terça-feira, agosto 15, 2023

Ser ou não ser Zelig

Woody Allen interpretando Leonard Zelig,
ou a comédia da identidade

Há no filme Zelig, de Woody Allen, um jogo entre a verdade e a mentira das imagens que ecoa no nosso presente — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 julho), assinalando a data dos 40 anos do seu lançamento.

A obra-prima de Woody Allen, Zelig, estreou-se há 40 anos, em Nova Iorque, a 15 de julho de 1983. Dois dias mais tarde, no New York Times, Vincent Canby comparava-o com o clássico Citizen Kane/O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Welles: “Zelig é Citizen Kane miraculosamente transformado em delirante comédia.”
O paralelismo está longe de ser um banal juízo de valor. Será preciso lembrar que pensar os filmes é um trabalho que pouco, ou nada, tem a ver com o infantilismo “científico” que, eventualmente, se vai esgotar nas clássicas estrelinhas? A evocação de Welles envolve uma questão cuja perturbação — mediática e política, numa palavra, cultural — continua a pontuar os nossos quotidianos. A saber: não apenas a relação de cada um de nós com a verdade, mas o modo de produção dessa verdade.
Welles encenava a odisseia da personagem que ele próprio interpretava, Charles Foster Kane, um magnate da imprensa com ambições políticas. Em termos esquemáticos, digamos que o filme evolui como um puzzle gerado pela palavra (“Rosebud”) que Kane pronuncia antes de morrer; em sucessivos flashbacks, várias personagens respondem a uma investigação jornalística sobre a identidade de Kane — é um enigma individual que se vai dispersando, não se fixando em nenhuma imagem (nem mesmo através do “esclarecimento” final, dos mais ambíguos que alguma vez foi apresentado por uma narrativa cinematográfica).
Zelig evolui também como um puzzle individual, em torno da figura de Leonard Zelig (interpretado pelo próprio Allen, também responsável pelo argumento). Com uma diferença que está longe de ser secundária: enquanto Kane é aquele que, mesmo com o auxílio de materiais de arquivo e múltiplos testemunhos, se vai escapando a qualquer identificação ou compreensão definitiva, Zelig existe através de uma transfiguração de imagens potencialmente infinita.
Assim, Zelig não se relaciona com os outros, mas com as imagens que os definem. Mais do que isso: Zelig vai existindo através das mais incríveis “duplicações”, adaptando-se, como um camaleão, a qualquer contexto. Vêmo-lo em cenários políticos ou reuniões secretas, assumindo-se como paciente num hospital (veja-se a ilustração deste texto) ou político na Casa Branca, ou ainda gangster num cabaret de duvidosa frequência. A comédia nasce, não daquilo que a personagem faz, mas das “personalidades” que pode assumir para, finalmente, desembocar num mistério romanesco: o amor que encontra na psiquiatra que o trata (Mia Farrow) surge como teste final da sua cura… Será preciso acrescentar que estamos perante uma fábula sobre o ser ou não ser?
Ser ou não ser pessoa, entenda-se, mas também ser ou não ser imagem, filme, transmissão visual. Dir-se-ia que, duas décadas antes da promiscuidade virtual induzida pelo Facebook (e outras redes de discutíveis valores sociais), Allen formula a hipótese de alguém existir apenas através de uma delegação identitária que, em última instância, esvazia a sua dimensão humana — um pouco como as “infuencers” que só existem através das mercadorias que promovem, curiosamente não suscitando qualquer dúvida pedagógica de muitas militâncias feministas.
Há outra maneira de sublinhar a singularidade estética e o génio criativo de um filme como Zelig. Com a fundamental colaboração do director de fotografia Gordon Willis (responsável, por exemplo, pelas imagens da trilogia de O Padrinho), Allen conseguiu uma verdadeira proeza na história dos efeitos especiais. Nada a ver com a destruição de um planeta, cena sim, cena não, à maneira de alguns espectáculos da Marvel & Cª. As imagens (fotográficas e em movimento) de Zelig são trabalhadas para a inserção das várias encarnações da personagem central nos mais diversos cenários, e também para a produção de um efeito de desgaste material (riscos, cortes, etc.) capaz de sugerir o tempo que passou até ao presente do próprio filme.
Esse efeito, de uma só vez dramático e irónico, é tanto mais sugestivo quanto o filme conta com algumas personalidades que aceitaram participar em nome próprio, contribuindo para reforçar a sensação ambígua de assistirmos a um documentário (“mockumentary”, segundo a gíria anglo-saxónica), incluindo Susan Sontag, o nobelizado Saul Bellow e Bruno Bettelheim. Sontag, a primeira a aparecer, coloca mesmo a figura de Leonard Zelig num plano mitológico: “Ele foi o fenómeno da década de 1920. Acreditamos que, nessa altura, era tão conhecido como Lindbergh, o que é realmente impressionante.”
Vale a pena acrescentar algumas palavras da própria Sontag, do seu ensaio “Sobre o estilo” (1965), incluido na colectânea Contra a Interpretação (ed. Gótica, 2004). Resistindo à noção redutora segundo a qual a obra de arte está obrigada a manter alguma proximidade com a nossa “realidade vivida”, diz ela: “Superar e transcender o mundo em arte é também um meio de encontrar o mundo, e de treinar e educar a vontade para estar no mundo.”

