quarta-feira, dezembro 19, 2012

"Amor" ou a evidência da morte

Teremos que nos submeter à ditadura do Big Brother e representar o amor como uma espécie de antologia de "apanhados" de uma tristíssima histeria sexual? Felizmente, ainda há filmes como Amor, de Michael Haneke — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Dezembro), com o título 'Filmando o nosso medo do vazio'.

Há toda uma mitologia, muito antiga e ingloriamente estúpida, que define o “crítico” como aquele que se dá mal com o facto de defender filmes que consigam algum impacto, seja em festivais, seja nos circuitos comerciais... Inútil responder (?) a semelhantes disparates. Em todo o caso, pela minha parte, confesso que reajo com algum desconforto ao facto de observar como o radicalismo dramático de um filme pode ser instrumentalizado pelas convenções correntes da “sociologia” televisiva. Segundo tal visão do mundo, os filmes deixam de ser acontecimentos específicos, com linguagens próprias, para se reduzirem a meras “agendas” para debates (e sabe-se como tantos debates televisivos apenas servem para criar alarido em torno de coisa nenhuma...).
O caso de Amor, de Michael Haneke, é significativo. Assim, logo após o seu triunfo em Cannes, passou a circular todo um subtexto moralista que tende a consagrá-lo como um retrato da “velhice”. Daí à instalação de um discurso piedoso, típico de “talk-show” e profundamente reaccionário, vai um passo... De facto, importa ser fiel à crueza do olhar de Haneke, aliás esplendorosamente encarnada por Emmanuelle Riva e Jean-Louis Trintignant: o que ele filma é essa vertigem, existencial e apócrifa, em que o amor se afirma através da frieza, e também da paradoxal serenidade, com que contempla a evidência da morte.
Creio, por isso, que importa não esquecer a personagem tão discreta e tão intensa da filha (admirável Isabelle Huppert). Quando ela contempla o apartamento silencioso, não é apenas a memória dos pais que se refaz num misto de ternura e impotência; é também o cinema que se celebra como arte que sabe lidar com o medo do vazio. E isso, num mundo envenenado pela pornografia de Big Brother e afins, isso é um valor precioso.