domingo, dezembro 30, 2018

3 livros de 2018

* JOGOS DE RAIVA, de Rodrigo Guedes de Carvalho (Dom Quixote)

>>> Não há um de nós que, por uma vez que seja, não amaldiçoe o seu destino. Só que o destino é tudo o que temos, mesmo que acreditemos que poderemos mudá-lo. Não se chama destino por acaso.
(pág. 240)

O poder do destino começa, afinal, do facto de se chamar... destino. Assim é a prosa de Rodrigo Guedes de Carvalho, continuando um admirável labor realista que não se esgota nos sinais do quotidiano, longe disso, porque existe, no essencial, como realismo da linguagem.
Encontramos em Jogos de Raiva (o título envolve uma calculada ironia cinéfila) o prolongamento exemplar de experiências que tiveram um desenvolvimento importante no anterior O Pianista de Hotel, expondo as conexões reais, imaginadas ou imaginárias entre elementos de um pequeno colectivo atravessado pelos laços, ilusões e símbolos de uma ideia primitiva de família. Certamente não por acaso há, aqui, alguém que escreve um romance que funciona, de uma só vez, como reflexo simbólico e espelho deformante do próprio romance que estamos a ler. Dito de outro modo: o trabalho literário existe como actividade sistematicamente impelida para questionar os seus poderes e limites, sobretudo num mundo em que, "socialmente" e em "rede", cedemos todos os dias à instrumentalização obscena ou mediática (muitas vezes obscena e mediática) da magia primordial da palavra — essa palavra que o cinema já expôs [Dreyer] na sua dimensão sagrada.
Tudo isto se desenvolve através de uma dramaturgia de durações e lugares cruzados, cada um deles alimentando a ambiguidade que o aproxima do seu contrário. É um método capaz de reconhecer a fragilidade em que passou a existir a tarefa prospectiva do escritor, por oposição à rotina instrumental do escrevente (para utilizarmos a oposição definida por Roland Barthes). Em última instância, é uma via para lidarmos com a complexidade do nosso tempo — português e universal.

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* CENTRE, de Philippe Sollers (Gallimard)

No interior de uma obra imensa e fascinante, os mais recentes romances de Philippe Sollers podem ler-se também como zonas mais ou menos autónomas de um bloco-notas dedicado às maravilhas e monstruosidades do nosso viver: da celebração do poder invencível da palavra até ao reconhecimento da mediocridade triunfante da sociedade "virtual" — leia-se a rede que se desenha através de L' Éclaircie, Médium, Mouvement e Beauté. De novo através de uma festiva brevidade — apenas 128 páginas, há algo da vertigem punk na escrita de Sollers —, Centre é mais um romance exemplar dessa dialéctica vivida entre o esvaziamento do social e o sagrado da relação amorosa. Com uma ambígua sugestão autobiográfica: Sollers é casado com a psicanalista Julia Kristeva, ela própria uma notável romancista (leia-se o prodigioso L'Horloge Enchantée), sendo o escritor/narrador de Centre casado com Nora, psicanalista de profissão... Nada a ver, entenda-se, com a pornografia confessional que nos rodeia — este é um objecto do mais radical pudor.

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* CAOS E RITMO, de José Gil (Relógio D'Água)

Esta é a escrita do corpo e das suas propriedades: porque um corpo possui essa capacidade de "emitir forças (partículas intensivas) que um outro corpo recebe e acolhe como suas" (pág. 26). José Gil percorre um leque de mundividências, dos estudos da criança por Françoise Dolto às propostas de Antonin Artaud em O Teatro e o seu Duplo, passando pela feitiçaria interior à tragédia de Macbeth. Na procura de quê? Trata-se de iluminar essas paisagens tão próximas, por vezes tão dificilmente pensáveis, em que o corpo se faz ideia, ou melhor, em que protagonizamos um renascimento alheio a qualquer formatação religiosa, embora realmente espiritual — porque, no dizer de Artaud, "as ideias não são senão os vazios do corpo." Eis um livro que se pode definir através da classificação tradicional de ensaio filosófico, mas que, no limite, se vai construindo como uma deambulação romanesca por um património de ideias com duas frentes: numa delas, continuamos a lutar por saber o que acontece quando aplicamos a palavra "eu"; na outra, porventura distante, mas complementar, revemo-nos no espaço de uma Europa problemática, assombrada pela sedução do seu equilíbrio instável: utopia ou distopia?