terça-feira, junho 29, 2021

Madonna, LGBT+

[ Vogue Italia ]

Esta é uma das fotografias de Madonna, assinadas por Ricardo Gomes, produzidas em exclusivo para a Vogue Italia. São imagens surgidas em paralelo com a performance da Material Girl, em Nova Iorque, no Standard Hotel (24 de junho). Objectivo: participar nas celebrações do Pride 2021.
Segundo as notícias [NME], a festa permitiu angariar mais de 100.000 dólares para várias organizações LGBT+. A ter em conta: para assinalar o evento, Madonna elaborou este video de 3 minutos, projectado nos ecrãs da Time Square.

domingo, junho 27, 2021

Kate Winslet
— a aristocrata do povo [3/3]

Kate Winslet tem mais uma composição invulgar na mini-série Mare of Easttown (HBO): talentosa e versátil, a estrela de Titanic nunca cedeu à fabricação de um estereótipo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 maio).

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Apesar das dificuldades financeiras da família durante a infância e adolescência, Kate Winslet teve uma sólida formação teatral, ganhando experiência nos palcos e começando a trabalhar, a partir dos 16 anos, em pequenos papéis de séries televisivas. Talvez se possa dizer que esses princípios lhe serviram, acima de tudo, para aprender a respeitar a complexidade de cada personagem, seja qual for o seu perfil dramático.
Num filme recente, Ammonite, escrito e realizado por Francis Lee, assume a personagem de Mary Anning, lendária paleontologista da primeira metade do século XIX. Analisando a ambivalência dos seus comportamentos sexuais, nomeadamente na relação com a geóloga Charlotte Murchison (Saoirse Ronan), Kate Winslet declarou à revista Vanity Fair (setembro 2020): “Poder representar esta personagem que revela tão especial afecto por alguém do mesmo sexo foi uma das experiências mais gratificantes de toda a minha carreira.” Porquê? Precisamente porque o desafio que a personagem envolve convoca e, de alguma maneira, exige capacidade de resistência ao comodismo das ideias feitas: “Estamos de tal maneira condicionados pelas abordagens tradicionais dos ideais românticos no cinema… Mas quando retiramos esses estereótipos, é como uma lufada de ar fresco.”
As suas composições mais ricas, complexas e fascinantes implicam, justamente, o enfrentamento de convenções que, sendo dramáticas, são também morais. Algo do género acontece no filme que lhe valeu aquele que é, até agora, o seu único Oscar (num total de sete nomeações): O Leitor (2008), de Stephen Daldry, baseado num “best-seller” de Bernhard Schlink, odisseia de sobrevivência de uma mulher na Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial.
Há em O Leitor um maneirismo narrativo que impede a actriz de levar a sua performance às últimas consequências. Vale a pena, por isso, contrapor-lhe duas interpretações, sem dúvida menos conhecidas, mas de rara subtileza e intensidade. A primeira está em Pecados Íntimos (2006), de Todd Field, um verdadeiro labirinto existencial protagonizado por duas mulheres (Kate Winslet e Jennifer Connelly) que se confrontam com a fragilidade do território conjugal, num processo tendencialmente trágico. O outro exemplo é, a meu ver, um dos filmes maiores da produção americana do século XXI, infelizmente amaldiçoado por um falhanço comercial que o tornou quase invisível: Revolutionary Road (2008), adaptação do romance de Richard Yates por Sam Mendes (na altura casado com Kate Winslet).
Revolutionary Road
nasceu da vontade de refazer o par de Titanic: Kate Winslet e Leonardo DiCaprio interpretam um casal a viver numa zona suburbana do Connecticut, em meados da década de 1950, numa trajectória que não deixa de nos remeter para a série Mare of Easttown. Claro que são épocas e lugares distintos e todo o enquadramento social é diferente, mas deparamos com uma idêntica pulsação dramática: há um abismo entre o destino imaginado pelas personagens e a crueza imposta pelas dores do quotidiano.
Certamente não por acaso, as melhores composições de Kate Winslet estão em filmes em que o gosto pela enigmática densidade das palavras envolve qualquer coisa de subtilmente teatral. Exemplo superior dessa arte de todas as ambivalências do factor humano é Carnage/Deus da Carnificina (2011), de Roman Polanski, precisamente a adaptação de uma peça, da autoria da francesa Yasmina Reza. Sem esquecer Roda Gigante (2017), de Woody Allen, drama também dos anos 50 que propõe uma revisão crítica, rara na tradição de Hollywood, do imaginário cultural ligado a Coney Island.
Razões de sobra para reconhecermos em Kate Winslet a simbologia de uma outra tradição, de uma só vez artística e afectiva: ela é mais uma actriz britânica que, a par de figuras lendárias como Vivien Leigh, Elizabeth Taylor ou Julie Andrews, triunfou em Hollywood através de um talento tecido de intransigência e versatilidade. Como se prova pelo brilhantismo de Mare of Easttown, esse é um talento que persiste na idade das plataformas de streaming.

