Apocalypse now: Margot Robbie entre a inocência e o pecado |
Damien Chazelle, o realizador de La La Land, reaparece com um filme de invulgar ambição, revisitando a época em que o cinema começava a ter som: Babylon é um verdadeiro épico sobre as contradições da “fábrica de sonhos” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 janeiro).
Convenhamos que o americano Damien Chazelle — nascido em Providence, Rhode Island, a 19 de janeiro de 1985 — será tudo o que se quiser menos um cineasta acomodado em pressupostos académicos. Com La La Land (2016), o seu filme de maior impacto comercial, arriscou mesmo assumir-se como herdeiro directo do género musical, capaz de reinventar as suas componentes para um novo conceito de modernidade. Agora, com Babylon, a ambição é francamente desmedida, resultando, a meu ver, no seu melhor filme: trata-se de construir um épico de três horas de duração sobre os tempos heróicos de Hollywood, em finais da década de 1920, quando a mudança do mudo para o sonoro foi vivida através de muitos êxtases e outras tantas crises.
A opção pelo lançamento de Babylon sem que o título tenha sido traduzido pode induzir em erro. Não estamos, de facto, perante uma simples ironia, típica do cinismo dos tempos. Chazelle reencena essa época mítica de Hollywood como uma verdadeira tragédia bíblica em que as festas, as drogas e os sobressaltos da fama geram uma vertigem apocalíptica: tudo pode decompor-se em nome do fascínio surreal do próprio cinema. Afinal de contas, a “fábrica de sonhos” talvez nunca tenha existido, tudo acontece como um pesadelo vivido no interior de um circo infernal.
E lembramo-nos que, pelo menos desde Sunset Boulevard/Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder, o cinema americano se revê, destrói e reconstrói em narrativas que observam Hollywood como um paraíso perdido, assombrado por muitos fantasmas. Citemos o exemplo, porventura menor, mas emblemático, de O Dia dos Gafanhotos (1975), de John Schlesinger, baseado no romance de Nathanael West: situado numa época muito próxima de Babylon, nele encontramos também esse jogo de espelhos, tão cândido quanto perverso, em que se diluem todas as fronteiras entre a inocência e o pecado, restando o desencanto da “Jazz Age” fixado, em insuperável filigrana, na escrita de F. Scott Fitzgerald.
Ao contrário dos seus filmes anteriores, desta vez Chazelle tem personagens que superam a caricatura e o pitoresco. Interpretado por um Brad Pitt no pleno controle das ambiguidades do seu charme, Jack Conrad é a estrela do cinema mudo que vive iludido pela histeria feérica do universo em que, dentro e fora dos filmes, é protagonista indiscutível; Margot Robbie, por certo uma das poucas actrizes contemporâneas que possui o fulgor das estrelas “antigas”, coloca em cena todos os contrastes de Nellie La Roy, actriz principiante, eterna candidata ao estrelato, condenada a uma aprendizagem de muitas formas de crueldade.
Enfim, o actor mexicano Diego Calva, não sendo propriamente um desconhecido (integrou o elenco da série Narcos: México), pode considerar-se a grande revelação de Babylon. A sua composição de Manny Torres, o assistente que sonha com um lugar na “aristocracia” de Hollywood, possui esse misto de vulnerabilidade e utopia que define uma grande personagem — e também um actor invulgar.