sexta-feira, julho 30, 2021

Billie Eilish, felicidade com lágrimas

Happier Than Ever, segundo álbum de estúdio de Billie Eilish, aí está, celebrando uma felicidade que se diz e canta com lágrimas — na capa e no tema-título. Vogando da intimidade mais austera até uma inusitada energia orquestral, eis o respectivo lyric video.

quarta-feira, julho 28, 2021

McCartney encontra Beck

Nunca digas "com este digital não me envolverei..." Ou seja: Find My Way, um dos temas de Paul McCartney refeitos em McCartney III Imagined (cerca de meio ano depois do lançamento de McCartney III), surge agora encenado através de um exuberante e elegante McCartney digital. A canção foi refeita com a ajuda de Beck... et pour cause.

Regressando a Marienbad (60 anos depois)

Delphine Seyrig

É uma das referências incontornáveis do cinema moderno, em particular da produção francesa: O Último Ano em Marienbad, de Alain Resnais, foi lançado a 25 de junho de 1961 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 junho), com o título 'O cinema moderno é uma questão de geometria'.

Alain Resnais
Em 1961, como era o cinema? Exuberante e contrastado. Em Hollywood, por exemplo, West Side Story, de Robert Wise e Jerome Robbins, celebrava a energia do musical, já não em estúdio, mas em cenários urbanos. O espanhol Luis Buñuel vencia o Festival de Cannes com Viridiana, logo proibido pela ditadura franquista. Itália tinha um ano marcado por La Dolce Vita, de Federico Fellini, A Noite, de Michelangelo Antonioni, e Accattone, primeira longa-metragem de Pier Paolo Pasolini. Entretanto, em França, a 25 de junho, estreava-se O Último Ano em Marienbad, de Alain Resnais — 60 anos depois, o fascínio permanece.
Claro que a modernidade cinematográfica — entenda-se: a discussão e superação dos modelos que definiram a produção clássica, tanto na Europa como nos EUA — é um fenómeno de muitos filmes que, como todas as convulsões artísticas, não de define a partir de uma única data ou um acontecimento isolado. Seja como for, procurando na dinâmica do cinema que estava a ser feito no começo daquela frondosa década de 60, não haverá muitos títulos capazes de simbolizar o fulgor da modernidade como O Último Ano em Marienbad.
Lembremos o óbvio: Resnais não era um criador solitário, estava até muito bem acompanhado pelos cúmplices da Nova Vaga francesa. Ele era o “velho” companheiro: nascido em 1922, tinha já uma importante obra documental, iniciada em meados dos anos 40, incluindo o fundamental Noite e Nevoeiro (1955), título incontornável na abordagem do Holocausto. De qualquer modo, em 1959, o seu primeiro trabalho de longa-metragem, Hiroshima, Meu Amor, servira de bandeira da ousadia criativa da Nova Vaga, a par de obras tão emblemáticas como O Acossado, de Jean-Luc Godard, e Os 400 Golpes, de François Truffaut.

Quem foi a Marienbad?

Durante um debate, algures na década de 60, Godard terá sido questionado sobre o experimentalismo narrativo da Nova Vaga: não seria que, para construir um filme, se impõe que haja “princípio, meio e fim”? A resposta do autor de Pedro, o Louco tornou-se lendária: “Sim, mas não necessariamente por essa ordem.”
Podemos apostar que Resnais não ficaria escandalizado com tal ideia. E não haverá filme mais eloquente para o ilustrar do que O Último Ano em Marienbad — a ponto de ser difícil, para não dizer impossível, resumi-lo através de um sinopse tradicional em que, para lá da clássica ordem narrativa, possamos encontrar os habituais mecanismos de “causa” e “efeito”.
Que acontece, então? Tudo se passa nos sumptuosos cenários de um hotel, verdadeiro labirinto de salões, espelhos e corredores, que alguém descreve de forma paradoxal, objectiva e enigmática. Como se o cinema moderno fosse uma questão de geometria: “Corredores intermináveis sucedem-se a corredores silenciosos e desertos, sobrecarregados por painéis de talha dourada, encravados em mármores negros…”
Que voz nos descreve, assim, aquele local encantado e encantatório? Não sabemos. Estranhamente, as palavras repetem-se, desembocando num salão em que uma plateia de porte aristocrático assiste a uma representação teatral… Mas onde está o teatro? Porque é que as personagens se comportam como se estivessem a debitar o texto de uma peça?
É neste espaço sem fronteiras precisas que um homem se dirige a uma mulher, dizendo-lhe que já se conhecem: ter-se-ão cruzado, um ano antes, nos cenários igualmente grandiosos de Marienbad (nome alemão de Marianske Lazne, estação termal da actual República Checa, na região de Karlovy Vary). Não, diz a mulher: não o reconhece e nunca esteve em Marienbad… Ele é interpretado por Giorgio Albertazzi, ela é Delphine Seyrig — o filme não lhes dá nomes, parecem existir como fantasmas anónimos da sua própria identidade.
Dir-se-ia que viajamos no interior de uma verdadeira performance que existe e respira como um quadro cubista: o espaço está em constante mutação, o tempo não é linear e mesmo quando somos confrontados com a descrição de algo que aconteceu, não temos a certeza se se trata de uma evocação objectiva ou de um quadro gerado por uma imaginação inevitavelmente subjectiva.

Cinema & música

Se outros autores da Nova Vaga investiram muito na reconversão, ao mesmo tempo crítica e festiva, de um certo visual clássico (lembremos Godard, em O Acossado, revisitando as memórias de Humphrey Bogart e do filme “noir”), Resnais foi um cineasta seduzido, antes do mais, pelos poderes evocativos das palavras — e, mais concretamente, pela sensualidade da escrita literária.
Daí a sua proximidade com o trabalho de alguns escritores: Hiroshima, Meu Amor tinha argumento de Marguerite Duras, enquanto O Último Ano em Marienbad foi escrito por Alain-Robbe Grillet, na altura um dos expoentes do chamado “Nouveau Roman” (de que o seu La Jalousie, publicado em 1957, tinha sido uma das obras definidoras). O que ambos procuram não é, de facto, uma história em que os comportamentos das personagens possam ser “explicados” por motivações psicológicas mais ou menos reconhecíveis. No limite, O Último Ano em Marienbad é mesmo um filme sobre o assombramento das relações humanas — em particular, as cumplicidades amorosas — e as ilusões construída sobre aquilo que vemos ou julgamos decifrar. Falecido em 2014, contava 91 anos, Resnais praticou o cinema como essa arte da mais profunda ambiguidade — ver ou não ver, eis a questão. O que, entenda-se, nunca excluiu (bem pelo contrário) os traços de um humor de envolvente delicadeza, em particular nos seus filmes “musicais” como É Sempre a Mesma Cantiga (1997) ou Nos Lábios Não (2003). Sem esquecer que o seu filme final, lançado em 2014, possui um título que tem qualquer coisa de programa político: Amar, Beber e Cantar.