quinta-feira, junho 24, 2021

Amor, ódio, acção, violência e morte

Élie Faure lido por Jean-Paul Belmondo

Pedro, o Louco, de Jean-Luc Godard, clássico da Nova Vaga francesa, está numa plataforma de streaming, é tempo de voltar a celebrar as “emoções” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 maio).

As primeiras palavras que escutamos são estas: “Velázquez, depois dos 50 anos, deixou de pintar coisas definidas. Pairava em torno dos objectos, com o ar e o crepúsculo, extraía cores vibrantes da sombra e da transparência dos fundos e fazia delas o centro invisível da sua sinfonia silenciosa. Do mundo, colhia apenas essas trocas misteriosas que permitem que as formas e as tonalidades se misturem numa progressão secreta e contínua que nenhuma colisão ou movimento involuntário pode deter ou trair. O espaço reina. É como uma onda aérea deslizando sobre superfícies, absorvendo as suas emanações visíveis para as definir e moldar. Transporta-as como um perfume, como um eco, e espalha-as por todo o lado como uma poeira imponderável.”
São as palavras de abertura de Pedro, o Louco, o lendário Pierrot le Fou que Jean-Luc Godard realizou em 1965, agora disponível numa plataforma de streaming (Filmin). Provêm da História da Arte (1919-1921), de Élie Faure. Quem as lê é Jean-Paul Belmondo, intérprete de Pierrot que, ao longo do filme, não se cansa de dizer a Anna Karina que “o meu nome é Ferdinand”. Belmondo está sentado numa banheira, a fumar, com o livro de Faure nas mãos; chama uma menina para acompanhar a sua leitura, “escuta isto, pequenina…”, no final perguntando-lhe: “É bonito, não é?”


Revejo, escuto de novo, pela enésima vez. Pedro, o Louco, objecto mágico da cinefilia clássica, é essa aventura inclassificável de um homem e uma mulher através dos cenários da “sociedade de consumo” (a expressão é uma pérola incontornável dos anos 60), numa demanda que nasce do poder primordial das palavras. Neste caso, da aliança simbólica da escrita de Faure com a pintura de Velázquez, porventura antecipando o auto-retrato de Godard, dois anos mais tarde, no filme Duas ou Três Coisas sobre Ela, definindo-se como “escritor e pintor”.
Ao mesmo tempo (mas o tempo nunca é o “mesmo”), pressinto o efeito cruel das distâncias — todas as distâncias, as do calendário e as outras. E pergunto-me: onde estão os espectadores que reconheçam, admirem e explorem o facto de o cinema poder ser um fenómeno audiovisual cuja raízes estão, não na fotografia, mas na literatura?
Não, não se trata de inventariar os filmes como se todos fossem obrigados a ser “adaptações” de romances — sabemos do mau cinema (e da péssima televisão) que se faz a partir de grandes livros. Trata-se, isso sim, de conhecer e reconhecer o cinema como um labor que, directa ou indirectamente, envolve o poder das palavras e as nossas relações com a escrita.
Esse poder e essas palavras ecoam na infinita sedução das imagens (e dos sons), permanecendo como um elo primordial com tudo aquilo que é anterior ao conceito de “reprodução” consagrado pelas artes fotográficas. Mais ainda: a disponibilidade para escutar é um modelo de educação (“escuta isto, pequenina…”) que tem sido minimizado pela histeria do visual e, no caso do cinema, junto de muitos espectadores mais jovens, pela banal acumulação de “efeitos especiais”.
A própria vulgarização da expressão “efeitos especiais” tem funcionado como empobrecimento da visão e motor de ignorância. Por um lado, omite-se o facto de as manipulações das imagens cinematográficas não serem uma “invenção” dos estúdios Marvel porque, de facto, começaram há mais de um século (veja-se e reveja-se o genial Méliès); por outro lado, há uma ideologia insidiosa, misto de presunção ética e novo-riquismo estético, que tenta fazer crer que tais “efeitos” são necessários para compensar as “limitações” das imagens que os não utilizam. Pedro, o Louco é mesmo um filme que transporta a “mensagem” de um desejo radical — tudo é possível —, por muitos espectáculos do século XXI destruída em nome do infantilismo tecnológico e da boçalidade tecnocrática.
Numa cena emblemática, as palavras ditas pelo cineasta americano Samuel Fuller (1912-1997) são mais belas do que nunca. Fuller responde a Belmondo que quer saber “o que é o cinema, exactamente”. Diz ele: "um filme é como um campo de batalha” em que encontramos “amor, ódio, acção, violência e morte”. Resumindo: “emoções”. Estamos prontos para seguir a aventura de Pierrot. Aliás, Ferdinand.

