La Chinoise (1967): “É preciso confrontar as ideias vagas com imagens claras” |
Apresentada no âmbito do recente LEFFEST, a exposição de Fabrice Aragno sobre o universo cinematográfico de Jean-Luc Godard — “Éloge de l’Image - Le Livre d’Image”, até 2 de dezembro, na Trienal de Arquitectura (Palácio Sinel de Cordes, Campo de Santa Clara, próximo da zona da Feira da Ladra) — leva-nos a revisitar os momentos mais emblemáticos da sua filmografia, perguntando: o que é isso de ver o mundo através de um ecrã? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 novembro).
Um dos aspectos mais fascinantes da exposição “Éloge de l’Image - le Livre d’Image” decorre do facto de os seus ecos, directos ou simbólicos, ultrapassarem (e muito!) a referência ao filme que a inspira: O Livro de Imagem (2018), essa obra terminal de alguém que sempre questionou o modo como, do cinema à publicidade, passando pela televisão, nos relacionamos com as imagens. Num resumo esquemático, eventualmente sugestivo, podemos mesmo dizer que Jean-Luc Godard nos deixou um legado através do qual não nos limitamos a identificar o que está numa imagem. Porquê? Sabemos que, face a essa imagem, tudo em nós se transfigura — pensamentos, emoções, relações com os outros.
Numa parede da casa em que se passa o essencial do filme La Chinoise (1967), Godard escreveu esta frase que, muito mais do que um preceito cinematográfico, pode ser entendida como um princípio de vida: “É preciso confrontar as ideias vagas com imagens claras.” Tendo em conta que esse é um filme tradicionalmente apontado como exemplar do seu “período político”, vale a pena acrescentar que tal classificação só peca por defeito. Isto porque não há nada mais político do que olhar o mundo e transfigurá-lo em imagens — a noção de que, todos os dias, as televisões se limitam a “reproduzir” o mundo é mesmo um caso extremo de distração ou ingenuidade.
Lembremos, por isso, as cenas de O Desprezo (1963) em que as personagens interpretadas por Brigitte Bardot, Michel Piccoli e Fritz Lang assistem à projecção de extractos do filme que estão a rodar. Ou o pioneirismo de Número Dois (1975), expondo o modo como as mensagens televisivas passaram a integrar de forma visceral a nossa percepção do mundo, nessa medida afectando também a nossa identidade. Ou a rodagem de um filme dentro do filme, em Paixão (1982), tendo como inspiração várias obras-primas da história da pintura, incluindo A Ronda da Noite, de Rembrandt. Ou ainda o poético jogo de espelhos de que se faz o autobiográfico J.L.G. por J.L.G. (1994), celebrando a vida, pressentindo a irrisão da morte.
Que liga todos esses momentos? Pois bem, a certeza de que o mundo é palco de um jogo infinito de ecrãs em que algumas vezes podemos descobrir o que somos, noutras assumimos máscaras que podem ter tanto de revelação como de impostura. Por alguma razão, Godard sempre se interessou pelas linguagens televisivas e pelo modo como a sua espectacular proliferação mudou as sociedades. Não por qualquer processo de demonização — afinal de contas, desde a sua fase “política”, ele trabalhou frequentemente para televisão. Antes porque algumas componentes do espaço televisivo podem banalizar e esquematizar as próprias relações humanas, incluindo a dimensão política dessas relações. Ou como ele disse uma vez: quando um filme se estreia numa sala, apesar de tudo temos a certeza que os respectivos espectadores tomaram a decisão de o ver — quando passa na televisão, “não sei para onde vai”.