"Funeral de Estado"
— um acontecimento

Por certo um dos acontecimentos fulcrais do nosso ano cinematográfico de 2021: em Funeral de Estado, Sergei Losznitsa evoca as cerimónias fúnebres de Josef Estaline (1879-1953), trabalhando a partir dos próprios materiais de propaganda do regime comunista soviético. Ou como o cinema pode ser a arte de discutir a significação das imagens — e, nessa medida, os poderes das palavras.

terça-feira, julho 27, 2021

Julia Ducournau: "uma nova humanidade"

Poucos dias depois do triunfou de Titane no Festival de Cannes, o canal franco-alemão Arte, também coprodutor do filme de Julia Ducournau, disponibilizou esta entrevista com a realizadora. Tudo começa pelas relações entre corpo e metal, essencial na definição da personagem central do filme, conduzindo a uma nova dialéctica do factor humano — a entrevista é conduzida por Olivier Père, responsável pelo departamento Arte Cinéma France.

segunda-feira, julho 26, 2021

A inocência perdida de Luis Buñuel

O Charme Discreto da Burguesia (1972)

Agora com uma especialíssima edição em DVD, o cinema de Luis Buñuel cruza realidade e fantasmas, levando-nos a questionar a ordenação moral do nosso mundo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 junho).

Cena clássica do espanhol Luis Buñuel: quatro homens e três mulheres chegam a um palacete, sendo encaminhados para uma sala onde está uma mesa preparada para uma refeição. Deduzimos que serão convidados, uma vez que são recebidos por um empregado, talvez um mordomo, que lhes diz: “O senhor e a senhora não vão demorar.” Há uma estranheza no ar que se adensa quando o mesmo empregado surge com uma travessa com dois frangos assados (em plástico?); deixa-os cair no chão para, de imediato, os apanhar e colocar na mesa…
“Que brincadeira é esta?”, pergunta um dos convivas, logo começando a ouvir-se uma série de sons secos e ritmados, dir-se-ia alguém a martelar. Os sons parecem converter-se em pancadas de Molière, como se assistíssemos ao prólogo de uma representação teatral… A cena passa a ser-nos mostrada a partir de um novo ponto de vista e, de facto, agora, vemos que o espaço em que se encontra a mesa possui uma cortina vermelha que faz lembrar um palco. A cortina abre-se e assim é: as personagens estão num palco, perante uma plateia lotada [video].
É, seguramente, a cena mais célebre de O Charme Discreto da Burguesia, realização de Buñuel que, em representação da França, ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro referente a 1972. Nela confluem duas componentes tradicionalmente associadas ao universo buñueliano. A saber: a visão cáustica das classes dominantes e a sensação de que a realidade está sempre em contacto com o seu “oposto” surreal.
O filme ressurgiu agora no mercado português, através de uma magnífica edição em DVD. Mais exactamente, passou a existir uma caixa de obras de Buñuel intitulada “O Período Francês”. Nela encontramos seis títulos fundamentais: Diário de uma Criada de Quarto (1963), adaptação de Octave Mirbeau, em tom de perversa austeridade, com Jeanne Moreau; Belle de Jour (1967), obra-prima absoluta sobre as ambiguidades do desejo e do território conjugal, com Catherine Deneuve; A Via Láctea (1969), revisitando os dogmas do catolicismo através de uma peregrinação a Santiago de Compostela; e ainda a trilogia final de Buñuel que, para lá de O Charme Discreto da Burguesia, inclui O Fantasma da Liberdade (1974) e Este Obscuro Objecto do Desejo (1977). Precisamente para lembrar que a dimensão surreal de Buñuel não é, historicamente, estranha ao surrealismo, a edição integra ainda, como extras, os dois filmes em que colaborou com Salvador Dalí: Um Cão Andaluz (1929) e A Idade de Ouro (1930).
Em qualquer caso, lembremos que momentos como a cena citada não se esgotam na ideia de que a nossa experiência de vida, por mais realista que possa parecer (ou por nós ser descrita), nunca é estranha às atribulações próprias dos sonhos. No limite, tudo se passa como se a própria noção de realidade fosse, não o nosso ponto de partida para habitar o mundo, mas uma ilusão de que é impossível regressar. Como se não houvesse realidade, apenas a impossibilidade de concretizarmos a sua lógica. Ou o pensamento dessa lógica. Jean-Pierre Cassel, um dos intérpretes da cena, diz mesmo estas palavras de pânico: “Que faço aqui? Não conheço o texto.”
Creio, assim, que os títulos dos filmes finais de Buñuel não são meras descrições irónicas (mesmo se é verdade que neles deparamos com as mais desconcertantes formas de humor). O “charme discreto” alude, como é óbvio, a esse misto de distância e sedução com que a “burguesia” mobiliza a nossa atenção. Por outro lado, que a “liberdade” esteja do lado do “fantasma”, eis o mais incómodo dos teoremas políticos. Enfim, o “desejo” e o seu “obscuro objecto” lembram-nos que somos seres inebriados pela nitidez daquilo que, afinal, nos escapa e ilude.
Buñuel tem a sua trajectória criativa associada a peripécias mais ou menos “escandalosas” — recordemos apenas o caso de Viridiana (1961), Palma de Ouro em Cannes, condenado por “blasfémia” pelo Vaticano, tendo sido exibido em Espanha apenas a partir de 1977, cerca de dois anos depois da morte do ditador Francisco Franco. O certo é que a passagem do tempo não anulou a perturbação mais funda do seu cinema. Chamemos-lhe inocência perdida: em filmes como O Charme Discreto da Burguesia, a ordenação moral do mundo pouco mais é do que uma utopia pueril. Ou melhor, um teatro necessário que interpretamos como actores à deriva.