A IMAGEM: Pierre Bonnard, 1912

PIERRE BONNARD
La Terrasse ou Une terrasse à Grasse
1912

terça-feira, junho 22, 2021

Joni Mitchell, "Blue" — 50 anos

Foi a 22 de junho de 1971 — faz hoje 50 anos — que foi lançado o álbum Blue, quarto registo de estúdio da canadiana Joni Mitchell. As suas memórias confundem-se com a afirmação de uma identidade criativa em que a reconversão da herança folk abre os espaços de uma introspecção que, em boa verdade, dispensa rótulos ou pertenças a escolas e movimentos. Provavelmente, o álbum seguinte da discografia de Mitchell, For the Roses (1972), será uma versão ainda mais depurada, se tal é possível, dessa dinâmica criativa. Seja como for, Blue pertence a essa galeria fascinante de obras realmente intemporais que, em qualquer caso, nos fazem sentir a vibração do momento histórico e afectivo em que foram geradas.

>>> My Old Man (BBC, 1970) + The Last Time I Saw Richard.
 


segunda-feira, junho 21, 2021

Kate Winslet
— a aristocrata do povo [2/3]

Kate Winslet tem mais uma composição invulgar na mini-série Mare of Easttown (HBO): talentosa e versátil, a estrela de Titanic nunca cedeu à fabricação de um estereótipo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 maio).

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É um facto que alguns dos papéis mais conhecidos de Kate Winslet são indissociáveis da produção de Hollywood, incluindo, claro, Titanic e O Despertar da Mente (2004), de Michel Gondry, este uma espécie de “love story” virada do avesso, a meio caminho entre nostalgia romântica e absurdo poético, contracenando com Jim Carrey. Seja como for, há um primeiro capítulo da sua filmografia que envolve três filmes eminentemente britânicos, pela produção e também pela inspiração literária: Sensibilidade e Bom Senso (1995), a partir de Jane Austen, com realização de Ang Lee (curiosamente, um cineasta de Taiwan); Jude (1996), uma adaptação de Thomas Hardy por Michael Winterbottom; e Hamlet (1996), uma das variações “shakespeareanas” que Kenneth Branagh interpretou e dirigiu. Isto sem esquecer que quem lhe ofereceu o primeiro papel em cinema foi o neozelandês Peter Jackson, com Amizade sem Limites (1994), uma história policial filmada em tom mais ou menos sarcástico.
Kate Winslet nasceu em 1975, o que quer dizer que tinha 20 anos quando fez Sensibilidade e Bom Senso. Dir-se-ia que estava aberto o caminho para uma carreira de sucessivas variações sobre o modelo de “dama britânica”, tão querido da tradição de Hollywood — o filme valeu-lhe, aliás, a sua primeira nomeação para um Oscar (actriz secundária). O certo é que o trabalho que se seguiu nunca se deixou acomodar num qualquer estereótipo dramático ou cultural.
O sucesso planetário de Titanic foi rapidamente “contrariado” por alguns filmes de registo bem diverso, incluindo um retrato do Marquês de Sade: com Geoffrey Rush no papel do marquês e realização de Philip Kaufman, chama-se Quills - As Penas do Desejo (2000) e ainda hoje permanece como um objecto “selvagem”, muito pouco conhecido. Vimo-la também em Iris (2001), de Richard Eyre, interpretando a jovem escritora Iris Murdoch (com Judi Dench nas sequências da velhice), e À Procura da Terra do Nunca (2004), outro título infelizmente de modesta circulação, em que Marc Forster revisita a vida do escritor J. M. Barrie (interpretado por Johnny Depp) e, em particular, as circunstâncias que fizeram nascer o seu Peter Pan.

