guarda-costas e conselheiro. Sheeran pergunta à enfermeira se ela não está a reconhecer Hoffa, figura cuja lenda nacional cresceu tanto mais quanto as condições do seu desaparecimento nunca foram oficialmente esclarecidas. Ela olha para a imagem e não o reconhece — em boa verdade, não sabe quem foi Jimmy Hoffa…
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Martin Scorsese |
O Irlandês é uma saga americana que, através da ligação Hoffa/Sheeran, revisita um período convulsivo da história “made in USA” em que a obscura teia de relações entre sindicatos, organizações criminosas e instituições políticas tem como pano de fundo a presidência de John F. Kennedy. Impossível, em qualquer caso, reduzi-lo a um filme de género (sobre a Mafia, precisamente). Desde logo, porque Scorsese não é, nunca foi, um mero “ilustrador” de modelos mais ou menos estáveis; depois, porque através da violência, explícita ou apenas pressentida, que circula pelo filme vamos ganhando consciência daquela ambivalência do tempo, da vulnerabilidade de ser, desejando ser outra coisa.
Em paralelo com o lançamento de O Irlandês, Scorsese tem dado conta do seu desinteresse pelos filmes de super-heróis com chancela dos estúdios Marvel. Infelizmente, nos EUA, a agitação motivada pelas suas palavras foi-se fixando numa expressão que ele usou, considerando que os filmes Marvel “não são cinema”, recalcando duas ideias essenciais ligadas a tal afirmação: primeiro, que a ocupação dos mercados globais liderada pela Marvel está a asfixiar as possibilidades de difusão de todos os filmes que não correspondam aos seus modelos; depois, que nos filmes de super-heróis prevalece um academismo (a palavra é minha) que omite qualquer surpresa ou perturbação, apenas se repetindo os números formatados de um “parque de diversões”.
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Qualquer filme de super-heróis consegue destruir um planeta inteiro em poucos segundos, multiplicando explosões e ruídos ensurdecedores. De facto, na maior parte dos casos, nada acontece a não ser a aplicação de um preguiçoso programa informático. Vemos as fotografias envelhecidas nas mãos de Sheeran e compreendemos que o labor da memória é também uma forma de desenhar uma barreira entre os gestos do dia a dia e o silêncio infernal da morte. O grande cinema sabe contemplar esse silêncio.