Donald Trump: narcisismo vs. política

O veterano jornalista Carl Bernstein e a autora Ruth Ben-Ghiat participam numa conversa, na CNN, sobre o factor narcisismo no comportamento de Donald Trump. É uma conversa eminentemente pedagógica, sublinhando como a compreensão da política — e, em particular, os seus desvios ditatoriais — não pode ignorar os perfis psicológicos e emocionais dos respectivos protagonistas.


sábado, julho 24, 2021

Lin-Manuel Miranda
— o prodígio da Broadway [2/3]

Lin-Manuel Miranda no papel de Alexander Hamilton

Na obra do criador do musical Hamilton cruzam-se as raízes latinas e a herança de Hollywood: através do trabalho de Lin-Manuel Miranda, teatro e cinema reinventam as suas alianças — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 junho).

[ 1 ]

Nascido em data incerta (1755 ou 1757), Alexander Hamilton é uma figura emblemática entre os “founding fathers” (à letra: “pais fundadores”) da nação americana, isto é, aqueles que assinaram a Declaração de Independência, a 4 de julho de 1776. Entre 1789 e 1795, desempenhou as funções pioneiras de secretário do Tesouro no governo de George Washigton, primeiro presidente dos EUA. Seja como for, não se poderá dizer que estejamos perante uma personagem frequente nas obras, teatrais ou cinematográficas, que abordam aquele período da história dos EUA.
Essa memória “incerta” terá sido essa uma das razões para Lin-Manuel Miranda se interessar pela personagem (assumindo mesmo a sua interpretação na primeira temporada na Broadway): na figura sedutora e enigmática de Hamilton encontramos uma perturbante duplicidade histórica que é também, naturalmente, uma fascinante matéria dramática e dramatúrgica.
Hamilton foi um dos inspiradores e, mais do que isso, um agente dos valores de liberdade inerentes à fundação dos EUA, ao mesmo tempo que o país escravizava os afro-americanos. Numa entrevista dada à rádio pública americana (NPR) a propósito do lançamento de Hamilton em filme, Lin-Manuel Miranda sublinhou isso mesmo, dizendo que “o passado não pára de ajustar contas connosco.” Ou ainda: “Embora tenha assumido posições anti-escravatura, Hamilton manteve-se no interior do sistema.”
A ousadia artística de Hamilton pode medir-se através da sua pluralidade musical. Assim, se é verdade que a exuberância dos seus quadros nos remete para o riquíssimo património da Broadway e de Hollywood — envolvendo compositores da estirpe de Cole Porter ou George Gershwin, a par de cineastas como Vincente Minnelli —, não é menos verdade que Lin-Manuel Miranda se afirma como um devorador de referências, tão original quanto imaginativo, integrando “desvios” que vão da soul ao hip hop.
A harmonia de tais contrastes encontra a sua expressão mais radical na própria distribuição dos papéis. Assim, o elenco de Hamilton altera (apetece dizer, como num jogo: baralha e volta a dar) as correspondências tradicionais entre actores e personagens. Exemplos? Aaron Burr Jr., o advogado e político que matou Hamilton num duelo, e Thomas Jefferson, que viria a ser o terceiro presidente dos EUA, são personagens brancas interpretadas por actores negros — respectivamente, Leslie Odom Jr. e Daveed Diggs.
Quer isto dizer que tudo é intermutável? E que a história não passa de um baile de máscaras? Nada é tão simples, para mais no contexto político-cultural americano, atravessado por conflitos históricos e sociais, materiais e simbólicos que, como foi notório, a presidência de Trump agravou.

sexta-feira, julho 23, 2021

Billie Eilish, o futuro mais que presente

My Future foi a primeira canção conhecida do segundo álbum de Billie Eilish — surgiu a 30 de julho de 2020, exactamente um ano antes da data marcada para o lançamento de Happier Than Ever. É também um dos temas recentemente recriados por Eilish e o seu irmão Finneas no Prime Day Show, gravado para o Prime Video da Amazon — eis o respectivo registo.

quarta-feira, julho 21, 2021

Crónica sobre a TAP

REMBRANDT
Auto-retrato, 1630

1. Como muitos outros passageiros da TAP, fui um dos afectados pela greve da Ground Force, não tendo podido regressar de Cannes (aeroporto de Nice) no voo do dia 18 (TP483) para o qual tinha bilhete.

2. Acabei por receber a comunicação de uma alternativa para o dia 19 (TP487), cerca de 30 horas mais tarde que o horário inicialmente previsto — em boa verdade, fui dos menos prejudicados.

3. Vários colegas jornalistas que tinham bilhetes para o mesmo voo do dia 18 receberam propostas (quando receberam) de alternativas completamente diferentes, uma delas para quinta-feira, dia 22, outra para uma semana mais tarde, no domingo, dia 25 — sem qualquer indicação sobre eventuais apoios a despesas para a permanência em França durante mais uma semana. Um desses colegas recebeu mesmo a sua proposta na terça-feira, dia 20, quando, tendo procurado alternativas de transporte, já se encontrava em Portugal.

4. Tudo isto reflecte, no mínimo, graves problemas de organização interna e, muito em particular, uma desastrada relação com os consumidores com bilhetes pagos.

5. A gravidade da situação adquire uma dimensão de trágico absurdo quando verificamos as condições em que foi efectuado o voo do dia 19 (em que regressei). Na verdade, o avião teria, no máximo, uma ocupação de 50%, havendo dezenas de lugares disponíveis. Daí uma pergunta muito básica: porque é que os outros passageiros que tinham bilhete para o dia 18 não foram encaminhados para o voo do dia 19?

segunda-feira, julho 19, 2021

Billie Eilish, "Your Power"

Your Power era uma das novas canções de Billie Eilish — do álbum Happier than Ever (30 julho) — que já tinha sido editada em teledisco. Reaparece agora numa imaculada e ajustera interpretação. Na companhia do irmão, Finneas O'Connell, dir-se-ia que Billie descobriu uma variação dos espaços de Twin Peaks fabricados através de imponentes cortinas. Esplendor do minimalismo.
 

"Titane", Palma de Ouro

O júri do 74º Festival de Cinema de Cannes, presidido por Spike Lee (com o rosto a dominar o cartaz), não receou consagrar um dos filmes mais ousados desta edição: Titane, uma fábula tecno-carnal, arrebatou a Palma de Ouro — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 julho).

