segunda-feira, dezembro 30, 2019

O desastre de "Cats"

Judi Dench
É bem verdade que a tradição do musical raras vezes ecoa no cinema contemporâneo. Seja como for, a adaptação de Cats, de Andrew Lloyd Webber, por Tom Hooper, apresenta-se como um caso extremo de incompreensão das regras do espectáculo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Dezembro).

Perante a estreia de Cats, de Tom Hooper, a partir do musical de Andrew Lloyd Webber, deparamos com uma velha questão: podemos esperar, ou não, uma renovação do musical cinematográfico? Teremos, ou não, filmes capazes de alimentar a nossa ânsia de reencontro com o fulgor da época (anos 40/50) em que Hollywood produziu títulos admiráveis como Serenata à Chuva ou A Roda da Fortuna?
Enfim, o mais rudimentar bom senso recorda-nos que não se trata de uma mera questão de “vontade”. Na verdade, há muitos anos — talvez desde essa fronteira simbólica que é West Side Story (1961) —, os estúdios americanos abandonaram a produção regular de musicais. Nessa medida, pode dizer-se que há um “know-how” técnico e artístico que a indústria secundarizou ou, pura e simplesmente, abandonou. Que Steven Spielberg esteja a trabalhar numa nova versão de West Side Story, a estrear em finais de 2020, eis um curioso sobressalto a ter em conta...
Cats é o desastroso resultado de um sistema que, de facto, deixou de pensar a especificidade do musical. Que faz, então, Tom Hooper? Pois bem, em primeiro lugar, inventa uns gatos meio humanos, meio digitais que quase nunca adquirem verosimilhança dramática. Na melhor das hipóteses, são caricaturas de felinos que talvez pudessem ter lugar num banal, mais ou menos paródico, filme de terror. Depois, menosprezando as potencialidades de cenografia e coreografia, filma tudo com muitas câmaras, promovendo uma montagem de imagens fragmentárias e aceleradas que, na prática, já nem nos permitem contemplar o que quer que seja — já não há, ao menos, gosto de olhar e descobrir.
As excepções confirmam a regra. Chamam-se Judi Dench e Ian McKellen, nos papéis de Deuteronomy e Gus, respectivamente. Com eles, apesar de tudo, durante breves minutos, podemos sentir que o trabalho do actor não se dilui na preguiçosa acumulação de efeitos visuais, preservando a arte de dizer as palavras, controlar os gestos e saber dirigir o olhar.
Andre Lloyd Webber
De resto, fica-se com a sensação de que a acumulação de “vedetas convidadas”, nomeadamente a cantora Taylor Swift e o apresentador televisivo James Corden, já nem sequer obedece a qualquer critério de encenação — trata-se apenas de compensar (?) o vazio de ideias com a agitação de alguns nomes sonantes. A participação de Taylor Swift, interpretando Beautiful Ghosts (canção original, ausente das versões de palco), mais parece uma variação tosca do novo-riquismo de muitos dos seus telediscos.
Estreado em 1981, no West End, em Londres, o original de Andrew Lloyd Webber é historicamente reconhecido como modelo fundador do moderno musical. E não será, por certo, apenas porque nele encontramos uma canção tão famosa como Memory (depois popularizada, sobretudo, pela versão de Barbra Streisand). Inspirado numa maravilhosa antologia poética de T. S. Eliot (O Livro dos Gatos Práticos do Velho Gambá, ed. Assírio & Alvim), Cats envolve um delicado e irónico projecto filosófico: a saga dos gatos confunde-se, afinal, com uma aventura universal de descoberta e preservação da identidade.
T. S. Eliot
Da sabedoria das palavras de Eliot e da energia da música de Lloyd Webber quase nada resta. Tudo se resume a um trabalho “ilustrativo” que parece acreditar que o envolvimento do espectador resulta necessariamente da ostentação tecnológica e da “velocidade” das imagens...
Entretanto, face ao mau desempenho de Cats nas salas dos EUA (6,6 milhões de dólares no fim de semana de estreia em mais de três mil ecrãs é uma catástrofe), o estúdio produtor, Universal Pictures, informou os exibidores que vai substituir as cópias enviadas por outras cópias “com alguns efeitos visuais melhorados”. Eis um sintoma esclarecedor: no interior da actual produção americana, há decisores que confundem a fabricação (e o prazer) do espectáculo com os seus instrumentos técnicos.