Bruce Springsteen + The Killers

Na capa do single, o perfil de Brandon Flowers + a silhueta de Bruce Springsteen. Que é como quem diz: com a colaboração de The Boss, The Killers regravaram a sua canção A Dustland Fairytale (do álbum Day & Age, 2008), agora com o título Dustland: um magnífico exercício de reinvenção em nome da energia intemporal do rock'n'roll — em baixo, o original.
 


sexta-feira, junho 18, 2021

A IMAGEM: Emin Özmen, 2021

EMIN ÖZMEN / Magnum
Gaye Su Akyol,
cantora, compositora, pintora e antropóloga

Istambul, Turquia (2021)

quinta-feira, junho 17, 2021

O “thriller” ainda é o que era

Denzel Washington, As Pequenas Coisas

Eis um pequeno grande acontecimento na actualidade cinematográfica, mais concretamente nos videoclubes: As Pequenas Coisas revitaliza a tradição do “thriller”, contando com um elenco liderado por Denzel Washington — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 maio).

A discreta chegada do filme As Pequenas Coisas é sintomática do período difícil que os circuitos de cinema estão a atravessar. Escusado será sublinhar que a pandemia afectou, aliás, continua a afectar o funcionamento de todos os mercados. E também já ninguém ignora que a dicotomia salas/plataformas de streaming não pode ser encarada como uma mera questão “moral”, implicando toda uma reflexão sobre as componentes artísticas e as bases económicas do próprio universo cinematográfico. Nesta conjuntura, As Pequenas Coisas está disponível — apenas nos videoclubes —, depois de, nos EUA, ter tido uma carreira repartida entre as salas e a plataforma HBO Max.
Há qualquer coisa de ensurdecedor no “silêncio” promocional que envolve o filme. Por razões que a pandemia pode ter reforçado, mas que estão longe de esclarecer o quase “anonimato” do lançamento de As Pequenas Coisas — são questões específicas das últimas duas décadas da vida dos filmes, da produção à difusão.
Nada a ver, entenda-se, com qualquer juízo de valor sobre o filme que, já agora, no meu caso, é inequivocamente positivo. Acontece que a poderosa máquina promocional, eminentemente global, dos grandes estúdios americanos (neste caso, a Warner Bros.) parece já não saber o que fazer com um filme de perfil clássico, sóbrio, profissionalmente exemplar, em tudo e por tudo exterior ao alarido dos super-heróis que, ciclicamente, enchem os nossos ecrãs e as ruas das nossas cidades com aparatosas promoções.