Se “choque” foi uma palavra incontornável da 74ª edição do Festival de Cannes, dois filmes ilustraram os respectivos ecos mediáticos: Benedetta, em que Paul Verhoeven encena o amor de duas freiras na Itália do século XVII, e Titane, fábula terna e cruel de Julia Ducournau sobre uma jovem em cujas veias o vermelho do sangue foi substituído pelo negrume do óleo de motores de automóveis… O júri oficial, presidido pelo realizador americano Spike Lee, deixou de lado as atribulações do amor lésbico, escolhendo consagrar a fábula tecno-carnal de Ducourau: Titane ganhou a Palma de Ouro [video: conferência de imprensa da equipa do filme].
Se o mais importante fosse a logística de palco da cerimónia dos prémios, esta edição festiva de Cannes (depois da interrupção forçada de 2020) ficaria como um desastre apoteótico. A começar pelo facto de Spike Lee, muito à vontade e sempre bem disposto, com um exuberante fato colorido, se preparar para anunciar a Palma de Ouro (o prémio final, como manda a tradição) logo a abrir a cerimónia… De tal modo que outro membro do júri, o actor francês Tahar Rahim, achou por bem abandonar o seu lugar, sentando-se ao lado do presidente de modo a garantir a boa prossecução dos trabalhos — tudo em ambiente de contagiante boa disposição, há que reconhecer.
Titane
é um objecto de inclassificável fascínio, mesmo se nele podemos reconhecer influências mais ou menos ligadas ao género de terror: a própria Julia Ducournau não se cansa de referir a sua dívida artística para com David Cronenberg. Aliás, a história da jovem que tem uma placa de titânio na cabeça (na sequência de um acidente de automóvel, ainda criança) envolve uma contaminação entre corpo e metal que suscitou muitas comparações com Crash, de Cronenberg (prémio especial do júri em Cannes/1996).
Com a sua ambiência de conto fantástico fabricado através de um realismo delirante dos corpos e da pele, Titane ficou como afirmação festiva de um cinema que não renega, mas dispensa, as regras da dramaturgia clássica. Nesta perspectiva, talvez se possa dizer que outros títulos também ligados a um certo mal estar de “civilização”, como Tre Piani, de Nanni Moretti, ou Tout S’Est Bien Passé, de François Ozon, terão ficado fora do palmarés devido às suas narrativas mais “tradicionais”.
Sublinhando as singularidades da sua heroína, Julia Ducournau agradeceu o prémio lembrando a importância de combater as “barreiras da normalização que nos encerram e separam”, formulando o desejo de “um mundo mais inclusivo e mais fluido.” Deixando também a palavra de ordem da noite (e de todo o festival): “Obrigado ao júri por ter deixado entrar os monstros.”
As distinções “ex-aequo” (Grande Prémio e Prémio do Júri) fazem supor que os jurados terão tido alguma dificuldade em estabelecer consensos, mesmo se podemos compreender os ecos simbólicos das suas distinções. Assim, o tailandês Apichatpong Weerasethakul lembrou a importância de, em conjuntura pandémica, os governos “acordarem e agirem pelas suas populações” (referindo-se à Tailândia e também à Colômbia, onde o seu filme foi rodado), enquanto o iraniano Asghar Farhadi falou mesmo em “salvar o meu país e acordar as consciências”.
Foi, enfim, uma cerimónia cujas mensagens foram mais fortes que as atribulações de encenação. Ao apresentar o Grande Prémio, Oliver Stone deixou uma dessas mensagens, das mais claras e também das mais urgentes para uma vida mais saudável, quer no plano cultural, quer em termos económicos, de todo o planeta do cinema. A saber: em Cannes foi possível ver o que realmente interessa, isto é, “filmes que não são escritos por algoritmos.”


* * * * *

PALMARÉS

Palma de Ouro
TITANE, Julia Ducournau

Grande Prémio (ex-aequo)
UN HÉROS, Asghar Farhadi
COMPARTIMENT Nº6, Juho Kuosmanen

Prémio do Júri (ex-aequo)
LE GENOU D'AHED, Nadav Lapid
MEMORIA, Apichatpong Weerasethakul

Realização
Leos Carax (ANNETTE)

Actor
Caleb Landry Jones (NITRAM)

Actriz
Renate Reinsve (JULIE (EN 12 CHAPITRES))

Argumento
Riusuke Hamaguchi (DRIVE MY CAR)

Palma de Ouro (curtas)
TOUS LES CORBEAUX DU MONDE, Yi Tang

Câmara de Ouro
MURINA, Antoneta Kusijanovic

domingo, julho 18, 2021

Lin-Manuel Miranda
— o prodígio da Broadway [1/3]

Na obra do criador do musical Hamilton cruzam-se as raízes latinas e a herança de Hollywood: através do trabalho de Lin-Manuel Miranda, teatro e cinema reinventam as suas alianças — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 junho).

No dia 2 de dezembro de 2018, pelo segundo ano consecutivo, Donald Trump não esteve presente na cerimónia dos prémios honorários atribuídos pelo Kennedy Center, em Washington. Entre os homenageados, Cher e Lin-Manuel Miranda tinham já sido questionados sobre a acção do 45º presidente dos EUA, ambos dando conta de uma visão profundamente negativa. No caso de Lin-Manuel Miranda, a opinião não podia ser mais telegráfica: “Demita-se”.
Provavelmente, tão contundente declaração fez com que o rótulo de artista “político” se colasse à figura de Lin-Manuel Miranda, actor, encenador, compositor e produtor nascido em Nova Iorque, em 1980, de ascendência porto-riquenha. Convenhamos que tal classificação simplifica de forma fácil e equívoca a conjuntura em que tudo aconteceu e, mais do que isso, as singularidades do seu labor artístico.
Lin-Manuel Miranda
Nessa altura e, em boa verdade, durante todo o mandato de Trump, proliferaram as clivagens entre o presidente e o mundo das artes e do espectáculo. Neste caso particular, ele passou a ser o único presidente que faltou ao evento do Kennedy Center por opção (não aceitou o convite) — acontecera antes com Jimmy Carter, George H. W. Bush e Bill Clinton, em 1979, 1989 e 1994, respectivamente, mas por força da agenda política. Mais do que isso: na altura, era já muito claro que a dimensão política do labor criativo de Lin-Manuel Miranda não se esgotava num qualquer “soundbyte” para uso mediático.
Em 2018, convém lembrar, Lin-Manuel Miranda era já encarado como um genuíno prodígio. O seu musical Hamilton tinha-se imposto como um acontecimento transformador na dinâmica cultural “made in USA”. Depois da estreia no Public Theater, de Nova Iorque, a 20 de janeiro de 2015, conquistara a Broadway, vindo a acumular uma invulgar colecção de distinções, entre as quais onze prémios Tony, incluindo melhor musical, um Grammy para melhor álbum do teatro musical e, por fim, um Pulitzer, referente a 2016, na categoria de espectáculo teatral.
O reconhecimento de Hamilton no Kennedy Center envolveu mais três elementos fundamentais para a sua concepção e gestação: o encenador Thomas Kail, o director musical Alex Lacamoire e o coreógrafo Andy Blankenbuehler. Consagrava-se, de facto, uma matriz de espectáculo, não apenas profundamente enraizada na cultura popular dos EUA — dos palcos ao cinema —, mas também envolvendo sempre um misto de celebração exuberante e questionamento da própria identidade histórica da América. De acordo com um dos versos mais citados de Lin-Manuel Miranda, trata-se de encarar a América como “grande sinfonia inacabada”.
Uma prova muito real da energia teatral de Hamilton e dos seus cruzamentos com as linguagens cinematográficas está no registo filmado do musical, com o encenador Kail a assumir as tarefas de realização. Rodado ao longo de três performances, em junho de 2016, teve o seu lançamento adiado, primeiro para não retirar público à carreira internacional do espectáculo (a estreia em Londres, no West End, ocorreu em 2017), depois por causa das restrições impostas pela pandemia. Acabou por ser estreado pela Disney + [trailer], em julho de 2020 (está actualmente disponível em Portugal, na mesma plataforma).

