Sasha, na primeira pessoa: "Eu sou uma menina" |
Como existir para lá do olhar dos outros? Eis uma questão cinematográfica e televisiva motivada pelo filme Little Girl — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 abril).
Só agora descobri esse filme admirável que é Little Girl, de Sébastien Lifshitz. Não foi lançado nas salas, o que, além do mais, diz bem dos desequilíbrios estruturais do nosso mercado cinematográfico: muitos filmes artisticamente irrelevantes e, mais do que isso, comercialmente desastrosos, continuam a ocupar os ecrãs de alguns cinemas, ficando de fora objectos tão singulares e fascinantes como este.
Little Girl é o chamado título internacional. Trata-se de uma produção francesa de 2020, no original Petite Fille, que, em qualquer caso, teve alguma visibilidade no contexto português como filme escolhido para o encerramento da edição do Queer Lisboa, também em 2020. Entretanto, há alguns meses, passou a estar disponível em “streaming” nos canais TVCine.
A sinopse de Little Girl pode ter tanto de esclarecedor como de redutor. A “pequena menina” do título é Sasha. Tem 7 anos e, na sua identificação oficial, está registada como um ser do sexo masculino. Ao fazer 3 anos, Sasha começou a dizer: “Quando for grande, quero ser uma menina.” Quase ninguém lhe prestou atenção, mas aos 4 anos, em grande parte graças ao carinho radical dos pais, Sasha tinha conquistado a verbalização da sua identidade: “Eu sou uma menina”.
Para Lifshitz, a pergunta metódica terá sido: como documentar a história de Sasha? Pois bem, inventariando momentos fulcrais de uma existência que não pode ser tratada em função de categorias cognitivas que se esgotem num qualquer discurso “militante” ou “panfletário” (por mais que existam razões morais e políticas que confiram a tal discurso uma inequívoca pertinência histórica).
Começamos por conhecer o relato da mãe, ainda tocada pela dor de, no início, ter dito a Sasha que o seu desejo de ser uma menina era “impossível” — afinal de contas, como ela diz a certa altura, não sem alguma pudica ironia, Sasha é o único dos seus filhos com um nome masculino/feminino. Vemos Sasha e a mãe a comprar guarda-roupa feminino. Conhecemos as peripécias resultantes da resistência do director e da professora de Sasha, considerando que a sua “diferença” não deve ser explicitada pelas roupas, precisamente. Observamos o seu misto de entrega e solidão nas aulas de bailado. E assistimos às espantosas consultas com a médica que acompanha Sasha e os pais, explicando o que é a disforia de género. A saber: a tensão vivida por alguém através do conflito entre a biologia do sexo e a sua identidade de género.
Mesmo não esquecendo, antes valorizando, a comovente ternura familiar que envolve Sasha, há na sua personagem uma energia a que, sopesando a palavra, chamarei heroísmo. Por causa da resistência à agressividade moral de alguns humanos? Sim, sem dúvida, mas sobretudo porque essa resistência não se define contra o que quer que seja, antes através da maravilhosa irredutibilidade do seu ser.
Não é banal esta questão. Porquê? Olhemos à nossa volta. O modelo corrente de herói — incluindo o do jornalista que é celebrado, não através da especificidade da situação dramática que relatou, mas apenas pelos perigos físicos que correu — tende a atrair o mesmo determinismo com que algumas ficções (cinematográficas e, sobretudo, televisivas) encenam os protagonistas como figuras santificadas que parecem conhecer antecipadamente o seu “destino”.
Little Girl é, afinal, o oposto da noção corrente de Espectáculo (assim mesmo: com esta maiúscula resultante da ignorância das maravilhas clássicas do espectáculo, neste caso em humilde minúscula). No seu mais recente romance, Graal (ed. Gallimard, Paris, 2022), outro francês, Philippe Sollers volta a expor essa obscenidade contemporânea, actualizando-a: “Os vacinados de hoje permanecem inquietos, alarmados pelo mais pequeno sintoma. Não têm medo de morrer, mas antes de não serem tidos em conta pelo Espectáculo, quer dizer, de deixarem de se sentir filmados ou televisionados.”
Convocando a “memória mítica” do reino da Atlântida, desse “maravilhoso império” descrito por Platão, Sollers sublinha os seus contrastes com a obscenidade mediática e virtual dos nossos dias: “É o país dos segredos ciosamente guardados, o contrário da nossa pós-modernidade de indiscrição generalizada.” Sasha é, justamente, um ser — e uma personagem cinematográfica — que preserva o seu segredo: dizendo que é “uma menina”, está apenas a dizer que existe por si, não através do olhar dos outros.