Elogio dos actores

Dir-se-ia que não basta ter os trunfos que são (ou eram) os actores. E neste caso não é um, não são dois, são três intérpretes todos eles já “oscarizados”: Denzel Washington, Rami Malek e Jared Leto (a composição deste último valeu-lhe nomeações para os prémios da última temporada, na categoria de secundário, quer pelos Globos de Ouro, quer pelo sindicato nos actores). Temos assistido, de facto, a um triste esvaziamento do valor comercial dos actores, favorecendo novos modelos de (des)educação dos espectadores face à pluralidade histórica do cinema: os filmes mais promovidos — aos quais é facultada uma gigantesca ocupação dos mercados — são quase sempre os que ostentam referências de outros domínios (sobretudo banda desenhada e jogos de video), não os que envolvem componentes clássicas da linguagem cinematográfica. A começar pelos actores, precisamente.
Mais ainda: As Pequenas Coisas possui uma estrutura de “thriller” que não pode deixar de evocar um título eminentemente popular — Seven (1995), de David Fincher —, e não apenas pelo facto de se tratar de uma investigação em torno de um suspeito que parece actuar como um “serial killer”; a acção situa-se também na década de 90, como se John Lee Hancock, na dupla condição de argumentista e realizador, tivesse querido explicitar as origens da sua inspiração.
Será que o trabalho de Hancock consegue sustentar uma comparação directa com a sofisticada “mise en scène” de Fincher? Em boa verdade, não creio. Mas não é essa a questão. Podemos dizer, isso sim, que As Pequenas Coisas se inscreve numa tradição temática e estética que, justamente, Seven reconverteu e relançou. Agora, como se prova, essa tradição tornou-se uma componente secundária do mercado e do marketing. Espera-se, além do mais, que não ressurja o discurso demagógico que, tentando escamotear o papel decisivo dos mercados nas orientações dominantes dos espectadores, venha clamar que cabe à “crítica” salvar aquilo que os próprios mercados foram metodicamente desvalorizando.

Um gosto clássico

As Pequenas Coisas exibe o gosto de um valor narrativo que, de facto, está longe de ser acarinhado pela maior parte dos filmes (ditos) de “acção” que passaram a ocupar a linha da frente da indústria. Que valor é esse? Pois bem: o tempo. Entenda-se: o valor dramático da duração de cada cena.
Assim, a investigação dos dois elementos da polícia (interpretados por Washington e Malek) em torno de um suspeito (Leto) desenvolve-se através de um sedutor paradoxo narrativo. Por um lado, a montagem, assinada pelo veterano Robert Frazen, vai instalando uma expectativa que nasce da sensação de que o tempo está a faltar (para resolver os crimes); por outro lado, a duração interna de cada cena é sempre ambígua, dando especial atenção aos detalhes (as “pequenas coisas”) que se acumulam de modo pausado, inesperado e inquietante.
Vale a pena recordar que Hancock tem desenvolvido a sua carreira através de alguns títulos saborosamente atípicos, incluindo The Blind Side/Um Sonho Possível (2009), retrato dos bastidores do basebol que valeu um Oscar de melhor actriz a Sandra Bullock, Ao Encontro de Mr. Banks (2013), evocando Walt Disney, interpretado por Tom Hanks, e O Fundador (2016), com Michael Keaton, sobre as origens dos restaurantes McDonald’s. Agora, com As Pequenas Coisas, ele acrescenta mais um objecto insólito a uma filmografia que não desiste de um obstinado classicismo. Sem esquecer que, entre as proezas artísticas do filme, há ainda uma notável banda sonora de Thomas Newman, também ele um respeitável “marginal” de Hollywood — afinal de contas, já foi nomeado quinze vezes para os Oscars e nunca ganhou…

Spike Lee em Cannes

Objecto emblemático do espectáculo de Cannes, aí está o cartaz oficial da 74ª edição do festival [6-17 julho].
Recuperando a personagem de Spike Lee (Mars), no seu filme She's Gotta Have It/Os Bons Amantes (1986), a imagem, num misto de ironia e objectividade, cruza a obra daquele que será o presidente do júri oficial com a iconografia romanesca da cidade de Cannes. O grafismo tem assinatura do atelier Hartland Villa, sendo a fotografia de Spike Lee publicada com a autorização do fotógrafo Bob Peterson & Nike (isto porque serviu, no original, para uma campanha publicitária).

Redescobrindo "O Mensageiro"

O Mensageiro: Dominic Guard e Julie Christe

Através da reposição de O Mensageiro (1971), de Joseph Losey, reencontramos o fulgor de um cinema em que todas as palavras contam — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 maio).