“Barbenheimer”:
que fazer com esta palavra?

Margot Robbie (Barbie) e Cillian Murphy (Oppenheimer):
é preciso repensar a distribuição e exibição dos filmes

Os filmes Barbie e Oppenheimer são dois espantosos fenómenos de bilheteira: será que os números chegam para compreender tudo o que está a acontecer? — este texto foi publicado no site da SIC Notícias (31 julho / os números citados das bilheteiras são, obviamente, referentes a essa data).

Assim vai o mundo do cinema: o marketing norte-americano inventou uma palavra (“Barbenheimer”) para “cruzar” dois filmes com lançamento mundial simultâneo — Barbie, de Greta Gerwig, e Oppenheimer, de Christopher Nolan — e os efeitos nas bilheteiras são grandiosos. Nos EUA, o primeiro já arrecadou um pouco mais de 350 milhões de dólares, enquanto o segundo vai nos 174 milhões. Em Portugal, a afluência é também invulgar: 445 mil e 205 mil espectadores, respectivamente, ao fim de duas semanas de exibição (com um total de receitas superior a 4 milhões de euros).
Os resultados são tanto mais surpreendentes quanto estamos perante dois objectos radicalmente diferentes, porventura inconciliáveis. Barbie centra-se numa personagem (boneca, brinquedo da marca Mattel) sem qualquer historial cinematográfico, enquanto Oppenheimer aborda uma personalidade real pouco conhecida do grande público (J. Robert Oppenheimer, líder do Projecto Manhattan que, nos tempos finais da Segunda Guerra Mundial, fabricou as primeiras bombas atómicas), além de ser um filme com a duração de três horas.
Tudo isto me parece muito interessante e, ao mesmo tempo, francamente equívoco. Porquê? Para alinhavar duas ou três ideias, necessito de começar por esclarecer um ponto que considero fulcral (e que tenho repetido vezes sem conta, ao longo de décadas, sendo invariavelmente mal entendido). A saber: não confundo os meus juízos de valor sobre os filmes com as dinâmicas da sua vida comercial.


Ou ainda: Barbie parece-me uma brincadeira fútil, cinematograficamente feita de imitações e citações de filmes bem mais interessantes, enquanto considero Oppenheimer uma das obras mais complexas, impressionantes e perturbantes que vi nos últimos tempos. Mas… e este “mas” é fundamental: a defesa (também de muitas décadas) do cinema como fenómeno específico das salas escuras leva-me a saudar, sem hesitação, o simples facto de, afinal, existirem realmente pessoas que continuam disponíveis para conhecer os filmes (sejam eles quais forem) no lugar original para que foram concebidos — e bem sabemos que esse é um elemento crucial da crise de audiências que todos conhecem e reconhecem.
Daí, creio, a necessidade de lidar com a dimensão (que considero) equívoca do fenómeno. O que está em jogo não é o facto de Barbie ou Oppenheimer serem “melhores” ou “piores” (de acordo com os pontos vista naturalmente — e salutarmente — distintos que vão surgindo). Porquê? Porque o carácter excepcional do fenómeno nos permite perceber que a súbita eficácia desta manobra de marketing acontece depois de muito tempo (duas décadas, pelo menos) em que o marketing mais poderoso — entenda-se: o marketing dos grandes estúdios americanos e seus representantes internacionais — só investiu seriamente na promoção de super-heróis & afins, afunilando a oferta comercial e contribuindo para o desenvolvimento de mercados profundamente desequilibrados. E mais do que isso: mercados em que os filmes mais originais ou, pelo menos, menos típicos eram (e são) sistematicamente secundarizados.


