Woody Allen interpretando Leonard Zelig, ou a comédia da identidade |
Há no filme Zelig, de Woody Allen, um jogo entre a verdade e a mentira das imagens que ecoa no nosso presente — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 julho), assinalando a data dos 40 anos do seu lançamento.
A obra-prima de Woody Allen, Zelig, estreou-se há 40 anos, em Nova Iorque, a 15 de julho de 1983. Dois dias mais tarde, no New York Times, Vincent Canby comparava-o com o clássico Citizen Kane/O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Welles: “Zelig é Citizen Kane miraculosamente transformado em delirante comédia.”
O paralelismo está longe de ser um banal juízo de valor. Será preciso lembrar que pensar os filmes é um trabalho que pouco, ou nada, tem a ver com o infantilismo “científico” que, eventualmente, se vai esgotar nas clássicas estrelinhas? A evocação de Welles envolve uma questão cuja perturbação — mediática e política, numa palavra, cultural — continua a pontuar os nossos quotidianos. A saber: não apenas a relação de cada um de nós com a verdade, mas o modo de produção dessa verdade.
Welles encenava a odisseia da personagem que ele próprio interpretava, Charles Foster Kane, um magnate da imprensa com ambições políticas. Em termos esquemáticos, digamos que o filme evolui como um puzzle gerado pela palavra (“Rosebud”) que Kane pronuncia antes de morrer; em sucessivos flashbacks, várias personagens respondem a uma investigação jornalística sobre a identidade de Kane — é um enigma individual que se vai dispersando, não se fixando em nenhuma imagem (nem mesmo através do “esclarecimento” final, dos mais ambíguos que alguma vez foi apresentado por uma narrativa cinematográfica).
Zelig evolui também como um puzzle individual, em torno da figura de Leonard Zelig (interpretado pelo próprio Allen, também responsável pelo argumento). Com uma diferença que está longe de ser secundária: enquanto Kane é aquele que, mesmo com o auxílio de materiais de arquivo e múltiplos testemunhos, se vai escapando a qualquer identificação ou compreensão definitiva, Zelig existe através de uma transfiguração de imagens potencialmente infinita.
Assim, Zelig não se relaciona com os outros, mas com as imagens que os definem. Mais do que isso: Zelig vai existindo através das mais incríveis “duplicações”, adaptando-se, como um camaleão, a qualquer contexto. Vêmo-lo em cenários políticos ou reuniões secretas, assumindo-se como paciente num hospital (veja-se a ilustração deste texto) ou político na Casa Branca, ou ainda gangster num cabaret de duvidosa frequência. A comédia nasce, não daquilo que a personagem faz, mas das “personalidades” que pode assumir para, finalmente, desembocar num mistério romanesco: o amor que encontra na psiquiatra que o trata (Mia Farrow) surge como teste final da sua cura… Será preciso acrescentar que estamos perante uma fábula sobre o ser ou não ser?
Ser ou não ser pessoa, entenda-se, mas também ser ou não ser imagem, filme, transmissão visual. Dir-se-ia que, duas décadas antes da promiscuidade virtual induzida pelo Facebook (e outras redes de discutíveis valores sociais), Allen formula a hipótese de alguém existir apenas através de uma delegação identitária que, em última instância, esvazia a sua dimensão humana — um pouco como as “infuencers” que só existem através das mercadorias que promovem, curiosamente não suscitando qualquer dúvida pedagógica de muitas militâncias feministas.
Há outra maneira de sublinhar a singularidade estética e o génio criativo de um filme como Zelig. Com a fundamental colaboração do director de fotografia Gordon Willis (responsável, por exemplo, pelas imagens da trilogia de O Padrinho), Allen conseguiu uma verdadeira proeza na história dos efeitos especiais. Nada a ver com a destruição de um planeta, cena sim, cena não, à maneira de alguns espectáculos da Marvel & Cª. As imagens (fotográficas e em movimento) de Zelig são trabalhadas para a inserção das várias encarnações da personagem central nos mais diversos cenários, e também para a produção de um efeito de desgaste material (riscos, cortes, etc.) capaz de sugerir o tempo que passou até ao presente do próprio filme.
Esse efeito, de uma só vez dramático e irónico, é tanto mais sugestivo quanto o filme conta com algumas personalidades que aceitaram participar em nome próprio, contribuindo para reforçar a sensação ambígua de assistirmos a um documentário (“mockumentary”, segundo a gíria anglo-saxónica), incluindo Susan Sontag, o nobelizado Saul Bellow e Bruno Bettelheim. Sontag, a primeira a aparecer, coloca mesmo a figura de Leonard Zelig num plano mitológico: “Ele foi o fenómeno da década de 1920. Acreditamos que, nessa altura, era tão conhecido como Lindbergh, o que é realmente impressionante.”
Vale a pena acrescentar algumas palavras da própria Sontag, do seu ensaio “Sobre o estilo” (1965), incluido na colectânea Contra a Interpretação (ed. Gótica, 2004). Resistindo à noção redutora segundo a qual a obra de arte está obrigada a manter alguma proximidade com a nossa “realidade vivida”, diz ela: “Superar e transcender o mundo em arte é também um meio de encontrar o mundo, e de treinar e educar a vontade para estar no mundo.”