A Árvore da Vida (2011), ou a condição humana do cinema |
O cinema está a morrer, ferido por muitas formas de mercantilismo? Talvez, mas os filmes sobrevivem — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 janeiro).
Que aconteceu no cinema ao longo da segunda década do século XXI? Continuando a sua tradição de organizar as memórias cinéfilas por décadas, a editora Taschen lançou recentemente o volume 100 Movies of the 2010s. A série de livros, sempre com coordenação de Jürgen Müller, chega, assim, ao décimo título, completando o balanço de cem anos de filmes a partir dos anos 20 do século passado (a publicação não seguiu a ordem cronológica, tendo começado, em 2001, com o volume dedicado aos anos 90).
Como acontece face a qualquer lista, é sempre possível fazer um inventário dos títulos que faltam — entenda-se: dos títulos que “alguém” entende que faltam, na certeza de que esse “alguém” não possui a razão de uma lei inquestionável. Por mim, então, atrevo-me a perguntar como é possível compreender as dinâmicas dos anos evocados (2011-2020) sem citar, pelo menos, um filme de Jean-Luc Godard, a começar pela prodigiosa experiência com o 3D que é Adeus à Linguagem. Ou que sentido faz evocar “modernices” pretensiosas como A Lagosta, de Yorgos Lantimos, ao mesmo tempo que verificamos que entre os ausentes estão autores da dimensão de Pedro Costa, Pablo Larraín ou Steven Spielberg?
Enfim, não deitemos fora a cinefilia com a água das listas e sublinhemos o essencial: 100 Movies of the 2010s é um guia estimulante para reavaliarmos a pluralidade de um tempo de produção em que, dos criadores aos espectadores, conscientemente ou não, todos fomos (e continuamos a ser) protagonistas de uma avalanche de mudanças.
A conjuntura pode resumir-se através da dicotomia, tão dramática quanto sugestiva, que todos passámos a conhecer. A saber: a coexistência, nem sempre pacífica, entre o circuito tradicional das salas e as alternativas de consumo caseiro — a década ficou marcada, precisamente, pelas convulsões dessa coexistência.
Assim se escreve numa breve, mas muito concisa, apresentação: “Mesmo antes de os habituais intervalos entre o lançamento nas salas e posteriores formas de distribuição se terem tornado ainda mais pequenos, os filmes viram-se muitas vezes reduzidos à condição de mero “conteúdo”, para serem vistos através de um click em ecrãs coloridos.” Daí a angustiada interrogação: “Será que tudo o que resta do cinema é o culto da celebridade, os blockbusters e os efeitos visuais fabricados por computador?”
Apesar de tudo isso (ou através disso tudo), a resposta é negativa. Entenda-se: o que resta do cinema possui a energia positiva inerente a qualquer crise artística, mesmo quando, como é o caso, contaminada por muitos valores predominantemente industriais e comerciais. Se quisermos adoptar a ironia de uma célebre frase de Godard, cada um de nós pode mesmo dizer: “Aguardo a morte do cinema com optimismo.” Sem esquecer que, também no cinema e nas suas histórias, não há axiomas mágicos nem definitivos — a frase, convém lembrar, pertence a uma resposta dada a um inquérito sobre o futuro do cinema francês, organizado pelos Cahiers du Cinéma em… 1965.
Os filmes resistem. Eis a certeza que não podemos nem devemos banalizar, mesmo quando reconhecemos que, face à nossa fraqueza educacional, as gerações mais novas foram (e continuam a ser) massacradas pela ideologia de um marketing transnacional que reduz a percepção do cinema a uma acumulação pueril de proezas técnicas. Mais do que isso: o cinema é frequentemente apresentado — e, por consequência, vivido — como uma coleção mais ou menos espectacular de “eventos” sustentados por gigantescas promoções, não uma paisagem de narrativas. O que, bem entendido, define uma concepção mercantil das artes que afecta muito mais do que o cinema — grande questão política (e para os protagonistas da cena política).
Aquilo que resiste nos filmes começa (ou acaba) por ser um insubstituível princípio ético: o valor humano das narrativas, ou seja, o valor narrativo das personagens. O exemplo está na capa de 100 Movies of the 2010s: aí encontramos a imagem manipulada, mas belíssima, de Joaquin Phoenix no filme Joker (2019), de Todd Phillips — demasiado humanos, actor e personagem transcendem as fronteiras do próprio factor humano, afirmando-se como entidades que só existem no cinema, pelo cinema, através do cinema.
Afinal de contas, por aqui passam títulos tão especiais como A Árvore da Vida (2011), de Terrence Malick, Amor (2012), de Michael Haneke, Chama-me pelo Teu Nome (2017), de Luca Guadagnino, Linha Fantasma (2017), de Paul Thomas Anderson, ou Mank (2020), de David Fincher. Através do génio de tais filmes, diluem-se as fronteiras geográficas e as diferenças entre os respectivos modos de difusão.
Sem esquecer Era uma vez em Hollywood (2019), de Quentin Tarantino, filme que, no prefácio, Jürgen Müller e Philipp Bühler elegem como símbolo das certezas e ambiguidades de uma década em que o cinema, mais do que nunca, se viu compelido a reavaliar os seus modos de ser e viver, talvez morrer. Vale a pena citá-los: “A verdade do cinema é artificial. Tem que ser criada. E ainda assim, se aceitarmos a motivação paradoxal que determina o filme, então o cinema acaba por estabelecer uma conexão íntima com as nossas vidas porque as nossas vidas já são um filme.”