Nesta perspectiva, o que se saúda não é que Barbie tenha estreado em 4243 salas (nos EUA) ou em 183 (em Portugal), como seria normal — ainda bem, é o investimento habitual quando a indústria aposta seriamente num determinado filme. O que realmente se saúda é que Oppenheimer, em vez de ter sido apressadamente rotulado de filme “difícil”, tenha surgido, não em 500 ou 600 ecrãs americanos, mas em 3610 — e que, em Portugal, os mesmos preconceitos não o tenham relegado para duas ou três dezenas de salas, antes acontecendo a sua estreia em 99 ecrãs, subindo para 103 na segunda semana.
Há outra maneira de resumir tudo isto: não basta inventar uma palavra sugestiva (francamente absurda, já agora) para pensar, programar e por em prática uma política coerente e diversificada de distribuição e exibição dos filmes. É preciso começar por avaliar que exposição pública se dá — ou não dá — a cada filme, sobretudo se esse mesmo filme não encaixar nos estereótipos de super-heróis e suas monótonas variações. Como se prova, os espectadores estão disponíveis… Quanto aos decisores da indústria, nos grandes e pequenos mercados, não lhes ficará mal parar um pouco para reflectir — no seu interesse, antes do mais.

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>>> Greta Gerwig e Christopher Nolan falam sobre os seus filmes na televisão americana — respectivamente em Good Morning America e Today.



domingo, agosto 13, 2023

A IMAGEM: Martin Parr, 2019

MARTIN PARR
Death by selfie
Índia, 2019

Sob as árvores [citação]

>>> E ao voltar-me vi injustiça em tudo quanto acontecia debaixo do Sol, e olhei, e eram as lágrimas daqueles que sofreram a injustiça, sem ninguém que os consolasse e aqueles que cometeram inustiça em relação a eles eram demasiado poderosos. Então louvei os defuntos que já tinham morrido.
Louvei os mortos. Todas as coisas têm o seu tempo, coser e rasgar, guardar e atirar fora. Louvei os mortos que jazem sob as árvores, dormindo.

Berlim Alexanderplatz
(ed. Dom Quixote, Lisboa, 1992
— tradução de Sara Seruya e Teresa Seruya)

Blur, Opus 9

Chama-se The Ballad of Darren: o nono álbum de estúdio dos Blur tem qualquer coisa de "revisão da matéria", mas está longe de ser uma banal colecção de nostalgias. Numa síntese feliz, no jornal The Guardian, Kitty Empire apresenta-o como um cruzamento de maturidade e melancolia, com tempero de aventura. Aqui fica a canção The Everglades (For Leonard). A ter em conta a foto da capa, assinada por Martin Parr.

terça-feira, agosto 08, 2023

Oppenheimer:
um mar de enganos

J. Robert Oppenheimer, aliás, Cillian Murphy:
elogio do grande plano

A tragédia de Oppenheimer relança a herança de Fausto, redescobrindo o valor cinematográfico do rosto — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 julho).

