domingo, julho 18, 2021

Lin-Manuel Miranda
— o prodígio da Broadway [1/3]

Na obra do criador do musical Hamilton cruzam-se as raízes latinas e a herança de Hollywood: através do trabalho de Lin-Manuel Miranda, teatro e cinema reinventam as suas alianças — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 junho).

No dia 2 de dezembro de 2018, pelo segundo ano consecutivo, Donald Trump não esteve presente na cerimónia dos prémios honorários atribuídos pelo Kennedy Center, em Washington. Entre os homenageados, Cher e Lin-Manuel Miranda tinham já sido questionados sobre a acção do 45º presidente dos EUA, ambos dando conta de uma visão profundamente negativa. No caso de Lin-Manuel Miranda, a opinião não podia ser mais telegráfica: “Demita-se”.
Provavelmente, tão contundente declaração fez com que o rótulo de artista “político” se colasse à figura de Lin-Manuel Miranda, actor, encenador, compositor e produtor nascido em Nova Iorque, em 1980, de ascendência porto-riquenha. Convenhamos que tal classificação simplifica de forma fácil e equívoca a conjuntura em que tudo aconteceu e, mais do que isso, as singularidades do seu labor artístico.
Lin-Manuel Miranda
Nessa altura e, em boa verdade, durante todo o mandato de Trump, proliferaram as clivagens entre o presidente e o mundo das artes e do espectáculo. Neste caso particular, ele passou a ser o único presidente que faltou ao evento do Kennedy Center por opção (não aceitou o convite) — acontecera antes com Jimmy Carter, George H. W. Bush e Bill Clinton, em 1979, 1989 e 1994, respectivamente, mas por força da agenda política. Mais do que isso: na altura, era já muito claro que a dimensão política do labor criativo de Lin-Manuel Miranda não se esgotava num qualquer “soundbyte” para uso mediático.
Em 2018, convém lembrar, Lin-Manuel Miranda era já encarado como um genuíno prodígio. O seu musical Hamilton tinha-se imposto como um acontecimento transformador na dinâmica cultural “made in USA”. Depois da estreia no Public Theater, de Nova Iorque, a 20 de janeiro de 2015, conquistara a Broadway, vindo a acumular uma invulgar colecção de distinções, entre as quais onze prémios Tony, incluindo melhor musical, um Grammy para melhor álbum do teatro musical e, por fim, um Pulitzer, referente a 2016, na categoria de espectáculo teatral.
O reconhecimento de Hamilton no Kennedy Center envolveu mais três elementos fundamentais para a sua concepção e gestação: o encenador Thomas Kail, o director musical Alex Lacamoire e o coreógrafo Andy Blankenbuehler. Consagrava-se, de facto, uma matriz de espectáculo, não apenas profundamente enraizada na cultura popular dos EUA — dos palcos ao cinema —, mas também envolvendo sempre um misto de celebração exuberante e questionamento da própria identidade histórica da América. De acordo com um dos versos mais citados de Lin-Manuel Miranda, trata-se de encarar a América como “grande sinfonia inacabada”.
Uma prova muito real da energia teatral de Hamilton e dos seus cruzamentos com as linguagens cinematográficas está no registo filmado do musical, com o encenador Kail a assumir as tarefas de realização. Rodado ao longo de três performances, em junho de 2016, teve o seu lançamento adiado, primeiro para não retirar público à carreira internacional do espectáculo (a estreia em Londres, no West End, ocorreu em 2017), depois por causa das restrições impostas pela pandemia. Acabou por ser estreado pela Disney + [trailer], em julho de 2020 (está actualmente disponível em Portugal, na mesma plataforma).