terça-feira, agosto 15, 2023

“Barbenheimer”:
que fazer com esta palavra?

Margot Robbie (Barbie) e Cillian Murphy (Oppenheimer):
é preciso repensar a distribuição e exibição dos filmes

Os filmes Barbie e Oppenheimer são dois espantosos fenómenos de bilheteira: será que os números chegam para compreender tudo o que está a acontecer? — este texto foi publicado no site da SIC Notícias (31 julho / os números citados das bilheteiras são, obviamente, referentes a essa data).

Assim vai o mundo do cinema: o marketing norte-americano inventou uma palavra (“Barbenheimer”) para “cruzar” dois filmes com lançamento mundial simultâneo — Barbie, de Greta Gerwig, e Oppenheimer, de Christopher Nolan — e os efeitos nas bilheteiras são grandiosos. Nos EUA, o primeiro já arrecadou um pouco mais de 350 milhões de dólares, enquanto o segundo vai nos 174 milhões. Em Portugal, a afluência é também invulgar: 445 mil e 205 mil espectadores, respectivamente, ao fim de duas semanas de exibição (com um total de receitas superior a 4 milhões de euros).
Os resultados são tanto mais surpreendentes quanto estamos perante dois objectos radicalmente diferentes, porventura inconciliáveis. Barbie centra-se numa personagem (boneca, brinquedo da marca Mattel) sem qualquer historial cinematográfico, enquanto Oppenheimer aborda uma personalidade real pouco conhecida do grande público (J. Robert Oppenheimer, líder do Projecto Manhattan que, nos tempos finais da Segunda Guerra Mundial, fabricou as primeiras bombas atómicas), além de ser um filme com a duração de três horas.
Tudo isto me parece muito interessante e, ao mesmo tempo, francamente equívoco. Porquê? Para alinhavar duas ou três ideias, necessito de começar por esclarecer um ponto que considero fulcral (e que tenho repetido vezes sem conta, ao longo de décadas, sendo invariavelmente mal entendido). A saber: não confundo os meus juízos de valor sobre os filmes com as dinâmicas da sua vida comercial.


Ou ainda: Barbie parece-me uma brincadeira fútil, cinematograficamente feita de imitações e citações de filmes bem mais interessantes, enquanto considero Oppenheimer uma das obras mais complexas, impressionantes e perturbantes que vi nos últimos tempos. Mas… e este “mas” é fundamental: a defesa (também de muitas décadas) do cinema como fenómeno específico das salas escuras leva-me a saudar, sem hesitação, o simples facto de, afinal, existirem realmente pessoas que continuam disponíveis para conhecer os filmes (sejam eles quais forem) no lugar original para que foram concebidos — e bem sabemos que esse é um elemento crucial da crise de audiências que todos conhecem e reconhecem.
Daí, creio, a necessidade de lidar com a dimensão (que considero) equívoca do fenómeno. O que está em jogo não é o facto de Barbie ou Oppenheimer serem “melhores” ou “piores” (de acordo com os pontos vista naturalmente — e salutarmente — distintos que vão surgindo). Porquê? Porque o carácter excepcional do fenómeno nos permite perceber que a súbita eficácia desta manobra de marketing acontece depois de muito tempo (duas décadas, pelo menos) em que o marketing mais poderoso — entenda-se: o marketing dos grandes estúdios americanos e seus representantes internacionais — só investiu seriamente na promoção de super-heróis & afins, afunilando a oferta comercial e contribuindo para o desenvolvimento de mercados profundamente desequilibrados. E mais do que isso: mercados em que os filmes mais originais ou, pelo menos, menos típicos eram (e são) sistematicamente secundarizados.


Nesta perspectiva, o que se saúda não é que Barbie tenha estreado em 4243 salas (nos EUA) ou em 183 (em Portugal), como seria normal — ainda bem, é o investimento habitual quando a indústria aposta seriamente num determinado filme. O que realmente se saúda é que Oppenheimer, em vez de ter sido apressadamente rotulado de filme “difícil”, tenha surgido, não em 500 ou 600 ecrãs americanos, mas em 3610 — e que, em Portugal, os mesmos preconceitos não o tenham relegado para duas ou três dezenas de salas, antes acontecendo a sua estreia em 99 ecrãs, subindo para 103 na segunda semana.
Há outra maneira de resumir tudo isto: não basta inventar uma palavra sugestiva (francamente absurda, já agora) para pensar, programar e por em prática uma política coerente e diversificada de distribuição e exibição dos filmes. É preciso começar por avaliar que exposição pública se dá — ou não dá — a cada filme, sobretudo se esse mesmo filme não encaixar nos estereótipos de super-heróis e suas monótonas variações. Como se prova, os espectadores estão disponíveis… Quanto aos decisores da indústria, nos grandes e pequenos mercados, não lhes ficará mal parar um pouco para reflectir — no seu interesse, antes do mais.

* * * * *

>>> Greta Gerwig e Christopher Nolan falam sobre os seus filmes na televisão americana — respectivamente em Good Morning America e Today.