O romance de Philippe Sollers, Beauté, publicado em 2017 (entretanto, o autor já lançou Centre) é, de uma só vez, uma música íntima e uma deambulação pela musicalidade utópica do mundo. A partir da relação com Lisa, "jovem pianista grega excepcional", o autor organiza uma deambulação romanesca e filosófica, com algo de perverso método jornalístico, sobre a beleza perdida do mundo. Ou melhor, sobre o enfraquecimento da ideia de beleza na histeria deste mundo de espectáculo, reality-TV e hiperligações.
Sollers acrescenta assim mais uma peça fascinante ao mapa de romances com que vai redesenhando um desejo de escrita que não vacila perante a formatação quotidiana dos seres, gestos e relações — recorde-se o anterior, igulamente magnífico, Mouvement. Como intransigente moralista — entenda-se: pensador empenhado em discutir as condições de formulação de alguma moral —, não abdica de continuar a descrever a apropriação da nossa existência pelos sistemas de encenação social que já marcaram a ferro e fogo o século XX. A começar pelo nazismo — para ler, celebrando o poder não alinhado da palavra.
>>> Aquele que compreendeu melhor o devir-cinema universal foi Hitler. Basta abrir uma televisão, e deslizar de um canal para outro, para constatar que ele está lá, sem interrupção, com a emergência de arquivos inéditos por longo tempo interditos, que contemplamos agora colorizados. De tal modo estamos habituados a ver as mesmas imagens dos campos de exterminação, a preto e branco, com os seus amontoados de cadáveres esqueléticos e deportados meio mortos, que somos surpreendidos por esta súbita passagem para a cor. É o mesmo estúpido que vocifera, braço estendido, perante as massas em êxtase (muitas mulheres em transe), mas, em vez de aparecer como anjo das trevas com a sua braçadeira de cruz gamada, ei-lo arranjado, descontraído, quase espontâneo, e a sua fiel companheira, Eva Braun, loura e arredondada, desportiva, querida, amando o seu monstro empertigado como se ele fosse a sua boneca.
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