Do teatro de Shakespeare ao melhor cinema contemporâneo, aprendemos a lidar com as componentes trágicas do destino: “Joker”, prodigioso filme, é um acontecimento fundamental nesse processo narrativo e humano — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Outubro).
Somos todos americanos: a agitação mediática em torno da ameaça de contaminação social pela “violência” do filme Joker é um esclarecedor sintoma do infantilismo narrativo em que vivemos. Entenda-se: não se trata de escamotear as tensões que circulam pelo tecido social (americano ou europeu); trata-se, isso sim, de tentar pensar de forma adulta, superando a equação alarmista segundo a qual a agitação nas ruas, benigna ou letal, se combate através da esterilização artística dos filmes (ou de qualquer outra narrativa).
Os exemplos pontuais não “explicam” o que quer que seja, mas ajudam-nos a resistir ao comodismo moralista. Assim, a 30 de Março de 1981, John Hinckley Jr. tentou matar Ronald Reagan, motivado pela ânsia de impressionar Jodie Foster, depois de a ter visto em Taxi Driver (1976), de Martin Scorsese. Será que alguém, de boa fé, se atreve em 2019 a negar ao filme de Scorsese um lugar fulcral, não apenas na história do cinema, mas na cultura popular do século XX?
E que fazer com o sangue, os gestos apocalípticos e as dores infinitas que circulam pelos textos de Coriolano, Júlio César ou Macbeth? Será que, num misto de candura e estupidez, nos preparamos para enclausurar William Shakespeare num qualquer domínio codificado cuja password só pode ser partilhada por alguns eleitos?
Não esqueço que as questões envolvidas excedem este (ou qualquer outro) filme, não cabendo, nem de longe nem de perto, na brevidade destas linhas. Mas como não reconhecer a cegueira narrativa das nossas sociedades que aceitam (e, mais do que isso, incentivam) o ocultismo barato de Harry Potter como forma de educação das crianças, resistindo a lidar com uma narrativa genuinamente trágica como Joker?
Aliás, em termos culturais e comerciais (é a mesma coisa…), a conjuntura surge ainda mais reveladora. Por um lado, temos assistido à ocupação dos mercados de todo o mundo pelos lugares-comuns dramáticos e técnicos da maioria dos filmes de super-heróis; por outro lado, basta a realização de Todd Phillips arriscar lidar com o imaginário dos mesmos super-heróis, repensando-o e reinventando-o, para que o mais básico gosto do cinema seja posto em causa pela ideologia mediática da vigilância e purificação social.
Sejam quais forem as notícias dos próximos dias, a questão de fundo será sempre outra. A saber: que nos está a acontecer para que as artes específicas das narrativas sejam tratadas como um “produto” cuja legitimidade seria medida pela “influência” que possam ter na vida quotidiana? Mais do que isso: como, porquê e para quê se tenta “explicar” as convulsões mais violentas desse quotidiano a partir das peripécias particulares de uma ou outra narrativa?
Em boa verdade, creio que a questão é infinitamente mais complexa, já que, através da genial composição de Joaquin Phoenix, Joker sabe devolver-nos um tabu contemporâneo. Ou seja: o carácter irredutível de um corpo. Circula por aí a grosseria ideológica de Kim Kardashian e outros “famosos” que celebram o corpo como um banal “gadget” promocional… Proliferam formatos da “reality TV” em que a vida sexual é tratada como uma proeza estatística… Tudo isso se instalou como o novo normal do imaginário do corpo e do desejo. Subitamente, descobrimos Phoenix a representar a estranheza do próprio corpo como elemento identitário e logo soam as trombetas vingativas do cinematograficamente correcto.
Será preciso acrescentar que a América (e o mundo) encontra em Joker um espelho surreal de muitos medos mediáticos ou mediatizados? Não é o Joker de Phillips/Phoenix esse ser solitário cujo desamparo não é estranho à crueldade que transporta? E como olhar as suas contradições sem sentir medo? O mais difícil será reconhecer que ele é o fantasma de cada um de nós — a tragédia nunca foi estranha a algum realismo.