Cannes, 1996 / 2021

Em cima, o rosto de Agathe Rousselle em Titane, de Julia Ducournau, Palma de Ouro de Cannes/2021.
Em baixo, as pernas de Rosanna Arquette em Crash, de David Cronenberg, Prémio Especial do Júri de Cannes/1996.
Ou como se diz no filme mais antigo: "A reconversão do corpo humano através da tecnologia."

sábado, julho 17, 2021

Da Rússia para Cannes

Milana Aguzarova em Unclenching the Fists, talvez a maior revelação de Cannes/2021 (acabou por ganhar a secção "Un Certain Regard") — a odisseia da jovem Ada, enredada numa teia masculina, desenvolve-se como um retrato visceral de uma povoação da Ossétia do Norte, num registo de áspero realismo que não exclui o pressentimento de uma transcendência sem nome. Ou como o cinema russo se afirma e renova. Assinando argumento e realização, fica um nome a ter em conta: Kira Kovalenko.

quinta-feira, julho 15, 2021

"Titane", ou a carne e o metal

Presente na competição de Cannes, a segunda longa-metragem da francesa Julia Ducournau, Titane, segue as atribulações de uma jovem mulher (a certa altura ocultando-se numa identidade masculina) que devido a um acidente de infância tem uma placa de titânio na cabeça. De tal modo que toda a sua existência evolui, se assim nos podemos exprimir, entre a carne e o metal — a ponto de isso transfigurar o seu próprio destino materno.
Sob a tutela de Cronenberg, Ducouranu (autora de um primeiro filme intitulado Grave, 2016) é uma vidente cinematográfica dos nossos tempos de trágica reconversão material e simbólica dessa entidade a que chamamos corpo. Por vezes com um humor cortante — literalmente.

segunda-feira, julho 12, 2021

Nanni Morreti regressa a Cannes

O título: Tre Piani. Isto é, "três andares" de um prédio de Roma. Ou ainda: três histórias familiares que desemboca em três milhões de detalhes, perplexidades e revelações. Assim é o cinema de Nanni Moretti, cada vez mais depurado, vivendo de um sentido raro de observação do factor humano. Vinte anos depois de ter conquistado a Palma de Ouro, com O Quarto do Filho, está na linha da frente para repetir a proeza.

domingo, julho 11, 2021

Realismo russo em Cannes

Belo cartaz e belo filme. Apresentado em Cannes, na secção "Un Certain Regard", Les Poings Desserrés, da cineasta russa Kira Kovalenko é uma história da região da Ossétia do Norte, expondo os silêncios cruéis de uma família sem mãe. Ou como, nas mais diversas paragens, o realismo continua a estar na ordem do dia.

sexta-feira, julho 09, 2021

The Velvet Underground por Todd Haynes

A imagem invertida? Ou como num espelho?
O filme chama-se The Velvet Underground e é um retrato da banda de Lou Reed, John Cale & etc. feito por Todd Haynes. Apresentado na selecção oficial de Cannes, extra-competição, trata-se de um prodigioso trabalho de inventariação da história dos Velvet, cruzado com uma reflexão actualíssima sobre as condições materiais e espirituais da produção artística — a estrear em outubro, na Apple TV+.

quinta-feira, julho 08, 2021

Woodstock 1999, documentário

"Peace, love & music", dizia o lema de Woodstock. Foi em 1969. Trinta anos depois, as comemorações deslizaram da nostalgia para um aparatoso e inquietante desastre — um verdadeiro pesadelo logístico, humano e cultural. As memórias de Woodstock 1999 são agora tema de um documentário, realizado popr Garret Price, que a HBO vai lançar a 23 de julho. Eis o trailer de Woodstock 99: Peace, Love, and Rage.

quarta-feira, julho 07, 2021

Jodie Foster, "à la française"

Distinguida com uma Palma de Ouro honorária na cerimónia de abertura do 74º Festival de Cannes, Jodie Foster surgiu (e falou!) como símbolo exemplar de um genuíno amor pelo cinema — mais do que isso, da sua resistência enquanto linguagem específica, mesmo (ou sobretudo) em tempo de pandemia. Eis algumas palavras da sua luminosa intervenção no Palácio dos Festivais.

segunda-feira, julho 05, 2021

Philippe Sollers
ou a alegria dos agentes secretos

Num livro auto-biográfico, Philippe Sollers propõe a redescoberta de Cortina Rasgada, um filme de Alfred Hitchcock — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 maio).