Na introdução à sua tradução do Fausto, de Johann W. Goethe (Relógio D’Água Editores, 1999), João Barrento escreve que “a obra resulta, na versão definitiva, no milagre de um todo que não é um todo.” Creio que a observação justifica algum paralelismo com o filme Oppenheimer, de Christopher Nolan. Claro que a exuberância do trabalho científico de J. Robert Oppenheimer (1904-1967) e, por fim, a sua condição de “pai da bomba atómica” atraem a classificação de um moderno Fausto. O seu pacto com os Mefistófeles da política — que no filme alguém resume dizendo que “tu és o homem que lhes deu o poder de se auto-destruirem” — coloca-o no centro de uma encruzilhada sem solução: onde acaba a paixão científica do saber e começa a instrumentalização política desse saber?
Escusado será sublinhar que no filme de Nolan ecoam múltiplos e inquietantes cenários da geo-política do nosso século XXI. Ao mesmo tempo, e ao contrário de muitas ficções audiovisuais contemporâneas, a abordagem de uma conjuntura tão delicada — do Projecto Manhattan ao lançamento das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki — não se esgota numa qualquer lição unívoca, porventura redentora, que confunda a experiência cinematográfica com as certezas normativas de muitos talk-shows. Em diversas entrevistas, Nolan tem dito que não faz filmes “didácticos”, antes procura abarcar a complexidade dos temas e situações que aborda — na certeza de que tudo isso pressupõe um espectador não seguidista, capaz de enfrentar um filme que não quer confirmar aquilo que ele já sabe, antes aposta na discussão dos limites, históricos, ideológicos ou simbólicos, que cristalizaram o seu saber.
Daí a sensação de “um todo que não é um todo”. Ao contrário de muitas produções correntes, apostadas em “reconstituições” históricas que se definem apenas pelas suas “semelhanças” com os factos retratados — diversas séries sobre a família real britânica podem servir de modelo desse “naturalismo” sem imaginação —, Oppenheimer é um filme sobre a totalidade de uma experiência cujas derivações não estão esgotadas.
Para lá das muitas diferenças que possamos citar, se há filme recente cuja ambição narrativa envolve a mesma metódica humildade (neste caso, não “a” narrativa sobre Oppenheimer, mas “uma” narrativa sobre Oppenheimer), esse filme será Spencer, de Pablo Larraín, sobre a Princesa Diana. E talvez faça sentido considerar que os desafios enfrentados por Kristen Stewart e Cillian Murphy, respectivamente como Diana e Oppenheimer, são de natureza semelhante. A saber: como representar uma figura cuja identidade histórica parece, ao mesmo tempo, tão evidente e de tão problemática fixação narrativa?
Diz Fausto, a certa altura, respondendo a Wagner que o tenta libertar dos seus tormentos: “Bem feliz é aquele que inda espera / Poder sair deste mar de enganos! / Mas o mais útil é o que se ignora, / E o que se sabe o que nos serve menos. / Mas não deixemos que tal melancolia / Nos venha perturbar tão bela hora! / Repara como o sol ao fim do dia, / No verde e nas cabanas reverbera. / Nasce e apaga-se, mais um dia passou, / Noutros lugares vai nascer nova vida.”
Há uma dimensão contraditória na tragédia de Oppenheimer (enfim, a contradição é mesmo o motor de qualquer tragédia…) que se enraiza nessa tensão entre a utilidade do que ignoramos e a menor pertinência do que já sabemos. O que, em termos cinematográficos, arrasta uma dúvida metódica: até que ponto aquilo que vemos numa personagem — a começar, claro, pelo incrível Cillian Murphy como Oppenheimer — existe como expressão do seu ser ou não passa de uma alternativa mascarada?
Tal interrogação justifica que reavaliemos, por exemplo, a santificação de algumas personagens apropriadas pelas banalidades do politicamente correcto — lembremos o determinismo dramático de A Hora Mais Negra (2017), sobre Winston Churchill, interpretado por Gary Oldman (o mesmo Oldman que, curiosamente, surge em Oppenheimer como Harry Truman). Seja como for, vale a pena acrescentar que, no filme de Nolan, tal jogo entre o que é dito e o que não chega a ser ciciado, passa por uma surpreendente colecção de grandes planos dos actores (com destaque, claro, para Murphy).
O que, enfim, nos instala num belíssimo paradoxo narrativo. Se é verdade que a grandeza física dos ecrãs IMAX tem sido celebrada através da agitação visual de super-heróis & afins, não é menos verdade que o rectângulo do IMAX pode ser um novo modelo de exaltação do rosto humano, da sua transparência e enigmas. Como? Filmando cada rosto como uma paisagem. Ou como Nolan já disse, Oppenheimer é “3D sem óculos”.

sexta-feira, agosto 04, 2023

Zaho de Sagazan: éclairs

Um álbum, uma genuína revelação: Zaho de Sagazan é um fenómeno de cruzamento entre tradição e electrónica, chanson française e experimentação — alguém que "pede que a escutemos" (como escreveu o Nuno). O seu álbum de estreia, La Symphonie das Éclairs, aí está, desde já, como um dos acontecimentos do ano — incluindo um dos melhores telediscos dos últimos tempos: Tristesse, com realização da própria.

quinta-feira, agosto 03, 2023

Gatsby, Oppenheimer e os outros

Cillian Murphy na personagem de J. Robert Oppenheimer:
da utopia à tragédia

Através da odisseia do “pai da bomba atómica”, filmada por Christopher Nolan, reencontramos a nobreza narrativa de Hollywood — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 julho).

