Grande acontecimento na área do DVD: a edição de Paixão (1982), de Jean-Luc Godard — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Setembro), com o título 'Um trabalho próximo do amor'.
Sabemos que a cultura cinéfila foi perdendo força social e, em particular, presença mediática. E escusado será dizer que a vitalidade dessa cultura não se mantém através de ante-estreias abrilhantadas pela presença de “famosos” (palavra que, hoje em dia, se tornou sinónimo quase universal dos mais medíocres actores de telenovelas). Nem parece possível celebrar a inteligência dos filmes através de especulações demagógicas sobre o papel social da crítica (sem esquecer que a palavra “social” continua a ser todos os dias desvalorizadas pelas “redes” que se assumem como expressão unívoca, muitas vezes banalmente difamatória, da dinâmica colectiva).
Isto para dizer que o lançamento em DVD de Paixão (1982), de Jean-Luc Godard, não desencadeou grandes comoções sociais. Em boa verdade, a possibilidade de André Carrillo continuar ou não a jogar futebol em Portugal parece ser mais importante para os nossos destinos do que a existência de uma das obras fulcrais da arte (cinematográfica ou não) da segunda metade do século XX.
Ironias à parte, ninguém é tão ingénuo a ponto de esperar que algum telejornal abra com a notícia da edição de Paixão... Será preciso esclarecer que não é nada disso que está em causa? O que se lamenta pouco tem a ver com qualquer métrica da “visibilidade”. Acontece que a desvalorização da cinefilia envolve todo um apagamento de memórias que tende a supor que o carácter “revolucionário” de um filme se mede, por exemplo, pela utilização dos últimos recursos típicos dos “efeitos especiais”.
O valor simbólico de Paixão passa, afinal, pela integração de um muito antigo dispositivo dramático: tudo acontece a partir da actividade de um equipa de filmagens cujo realizador, de origem polaca, interpretado por Jerzy Radziwilowicz, procura obsessivamente a luz certa para refazer, em estúdio, as composições humanas de algumas célebres pinturas (A Ronda da Noite, de Rembrandt, é um dos quadros citados).
No universo de Godard, o confronto com as heranças da pintura não decorre de nenhuma atitude copista, muito menos desse novo-riquismo estético que julga que a dignidade do cinema passa pela imitação das artes “superiores”. Nada disso. A pintura reaparece como um universo enredado com a integração de novos recursos ligados às câmaras de vídeo (por essa altura, Godard assinara alguns notáveis trabalhos para televisão, incluindo, em 1977, a série France Tour Détour Deux Enfants). Em boa verdade, tais recursos impelem a uma reavaliação do património visual e, mais do que isso, do modo como vivemos através das imagens que produzimos e consumimos.
Numa célebre cena de Paixão, interpretando uma potencial actriz do filme que está a ser rodado, Hanna Shygulla diz a Radziwilowicz que o trabalho que ele lhe pede “está demasiado próximo do amor”. Nos dias que correm, quantos são os que produzem imagens, não para formatar o real, mas por amor da sua humana complexidade?