Vivemos em pleno niilismo mediático. Da política ao futebol, acordamos de manhã, ligamos as nossas antenas e ficamos a saber que nem sequer faz sentido temer o apocalipse — já aconteceu, é tudo pós-apocalítico, nada resta do humano a não ser a miséria das suas obscenidades. Neste tempo que elegeu a queixa e a denúncia como linguagens dominantes, alguém se escapa às obrigações niilistas, escrevendo assim: “A alegria é a minha filosofia essencial. Alegria, jóias, pensem o que quiserem, mas a alegria antes de tudo. É uma espécie de contemplação contínua.”
Importa dizer que a ligação das palavras “alegria” e “jóias” não é tão arbitrária quanto parece. Primeiro, por causa das semelhanças da sua sonoridade em francês: “joie” e “joyaux”. Depois, porque o autor nasceu Philippe Joyaux, a 28 de novembro de 1936, tendo desde o primeiro romance (Uma Curiosa Solidão, 1958) adoptado a assinatura de Philippe Sollers.
Com uma obra imensa, nos últimos anos repartida por romances breves que existem como outros tantos opúsculos filosóficos (Désir e Légende, de 2020 e 2021, são os mais recentes), Sollers escreve sobre a alegria em Agent Secret (Mercure de France, 2021), afinal um livro auto-biográfico. Não no sentido pitoresco de acumulação de lugares e datas. Antes resistindo à pornografia confessional do presente, celebrando um segredo ambíguo, partilhado com os outros, dos outros escondido. Está no título, envolve um método de viver e pensar: “Como uma criança, corro muito depressa, é normal, sou um agente secreto. Sem segredo não há nada.” Um verdadeiro programa político que a língua francesa consagra com discreta elegância: a mesma palavra, “secret”, serve para dar nome e adjectivar: “segredo” e “secreto”.
Através da colagem de evocações familiares, imagens e variações políticas e poéticas, a estrutura de Agent Secret faz lembrar o clássico Roland Barthes por Roland Barthes (Edições 70), cuja primeira edição surgiu em 1975. Não por acaso, como é óbvio: Sollers foi editor de Barthes, evocando o mestre e amigo em algumas das páginas mais comoventes de Agent Secret. Morto num acidente em 1980, contava 64 anos, Barthes foi também um modelo do paradoxo que ilumina a escrita de Sollers: contundência e discrição. Sollers resume, assim, o estado das coisas: “A discrição é, na verdade, qualquer coisa de delicioso, oposto a tudo aquilo que invadiu o espaço humano, agora dedicado ao jornalismo absoluto em que tudo é, por definição, indiscreto. Com a chegada da Internet, vivemos numa sociedade de indiscrição generalizada.”
Daí a atenção prestada por Sollers a todos os sistemas, sejam eles políticos ou de linguagem (uns confundem-se com os outros), que tentam encerrar a singularidade humana em modelos fechados e, em última instância, repressivos. Num capítulo fascinante de Agent Secret, Sollers refere o “período extremamente tenso” que estamos a viver, assombrado por um “desejo de totalitarismo”, para evocar alguém que “como ninguém, compreendeu esse totalitarismo interior”. A saber: Alfred Hitchcock (1899-1980).
Numa breve deambulação “hitchcockiana”, Sollers cita um dos seus filmes menos vistos, durante décadas amaldiçoado por um imaginário de esquerda, de sensibilidade comunista: Cortina Rasgada (1966), “thriller” com Paul Newman e Julie Andrews (de que Sollers publica o maravilho cartaz francês, Le Rideau Déchiré). Será preciso lembrar que se trata de uma espécie de anti-James Bond, tendo por pano de fundo as tensões sinalizadas pela Cortina de Ferro? É a aventura de um cientista americano (Newman) que, em pose de agente secreto, se infiltra nos meios académicos da Alemanha de Leste, país peão da URSS, para tentar roubar a fórmula científica que permitirá fabricar uma nova arma de guerra…
Sollers recorda o óbvio, isto é, o modo como esse “jesuíta britânico” que era Hitchcock se empenhou “contra o totalitarismo estalinista da época”. Destaca, em particular, a cena da fuga dos protagonistas quando, na plateia de uma sala de espectáculos já rodeada por elementos da polícia e dos serviços secretos, Newman instala uma confusão salvadora, gritando: “Fogo!” Como escreve Sollers, assistimos ao triunfo de uma regra fundamental no universo de Hitchcock: “o espectáculo dentro do espectáculo”. Ou ainda: “o teatro dentro do teatro, como em Shakespeare”. Tudo isto, claro, encenado com sereníssima alegria.

Amazon/MGM
— Hollywood já não é o que era [3/3]

A Metro Goldwyn Mayer foi comprada por Jeff Bezos, patrão da Amazon: o estúdio possui um património imenso, de clássicos como E Tudo o Vento Levou até aos filmes de James Bond — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 junho).

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Não por acaso, a “franchise” James Bond foi muito citada nas notícias da aquisição da MGM pela Amazon. Desde logo, porque 007: Sem Tempo para Morrer, 25º título oficial da saga do agente secreto, aguarda estreia há mais de um ano (o seu lançamento global está agora agendado para setembro/outubro); depois, porque não parece possível que, para futuros títulos de 007, os elementos da família Broccoli que controlam a respectiva produção abdiquem de considerar Bond como um produto específico das salas de cinema.
Tendo em conta a imensidão da filmoteca da MGM, e apesar do potencial de lucro dos filmes de 007, esse parece ser apenas um pormenor. É certo que a história da propriedade do estúdio no último meio século tem sido, no mínimo, instável, envolvendo peripécias mais ou menos agitadas como a sua compra pelo multimilionário Kirk Kerkorian, a aquisição da United Artists (foi, durante algum tempo, a MGM/UA) e até um período em que uma parte do seu catálogo de clássicos pertenceu ao fundador da CNN, Ted Turner. De qualquer modo, a Prime Video passa a ter inusitadas hipóteses de programação. Como disse Bezos, numa reunião com os accionistas a 26 de maio, trata-se de “reimaginar e desenvolver” para o século XXI o catálogo da MGM.
Afinal de contas, para lá de James Bond, a Amazon passa a controlar as “franchises” de Rocky (incluindo as sequelas Rocky/Creed em que Sylvester Stallone continua a participar), Hobbit (que Peter Jackson realizou na sequência de O Senhor dos Anéis), RoboCop (“thriller” de ficção científica iniciado por Paul Verhoeven) e A Pantera Cor de Rosa (paródia policial com Peter Sellers). Isto sem esquecer uma avalanche de títulos muito populares que inclui, por exemplo, Os Sete Magníficos (1960), O Silêncio dos Inocentes (1991) e Quatro Casamentos e um Funeral (1994).
Recuando aos tempos clássicos, a MGM emerge também como o estúdio que manteve a mais sofisticada unidade de produção de filmes musicais, dirigida por Arthur Freed, contando com talentos como Judy Garland, Fred Astaire ou Gene Kelly; entre as suas obras-primas podemos encontrar Um Americano em Paris (1951), de Vincente Minnelli, Serenata à Chuva (1952), de Gene Kelly e Stanley Donen, ou Brigadoon (1954), também de Minnelli. Sem esquecer que, ainda antes, nomeadamente nas décadas de 30/40, a MGM teve sob contrato nomes como Greta Garbo, Clark Gable, Johnny Weissmuller, Spencer Tracy, Katharine Hepburn, Ava Gardner e Cyd Charisse.
De uma maneira ou de outra, um capítulo fundamental da história e das lendas de Hollywood vai passar a ser matéria de eleição na vasta paisagem, realmente planetária, das plataformas de streaming. No seu programa da CBS, The Late Show, Stephen Colbert lembrou mesmo que Bezos passa a ser proprietário da série The Apprentice, da qual alegadamente existem gravações, nunca emitidas, com comentários racistas do seu protagonista, Donald Trump… Eis um excelente extra, sugeriu Colbert, para uma reedição em DVD.