O reaparecimento nas salas de cinema de O Mensageiro, de Joseph Losey, em cópia restaurada, relança o nosso olhar num tempo em que o cinema vivia irredutíveis convulsões. O filme venceu o Festival de Cannes de 1971 e bastará lembrar alguns títulos da respectiva secção competitiva para reconhecermos a riqueza do momento: Morte em Veneza (adaptação de Thomas Mann por Luchino Visconti), Taking Off/Os Amores de uma Adolescente (estreia de Milos Forman na produção americana), Pânico em Needle Park (com Al Pacino, sob a direcção de Jerry Schatzberg, retratando cenários da toxicodependência), etc.
A direcção fotográfica de Gerry Fisher, em O Mensageiro, contém singularidades cujo fascínio o tempo reforçou. Faltavam décadas para a generalização do digital: a utilização da película de 35mm envolvia desafios, desde logo nos espaços interiores, que implicavam a utilização de variadas fontes artificiais de iluminação. Esse controlado artifício é tanto mais sugestivo quanto o filme integra um importante contraponto visual: uma parte significativa da acção decorre em exteriores (Norfolk, leste de Inglaterra), valorizando os elementos paisagísticos através de um tratamento de luz e cor que nos remete para a herança de pintores ingleses do século XIX como John Constable ou Peter De Wint.
A história do jovem Leo (Dominic Guard), adaptada do romance homónimo de L. P. Hartley, começa mesmo num momento simbólico de viragem, 1900, ano do seu 13º aniversário. Dir-se-ia que as suas memórias implicam uma despedida dos valores de uma época que a passagem do tempo reconfigurou em nostalgia, silêncio e amargura. Convidado de um colega de escola, Leo vai descobrir o esplendor da mansão da família Maudsley, deparando com um mundo cuja riqueza desconhecia, organizado num sistema em que os rituais do luxo são tão importantes quanto as aparências de harmonia e felicidade.
A sua condição de “mensageiro”, entregando as cartas de amor trocadas por Marian (Julie Christie) e Ted (Alan Bates), vai trazer-lhe uma dupla lição. Lição social: as diferenças de classe dos amantes definem o ABC de um escândalo. E inesperada lição existencial: que acontece, afinal, entre Marian e Ted, a ponto de os tornar, não apenas moralmente escandalosos, mas também romanticamente sedutores?
Leo descobre, assim, que o conhecimento da sexualidade, ainda que pressentida num labirinto de olhares, insinuações e subentendidos, esbarra na própria dificuldade de transformar o seu pressentimento em palavras precisas. A certa altura, tenta mesmo que Ted o esclareça, recebendo apenas como resposta uma palavra possível para os enigmas do que acontece entre os amantes: “spooning” (nas legendas portuguesas: “marmelada”). Ted, aliás, reconhece que a palavra é “estúpida”, mas devolve o enigma ao próprio Leo, dramatizando o seu saber feito de coisas por dizer: “Parece que sabes alguma coisa sobre o assunto.”
Harold Pinter
Na verdade, sabe e não sabe, já que o papel que acaba por desempenhar na relação de Marian e Ted não é alheio ao seu fascínio por Marian. Aí, as palavras não lhe faltam: “Acho que ela é estupenda”, diz ele a Trimingham (Edward Fox), personagem “errada” na teia de equívocos em que se move, já que Trimingham é o noivo oficial de Marian… com quem ela não se quer casar. E acrescenta: “Faria tudo por ela.”
Tudo isto é trabalhado não exactamente através do cliché da descoberta “juvenil” da sexualidade, mas sim como algo que persiste através de desejos e emoções que se aquietaram num magma metodicamente solidificado por sucessivas camadas do tempo. A adaptação do romance de Hartley foi feita por Harold Pinter e, para lá dos méritos da realização de Losey, não será abusivo reconhecer que a vibração das palavras ditas em O Mensageiro não é estranha à sua filosofia das imagens: “Quando olhamos um espelho pensamos que a imagem que nos confronta é exacta. Mas basta movermo-nos um milímetro e a imagem muda. De facto, estamos a ver uma interminável variedade de reflexos. Mas por vezes o escritor tem que quebrar o espelho — porque é do outro lado desse espelho que a verdade nos contempla.” São palavras ditas por Pinter, várias décadas mais tarde, a 7 de dezembro de 2005, ao receber o Prémio Nobel da Literatura.

segunda-feira, junho 14, 2021

Kate Winslet
— a aristocrata do povo [1/3]

Kate Winslet tem mais uma composição invulgar na mini-série Mare of Easttown (HBO): talentosa e versátil, a estrela de Titanic nunca cedeu à fabricação de um estereótipo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 maio).

