sábado, julho 24, 2021

Lin-Manuel Miranda
— o prodígio da Broadway [2/3]

Lin-Manuel Miranda no papel de Alexander Hamilton

Na obra do criador do musical Hamilton cruzam-se as raízes latinas e a herança de Hollywood: através do trabalho de Lin-Manuel Miranda, teatro e cinema reinventam as suas alianças — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 junho).

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Nascido em data incerta (1755 ou 1757), Alexander Hamilton é uma figura emblemática entre os “founding fathers” (à letra: “pais fundadores”) da nação americana, isto é, aqueles que assinaram a Declaração de Independência, a 4 de julho de 1776. Entre 1789 e 1795, desempenhou as funções pioneiras de secretário do Tesouro no governo de George Washigton, primeiro presidente dos EUA. Seja como for, não se poderá dizer que estejamos perante uma personagem frequente nas obras, teatrais ou cinematográficas, que abordam aquele período da história dos EUA.
Essa memória “incerta” terá sido essa uma das razões para Lin-Manuel Miranda se interessar pela personagem (assumindo mesmo a sua interpretação na primeira temporada na Broadway): na figura sedutora e enigmática de Hamilton encontramos uma perturbante duplicidade histórica que é também, naturalmente, uma fascinante matéria dramática e dramatúrgica.
Hamilton foi um dos inspiradores e, mais do que isso, um agente dos valores de liberdade inerentes à fundação dos EUA, ao mesmo tempo que o país escravizava os afro-americanos. Numa entrevista dada à rádio pública americana (NPR) a propósito do lançamento de Hamilton em filme, Lin-Manuel Miranda sublinhou isso mesmo, dizendo que “o passado não pára de ajustar contas connosco.” Ou ainda: “Embora tenha assumido posições anti-escravatura, Hamilton manteve-se no interior do sistema.”
A ousadia artística de Hamilton pode medir-se através da sua pluralidade musical. Assim, se é verdade que a exuberância dos seus quadros nos remete para o riquíssimo património da Broadway e de Hollywood — envolvendo compositores da estirpe de Cole Porter ou George Gershwin, a par de cineastas como Vincente Minnelli —, não é menos verdade que Lin-Manuel Miranda se afirma como um devorador de referências, tão original quanto imaginativo, integrando “desvios” que vão da soul ao hip hop.
A harmonia de tais contrastes encontra a sua expressão mais radical na própria distribuição dos papéis. Assim, o elenco de Hamilton altera (apetece dizer, como num jogo: baralha e volta a dar) as correspondências tradicionais entre actores e personagens. Exemplos? Aaron Burr Jr., o advogado e político que matou Hamilton num duelo, e Thomas Jefferson, que viria a ser o terceiro presidente dos EUA, são personagens brancas interpretadas por actores negros — respectivamente, Leslie Odom Jr. e Daveed Diggs.
Quer isto dizer que tudo é intermutável? E que a história não passa de um baile de máscaras? Nada é tão simples, para mais no contexto político-cultural americano, atravessado por conflitos históricos e sociais, materiais e simbólicos que, como foi notório, a presidência de Trump agravou.