A IMAGEM: Jean-Claude Pierdet, 1963

JEAN-CLAUDE PIERDET
Tippi Hedren e Alfred Hitchcock
na apresentação de Os Pássaros
Cannes, 1963

sábado, julho 03, 2021

Augusto M. Seabra
ou os filmes do nosso deslumbramento

Ao longo do mês de junho, a Cinemateca Portuguesa apresentou um ciclo intitulado "Carta branca a Augusto M. Seabra": através do seu trabalho crítico, podemos redescobrir as fascinantes cumplicidades de cinema e escrita — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 junho).

No texto de apresentação do ciclo “Carta branca a Augusto M. Seabra” [iniciado com Cinq et la Peau, de Pierre Rissient], leio uma memória a que o tempo emprestou um belo simbolismo: o seu primeiro texto crítico, publicado no semanário Expresso, foi sobre o filme Providence (1977), de Alain Resnais.
A evocação leva-me a convocar a minha própria memória da década de 80, quando, também no Expresso, tive o privilégio de trabalhar com o Augusto. No mesmo texto da Cinemateca, a propósito da sua atenção à “vertente popular” do cinema, há uma outra referência a que sou particularmente sensível. A saber: o seu artigo sobre a passagem de E.T., o Extraterrestre, de Steven Spielberg, no Festival de Cannes de 1982, chamando-lhe “o filme do nosso deslumbramento”. Alguns meses depois, aquando da sua estreia em Portugal, a secção de cinema produziu um enorme dossier sobre a actualidade do grande cinema dos EUA (foi capa da “Revista”) e confesso que continua a ser com um misto de perplexidade e carinho que me recordo do choque de algumas pessoas por estarmos a dar tal evidência a uma “americanada”…
Agora que o Augusto decidiu doar o seu espólio documental a várias instituições públicas (com a parte do cinema a ser acolhida pela Cinemateca), quero celebrar o seu militante gosto pelo conhecimento da pluralidade do cinema que envolve também, radicalmente, um pensamento plural dos filmes — e com os filmes.
Bem sei que ao escrever a palavra “gosto” atraio um rol de equívocos, incluindo a estupidez chantagista que leva a fixar, opondo, o “gosto do público” e o “gosto da crítica”. Lembremos apenas que tais generalizações nunca existiram e que, justamente, o labor específico da crítica não se define a partir de uma qualquer unificação de pontos de vista, antes procurando — e, mais do que isso, desejando — abrir sempre mais o espaço de conhecimento histórico, partilha afectiva e exploração filosófica (dos filmes, neste caso).
Quis encontrar uma boa imagem de Providence para ilustrar este texto. Pensei, claro, no misto de imponência e fragilidade de John Gielgud, interpretando Clive Langham, o escritor que, à boa maneira de qualquer herói de Resnais, habita o turbilhão do tempo sem que seja possível aquietar a memória e a paradoxal verdade das suas invenções. Pensei em Ellen Burstyn (no papel de Sonia, mulher de um dos filhos de Clive), quanto mais não fosse para “legitimar” um daqueles arroubos críticos a que, de vez em quando, vale a pena ceder, escrevendo que ela é, provavelmente, a mais espantosa actriz que as câmaras algumas vez filmaram.
Até que, perdoem-me a insolência, atrevi-me a repetir o magistral axioma de Pablo Picasso: “Não procuro, encontro”. Isto porque, no labirinto de imagens que o mundo virtual nos faculta, alimentando uma perdição que tão mal conhecemos, surgiu o cartaz original do filme, assinado por esse admirável desenhador/ilustrador que foi René Ferracci (1927-1982).
A quem pertence aquela mão decepada? Em boa verdade, não creio que a pergunta seja muito interessante. Porquê? Porque a intensidade do cartaz começa na festiva contradição que Ferracci encena: a mão que morre é também a mão que renasce para a escrita.
Gosto desta ideia. Impopular, bem sei. Escrevemos para seguir uma visão, ideia ou pensamento que rasgou o nosso corpo, abrindo uma clivagem na nossa identidade. No trabalho crítico do Augusto, encontro esse andamento (sublinho a conotação musical da palavra) que resiste à noção corrente de “especialista” como aquele que ensina os outros a pensar… E acredito que, de vez em quando, aconteça o milagre de o leitor descobrir o seu próprio pensamento.
De onde vem esse pensamento? De onde vem qualquer pensamento? Ferracci desenha a mão que escreve usando uma caneta/árvore ligada à energia primordial da natureza. Aliás, o inusitado instrumento de trabalho guarda as suas raízes, definindo o labor da escrita como uma tarefa em que, conscientemente ou não, expomos a nossa relação com o corpo materno da terra. Resnais é um cineasta dessa vibração interior das palavras. Foi ele que, em Hiroshima, Meu Amor (1959), criou as imagens que se colam à frase escrita por Marguerite Duras: “Tu não viste nada em Hiroshima.”

Amazon/MGM
— Hollywood já não é o que era [2/3]

A Metro Goldwyn Mayer foi comprada por Jeff Bezos, patrão da Amazon: o estúdio possui um património imenso, de clássicos como E Tudo o Vento Levou até aos filmes de James Bond — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 junho).

