terça-feira, janeiro 02, 2024

Na solidão de Philippe Sollers

PABLO PICASSO
O Acrobata (1930)

Falecido em 2023, Sollers legou-nos uma obra em que a desmontagem da regra conduz à celebração da excepção — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 dezembro).

Philippe Sollers
Numa pesquisa rápida em algumas das maiores plataformas de venda de livros, procuro obras de Philippe Sollers (1936-2023) traduzidas em português. O resultado é eloquente: zero. Sinto-o como um eco incauto de muitos obituários rotineiros e indiferentes que deram conta do seu desaparecimento em meados deste ano — faleceu em Paris, no dia 5 de maio, contava 86 anos.
Se eu disser que considero Sollers um dos escritores e pensadores fundamentais da nossa contemporaneidade — o seu primeiro romance, Une Curieuse Solitude, surgiu em 1958 —, corro o risco de atrair mais um desses jogos florais “pró & contra” que todos os dias parasitam o nosso espaço (dito) de comunicação. Escusado será dizer que não tenho gosto em alimentar qualquer infantilismo do género. Além do mais, seria contrário à matéria e ao espírito da escrita de Sollers, autor sempre empenhado em denunciar a chantagem da regra, procurando escutar as razões, mesmo as menos razoáveis, da excepção.
Não por acaso, um dos seus livros de ensaios intitula-se Théorie des Exceptions (1986). Nele encontramos uma antologia de reflexões sobre as heranças de escritores, artistas e, como ele diz, algumas “insolências mais gerais”: Cervantes, Sade ou Proust; Rafael, Picasso e Bach; ou ainda “a ficção, a teologia, Freud”. São nomes que Sollers inventaria e analisa, lembrando uma “evidência” que se demarca, ponto por ponto, do aparato de consagrações que a cultura dominante vai encenando: “É falso que as obras literárias ou artísticas sejam esperadas, justificadas, normalmente produzidas no seu tempo para posterior satisfação do historiador, dos museus ou dos professores.” Porquê? Porque, no começo, no domínio temático e narrativo, tais obras nos colocam perante “a violência, a invasão, muitas vezes o escândalo.”
Discípulo de Roland Barthes (1915-1980), com ele manteve uma relação de dupla fidelidade, já que, no começo, Sollers foi editor de Barthes. Tudo isso ecoa num livro que nos ajuda a compreender que a dinâmica dos pensamentos, mesmo quando enquadrada ou enriquecida por contextos institucionais, não é estranha ao valor primordial da amizade: em L’amitié de Roland Barthes, publicado em 2015, incluindo cerca de três dezenas de cartas de Barthes para Sollers, este recorda uma lição fulcral do autor de O Prazer do Texto (tradução portuguesa disponível com chancela das Edições 70), lembrando que a linguagem é “a mais forte das transgressões.”
O desafio inerente a tal transgressão é tanto maior quanto o linguajar do nosso presente vive alimentado por uma cultura de grosseiro narcisismo, favorecendo também a ilusão (mais do que isso: a mentira) da arte como uma espécie de balanço contabilístico de uma empresa empenhada em ilustrar as virtudes do “progresso”. Numa entrevista de 1978, incluída em Théorie des Exceptions, Sollers avança mesmo com uma máxima psicanalítica sobre as nossas ilusões comunitárias: “(…) qualquer cultura é construída para nos dar a boa consciência segundo a qual nada temos que ver com o inconsciente.”
Nos últimos anos do seu labor, depois de uma autobiografia em forma de “verdadeiro romance” (Un Vrai Roman, 2007), Sollers publicou uma série de romances breves, alguns com menos de uma centena de páginas. O cruzamento de referências históricas, ainda que sempre remetendo para personagens e situações do presente, faz com que o romanesco se dilua no confessional, gerando objectos que podem ter tanto de radical especulação filosófica como de inusitada crónica jornalística.
Os títulos desses livrinhos são tanto mais sugestivos quanto, por vezes, celebram a vibração de uma única palavra, solitária e feliz: a “iluminação” (L’Éclaircie, 2012), a “beleza” (Beauté, 2017), o “desejo” (Désir, 2020). No último deles (Graal, 2022), Sollers revisita as memórias mitológicas do reino da Atlântida, em que os segredos são “ciosamente guardados”, ao contrário da nossa “pós-modernidade de indiscrição generalizada”.
São ecos de um livro razoalmente autobiográfico, habitado por um contagiante humor (Agent Secret, 2021), como se Sollers assumisse a máscara de um James Bond acrobático, ainda mais insolente que o original. Em nome do pudor, aí encontramos já a metódica exumação do nosso mal viver: “A discrição é, na verdade, qualquer coisa de delicioso, oposto a tudo aquilo que invadiu o espaço humano, agora dedicado ao jornalismo absoluto em que tudo é, por definição, indiscreto. Com a chegada da Internet, vivemos numa sociedade de indiscrição generalizada.”