quinta-feira, fevereiro 01, 2018

"Linha Fantasma": corpo e Alma

Daniel Day-Lewis e Vicky Krieps
Linha Fantasma é um filme que renova os prodígios da aliança entre o cineasta americano Paul Thomas Anderson e o actor inglês Daniel Day-Lewis — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 Janeiro), com o título 'Como filmar o desejo de perfeição?'.

Assim vai o mundo. O novo filme de Paul Thomas Anderson, Linha Fantasma, tem como personagem central Reynolds Woodcock, figura de prestígio da alta costura londrina, na década de 1950. Tanto bastou (e basta) para que se lhe cole o rótulo de retrato do mundo da moda. Escusado será dizer que tudo acontece num universo em que o esplendor dos vestidos pontua todos os cenários e situações. Mas tratá-lo como um filme “sobre” a moda será o mesmo que encarar Tubarão (1975), de Steven Spielberg, como um ensaio sobre os hábitos alimentares dos monstros marinhos...
Paul Thomas Anderson
Contemple-se a genial composição de Daniel Day-Lewis: através do rigor das formas dos vestidos de Woodcock, o que ele nos expõe está muito para além da destreza do profissional; trata-se, isso sim, de revelar os contornos da obsessão que o faz mover. A saber: o desejo de uma perfeição absoluta e imaculada, porventura próxima de uma verdade sobre-humana, quer dizer, divina.
Daí a singularidade da sua relação com Alma, a criada de mesa de um restaurante que se transforma na sua musa. Interpretada pela admirável Vicky Krieps (escandalosamente ausente de todas as listas de prémios da temporada), ela vai ocupando um lugar de espectacular ambiguidade, a meio caminho entre a banalidade das tarefas quotidianas e a hipótese de o trabalho de Woodcock atingir um patamar puramente espiritual (e não valerá a pena sublinhar a sugestão simbólica que o seu nome arrasta).
Tudo isto, importa não esquecer, acontece no interior de um insólito triângulo, nada amoroso, por vezes francamente bélico, cujo terceiro vértice é Cyril (Lesley Manville), irmã de Reynolds. Atenta às questões muito terrenas da gestão da casa Woodcock, é ela que procura manter aquele mundo ritualizado no interior de alguma razoabilidade racional, impondo, literalmente, as boas maneiras à mesa.
Por isso é tão difícil definir o que acontece — o que realmente acontece — no interior do filme. De tal estranheza nasce, aliás, o seu fascínio e, mais do que isso, o poder encantatório de todas as situações. Tal como em Haverá Sangue (2007), sobre a corrida ao petróleo no começo do século XX, também com Daniel Day-Lewis no papel central, Paul Thomas Anderson concentra-se numa personagem cujo sonho envolve tanto de utópico como de potencialmente destruidor.
Na sua odisseia, Woodcock (sarcástico apelido...) partilha connosco uma singela descoberta: a procura da perfeição passa pela presença de Alma, mas não se resolve nem consuma nas suas qualidades. Daí, aliás, que tudo no filme seja tão estranhamente erótico. Desde logo, porque o erotismo surge deslocado de qualquer explicitação sexual. Depois, porque o perfeccionismo utópico da costura acontece através da fusão de cada vestido com o corpo, numa dimensão totalmente abstracta que nem o próprio Woodcock sabe definir. Aprende, em todo o caso, que o seu trabalho aponta para o êxtase sem retorno da morte. Paradoxalmente ou não, eis a moral da história: este é um filme feliz, sobre a linha da vida e o seu fantasma.

>>> House of Woodcock, tema da banda sonora original, composta por Jonny Greenwood + trailer.