Na multifacetada carreira de Kate Winslet, Mare of Easttown (mini-série de sete episódios a passar na HBO) envolve uma novidade: pela primeira vez, ela assume as funções de produtora executiva. Não é, obviamente, um facto isolado: o prestígio de muitos actores e actrizes permite-lhes envolverem-se nas produções que protagonizam, influenciando a respectiva concepção dramática ou narrativa, na prática tirando partido do poder efectivo de ser uma estrela.
De qualquer modo, podemos supor que não terá sido uma mera questão de produção a motivar o envolvimento da actriz inglesa. Se é verdade que, para o melhor ou para o pior, a sua “imagem de marca” está associada a personagens de raiz ou aparência aristocrata — a começar, claro, pela jovem Rose Dewitt de Titanic (1997) —, pode dizer-se que o papel de Mare Sheehan, detective de uma cidadezinha da Pensilvânia, nos arredores de Filadélfia, lhe permite aquilo que qualquer intérprete inteligente sempre procura: arriscar em registos que contrariam a ilusória estabilidade da sua fama, neste caso muito longe de qualquer sugestão de “glamour”.
Mare é uma figura de fascinantes contrastes dramáticos, ligada à terra, alheia a qualquer “pureza” aristocrata. Além do mais, vive num turbilhão emocional: da frieza intelectual com que é seu dever investigar os crimes que assombram Easttown aos conflitos crónicos com a mãe e a filha, passando pela pesada herança emocional de um filho que se suicidou…
Na verdade, Mare of Easttown está longe de ser uma vulgar intriga policial, multiplicando suspeitas em torno de um pequeno núcleo de personagens. Claro que esse jogo de inocência e culpas, com o seu quê de Agatha Christie, está na série criada e escrita por Brad Ingelsby, com realização de Craig Zobel. Ainda assim, o que nos envolve, confunde e seduz decorre de uma teia de relações que vai sendo desvendada para lá da banalidade de um quotidiano contaminado por muitos fantasmas e bizarrias.
Nesta perspectiva, Mare of Easttown é uma série devedora da herança de um certo cinema clássico de Hollywood, muitas vezes de inspiração literária, focado precisamente nas atribulações de pequenas comunidades — lembramo-nos, por exemplo, da obra de Vincente Minnelli e de títulos como Paixões sem Freio (1955) ou A Herança da Carne (1960). Aí deparamos com ambientes que reflectem o apelo utópico do “Sonho Americano”, celebrando uma ideia de povo que, não poucas vezes, se desagrega de forma trágica. Mildred Pierce, uma série da HBO lançada em 2011, também protagonizada por Kate Winslet, poderá ser outra referência exemplar: baseada no romance de James M. Cain, com direcção de Todd Haynes, nela encontramos um retrato contundente do período da Grande Depressão, oscilando entre a crueza realista e a impossível atracção do romantismo.

domingo, junho 13, 2021

John Berger, contador de histórias

O inglês John Berger (1926-2017) foi um exemplo raro de versatilidade, oscilando entre "extremos" como a reflexão filosófica e o apontamento sobre o quotidiano, o ensaio e o romance. A sua obra reflecte a consciência, de uma só vez crítica e irónica, de uma visão que sabe que nenhuma descrição é alheia à ficção, nenhuma narrativa ficcional está excluída da possbilidade de integrar uma fundamental fatia de verdade.
O livro Fotocópias (ed. Antígona; tradução Inês Dias) serve de modelo exemplar da sua energia narrativa. São 28 histórias, todas relativamente breves (num total de duas centenas de páginas) em que podemos identificar alguns nomes conhecidos, Henri Cartier-Bresson, Simone Weil, diversos cenários de deambulações pessoais, enfim, dir-se-ia uma colecção de fragmentos de um bloco-notas que o tempo não destruiu.
Os títulos das histórias de Berger são significativos do seu labor. Por exemplo, 'Uma rapariga com a mão no queixo'. Ou 'Um molho de flores num copo'. Ou ainda 'Homens e mulheres sentados a uma mesa para comer'... São títulos, afinal, de desarmante objectividade que, ao mesmo tempo, nos encaminham para uma compreensão do mundo nunca alheada da subjectividade que coloca a narrativa em movimento.