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Convenhamos que a cinefilia não basta para nos ajudar a compreender o investimento de Bezos. Aliás, esta compra nem sequer é um recorde da Amazon: em 2017, a companhia tinha gasto ainda mais (13,7 mil milhões de dólares) para adquirir a Whole Foods Market, uma multinacional de supermercados sediada em Austin, Texas.
Que está, então, em jogo? Precisamente aquilo que os novos negociantes do audiovisual, cada vez mais ligados a uma cultura mediática em que o cinema deixou de ocupar o lugar central, já não chamam “filmes”… Agora, o que conta são os “conteúdos”.
Triunfa, assim, uma lógica de supermercado: também na venda dos filmes, é fundamental encher as prateleiras com produtos apelativos pela sua diversidade. Que é como quem diz: para a Amazon, a consolidação da sua plataforma de streaming — Prime Video — exige um catálogo tão vasto quanto possível, combinando variedade, sedução e prestígio. Como consegui-lo? Comprando a MGM.
Há outra maneira de dizer isto. O cinema dos EUA deixou de estar integrado num sistema fechado de estúdios (“studio system”, justamente, é a expressão consagrada para designar o classicismo de Hollywood), passando a existir, quer em termos financeiros, quer no plano artístico, numa dinâmica fortemente dependente da complementaridade ou da concorrência das plataformas.
O modelo Netflix tem dominado. É certo que a Netflix tem cada vez mais filmes, antigos ou recentes, que não produziu, mas o essencial da sua estratégia envolve a oferta de produtos originais, quer dizer, obras da sua própria produção (que mais ninguém difunde). Por vezes investindo mesmo somas gigantescas para poder ter no seu catálogo determinados nomes de prestígio.
O caso de O Irlandês (2019), de Martin Scorsese, é esclarecedor: depois de mais de uma década a tentar obter financiamento junto dos grandes estúdios de Hollywood, Scorsese encontrou na Netflix a disponibilidade para concretizar o projecto — entenda-se: um cheque de 160 milhões de dólares.
Desde 2015, a Prime Video, através da Amazon Studios, tem também apresentado muitos títulos originais, por vezes adquirindo significativa visibilidade. Este ano, por exemplo, nos Oscars, havia quatro filmes com a sua chancela: O Som do Metal (nomeado para melhor filme do ano), Borat, o Filme Seguinte, Uma Noite em Miami e o admirável documentário Time; entretanto, o filme de abertura do Festival de Cannes — Annette, de Leos Carax — vai ser distribuído nos EUA pela Amazon. Mas a partir de agora o potencial de programação da Prime Video será incomparavelmente diferente: o património da MGM integra mais de 4.000 títulos de cinema e uma colecção de séries televisivas cujo número total de episódios está próximo dos 17.000.

sexta-feira, julho 02, 2021

Lucy Dacus, regresso às origens

A americana Lucy Dacus pertence a uma galeria de cantoras pós-românticas (o rótulo, certamente discutível, tem a vantagem de nos distanciar das categorias correntes impostas pelo mercado) em que podemos incluir também Phoebe Bridgers e Julien Baker. Não por acaso, recorde-se: as três criaram um dos mais belos registos de 2018, com o nome boygenius (com minúscula...).
Descobrimos agora o seu terceiro álbum de estúdio, Home Video, título que indicia uma atitude retrospectiva, ou melhor, de regresso às origens e revisitação de memórias que, em última instância, remetem para a cidade natal, Norfolk, Virginia. O resultado é uma colecção de crónicas de delicado intimismo, na depuração de um formato antigo ("home video") que não cede à futilidade das modas. Exemplo: o teledisco de Hot & Heavy. Sem esquecer a representação, discretamente "lynchiana", da capa.
 

quinta-feira, julho 01, 2021

Amazon/MGM
— Hollywood já não é o que era [1/3]

A Metro Goldwyn Mayer foi comprada por Jeff Bezos, patrão da Amazon: o estúdio possui um património imenso, de clássicos como E Tudo o Vento Levou até aos filmes de James Bond — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 junho).

O leão da Metro. Para várias gerações de espectadores, esta expressão condensou um verdadeiro culto cinéfilo: o emblema dos estúdios da Metro Goldwyn Mayer correspondia a uma imagem de marca de Hollywood e, mais do que isso, a um símbolo universal da própria Ideia de cinema.
Até que, no dia 26 de maio do ano da graça de 2021, em tempo de pandemia, a história da Metro sofreu uma dramática inflexão: a imagem simbólica do leão deu lugar ao rosto risonho de Jeff Bezos (literalmente, em diversos “cartoons” publicados na imprensa internacional). Dito de outro modo: o multimilionário anunciou que a Amazon, empresa nuclear do seu império, tinha adquirido a MGM. A factura? 8,45 mil milhões de dólares, quase 7 mil milhões de euros.
Que fazer com a nossa nostalgia cinéfila? Talvez apenas recordar que, de facto, a MGM entrou para a história como a empresa mais forte, quer em termos financeiros, quer no plano mitológico, da idade de ouro de Hollywood.
É um facto que as últimas décadas não foram gloriosas e a sua liderança das bilheteiras há muito se desvaneceu. Longe vão os tempos heróicos de Ben-Hur, a versão de 1959 protagonizada por Charlton Heston e dirigida por William Wyler, um dos títulos mais premiados na história dos Óscares (onze estatuetas douradas, incluindo melhor filme). O certo é que, quando consultamos os dados do “box office” corrigidos em função da inflação, o filme mais rentável de sempre continua a ser da MGM: E Tudo o Vento Levou (1939), acumulou mais de 1800 milhões de dólares (valor ajustado) no mercado dos EUA, o que, contas redondas, corresponde ao dobro de Avatar (2009), o mais rentável “blockbuster” do século XXI. Na prática, E Tudo o Vento Levou levou às salas escuras 202 milhões de espectadores, contra 97 milhões de Avatar. Sem esquecer que os números duplicam se considerarmos a performance internacional de E Tudo o Vento Levou
Irving Thalberg
Em todo o caso, a objectividade deste valores está muito longe de esgotar o esplendor da história da MGM. Fundado em 1924, o estúdio nasceu da fusão de três empresas protagonistas do “boom” industrial e comercial do cinema mudo: a Metro Pictures, a Goldwyn Pictures e a Louis B. Mayer Productions. Louis B. Mayer, precisamente, viria a liderar a política do novo estúdio, aplicando uma estratégia fundada no cruzamento do apelo espectacular com a riqueza artística: E não deixa de ser revelador que um dos primeiros exemplos da sua eficácia tenha sido a versão de 1925 de Ben-Hur, de Fred Niblo, com Ramon Novarro.
Mayer teve um fundamental colaborador na figura lendária de Irving Thalberg (1899-1936), produtor cuja visão estratégica e sensibilidade artística lhe valeram o cognome de “Boy Wonder” de Hollywood, misto de figura divina e anjo negro. O seu enigmático fascínio inspirou mesmo F. Scott Fitzgerald a escrever The Last Tycoon (edição portuguesa: O Último Magnate, Relógio d’Água). No romance, que permaneceu inacabado, a personagem de Monroe Stahr é uma assumida derivação de Thalberg: foi adaptado ao cinema em 1976, com argumento de Harold Pinter e realização de Elia Kazan (título português: O Grande Magnate), estando a personagem de Stahr entregue a Robert De Niro — ironicamente, não se trata de uma produção da MGM, mas sim da Paramount.