Que é uma personagem? A pergunta está longe de ser banalmente teórica, em particular no interior da actual produção de Hollywood. A obscena proliferação de super-heróis é paradoxalmente reveladora: dispensando qualquer relação com o mundo em que vivem os seus espectadores, o super-herói é com frequência aquele que deixou de ser personagem — no plano técnico ou simbólico, basta-lhe ser um efeito especial.
Que personagem é, afinal, J. Robert Oppenheimer (1904-1967), o “pai da bomba atómica” que Christopher Nolan filma no seu prodigioso Oppenheimer?
Lembremos as palavras escritas por F. Scott Fitzgerald (1846-1940): “Não há segundos actos nas vidas americanas”. A interpretação piedosa (não é possível refazer uma vida falhada) esgota-se rapidamente, tornando necessária alguma reflexão sobre os mais nobres valores da narrativa. A saber: como contar de novo a história de alguém cuja existência como personagem parece ter ficado esgotada num radical primeiro acto?
Não é uma questão abstracta. Não o é, sobretudo, quando se trata de enfrentar um ser tão complexo como Oppenheimer. Até porque a condição inicial de génio das maravilhas da mecânica quântica e da física nuclear lhe confere o misto de ligeireza e sedução de um tradicional wonder boy americano. O filme de Nolan é também a história da transfiguração dessa imagem numa entidade trágica, indissociável da gestação de uma arma capaz, não apenas de vencer o inimigo, mas também de aniquilar a humanidade — sem esquecer que a composição de Cillian Murphy, expondo esse processo sem hipótese de reconversão ou redenção, é das coisas mais impressionantes que, em muitos anos, vimos num ecrã de cinema.
Ainda através de Fitzgerald, encontramos a origem de tudo isso em O Grande Gatsby, lançado em 1925 (ed. Presença, 2021), através das observações do narrador, Nick Carraway. A certa altura, contemplando o automatismo feliz com que Jay Gatsby se relaciona com o painel de instrumentos do seu automóvel, Nick fixa-se mesmo nessa “desenvoltura de movimentos tão peculiar nos americanos”.
Filmada por Nolan, a história de Oppenheimer existe como uma peça em dois actos em que tal desenvoltura vai dando lugar ao negrume irreversível da tragédia, bem explícito na possibilidade, aliás, no poder muito humano de destruir o seu semelhante. O que nos faz reencontrar as convulsões de um individualismo made in USA que pontua toda uma multifacetada cultura narrativa.
Esquematizando, e esquematizando muito, há um património cultural europeu que se enraiza num enquistamento individual que encontrou a sua expressão mitológica numa frase — “o inferno são os outros” — escrita por Jean-Paul Sartre (1905-1980) na peça Huis Clos, estreada em 1944. Que é como quem diz: o meu assombramento passa pela contaminação que provém do meu semelhante. Na ficção americana, deparamos com um conflito semelhante com os “outros”, mas a partir de uma vivência individual e interior, polvilhada pela evidência primordial do medo. Mesmo num romance que refaz a história, inventando novos factos, como é o caso de A Conspiração Contra a América, de Philip Roth (1933-2018), publicado em 2004 (ed. Dom Quixote, 2017), lemos logo a abrir: “O medo preside a estas memórias, um medo perpétuo”.
Nada disto é estranho a uma nostalgia do paraíso para sempre perdido. No autobiográfico Relatório do Interior (ed. Asa, 2013), Paul Auster (n. 1947) lança mesmo a narrativa através de memórias de um tempo anterior e utópico: “No início, tudo estava vivo. Os mais pequenos objectos eram dotados de corações pulsantes, e até as nuvens tinham nomes.” O que não exclui o reconhecimento de uma falsidade que pode envolver o próprio narrador. No também autobiográfico Born to Run (ed. Elsinore, 2016), Bruce Springsteen (n. 1949) inicia o prefácio com estas palavras: “Nasci numa cidade à beira-mar onde quase tudo é contaminado por uma certa dissimulação. Incluindo eu.”
Oppenheimer
, filme realizado por um cineasta de origem inglesa (Nolan nasceu em Londres, a 30 de julho de 1970), acrescenta um novo capítulo a esta imensa saga narrativa. O seu tratamento da personagem de J. Robert Oppenheimer não teme o risco narrativo e, por isso mesmo, ético de suscitar uma projecção contraditória do espectador: a possibilidade de sentirmos a tragédia íntima de J. Robert Oppenheimer coexiste com o reconhecimento básico do horror da bomba.
Nolan afirma-se, assim, como herdeiro de um modo de pensar o cinema cujas raízes estão no classicismo de Hollywood e num sistema de produção que o mesmo Fitzgerald retratou no romance inacabado The Last Tycoon, publicado em 1941 (O Último Magnate, ed. Relógio D’Água, 2011). Dele existe uma admirável versão cinematográfica, O Grande Magnate, realizada por Elia Kazan em 1976, numa adaptação de Harold Pinter, com um elenco que inclui, entre outros, Robert De Niro, Tony Curtis, Jack Nicholson, Jeanne Moreau e Theresa Russell. Se consultarmos o inefável IMDb, verificamos que, num máximo de 10 pontos, os frequentadores do site lhe atribuem uma classificação média de 6,3. Tendo em conta que, por exemplo, Vingadores: Guerra do Infinito (2018) atinge 8,4 pontos talvez seja tempo de reconhecermos que o amor das personagens, incluindo as suas insolúveis contradições, se tornou um valor escasso.