>>> O século XIX terminou cerca de 1955, creio. Ainda havia esperança...
 
(pág. 83)

O efeito real e surreal dessa criteriosa acumulação de elementos é tanto mais envolvente quanto as histórias de Berger tendem a deixar-nos a sensação de que algo se suspende antes que seja possível enunciar qualquer conclusão, seja ela moral ou meramente factual. Como se a escrita fosse um exercício de cicatrização dos limites do mundo e, ao mesmo tempo, a confissão poética de que é preciso continuar a escrever. Porquê? Para quê? Para continuarmos a merecer a complexidade dos seres e dos objectos.

>>> John Berger em 2011, na BBC.
 

sábado, junho 12, 2021

"Os Salteadores da Arca Perdida", 40 anos

Steven Spielberg usando uma maqueta para estudar os ângulos de abordagem de uma cena de Raiders of the Lost Ark/Os Salteadores da Arca Perdida — eis uma imagem capaz de resumir toda uma estratégia de espectáculo. A saber: reconverter o espaço natural em realidade espectacular. Neste caso, recuperando todo uma imaginário alheio àquilo que, hoje em dia, se chama de "produção-de-efeitos-especiais", porque enraizado em formas primitivas de encenação da aventura, nomeadamente os "serials" da Republic Pictures.
Foi no dia 12 de junho de 1981 que Raiders of the Lost Ark chegou às salas do mercado americano — faz hoje 40 anos.
Eis o trailer original e o tema-título, composto por John Williams.



"Na Cama com Madonna", 30 anos depois

Na Cama com Madonna perfaz 30 anos: muito mais do que o simples registo de uma digressão, o filme dirigido por Alek Keshishian é hoje um clássico do género documental este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 maio), com o título 'A música, o espectáculo, a sua estrela e o filme dela'.

Em 1991, a Palma de Ouro do Festival de Cannes foi para Barton Fink, dos irmãos Coen. Nesse ano, a competição foi uma pequena avalanche de filmes tão originais quanto surpreendentes: A Bela Impertinente (Jacques Rivette), A Dupla Vida de Véronique (Krzysztof Kieslowski), A Febre da Selva (Spike Lee), Malina (Werner Schroeter), Van Gogh (Maurice Pialat)… Apesar disso, o filme que dominou todas as manchetes foi apresentado extra-competição: Na Cama com Madonna — a sua estreia ocorreu no dia 10 de maio [faz hoje trinta anos].
Rezam as crónicas que a palavra “escândalo” surgiu muitas vezes associada ao filme. E por razões que remetem para a digressão de Madonna (“Blond Ambition Tour”, entre abril e agosto de 1990), precisamente o assunto central do filme. De facto, alguns elementos de encenação das canções, em especial as alusões sexuais durante a interpretação de Like a Virgin, suscitaram reparos de autoridades que, nas respectivas cidades, chegaram a tentar suprimir o respectivo quadro do alinhamento do espectáculo.
Três décadas depois, tais atribulações adquiriram os contornos de um banal “fait divers”. O que resta é um filme que, muito para lá da mera reportagem de uma digressão, se impôs como um verdadeiro clássico na história do género documental — em particular na transformação das relações entre câmaras, performances musicais e vida de bastidores.
Em boa verdade, o projecto nasceu sob o signo da dúvida. Desde logo, no plano comercial: o discreto impacto do documentário dos U2, Rattle and Hum, lançado três anos antes, parecia indicar que o chamado “filme-concerto” tinha deixado de ser um género apelativo (neste caso, apesar de o álbum Rattle and Hum ter conseguido vendas espectaculares, liderando durante seis semanas a tabela da revista Billboard).
Além do mais, o filme só inicialmente foi concebido como um simples registo da digressão. David Fincher, que já tinha dirigido vários telediscos de Madonna (incluindo o emblemático Express Yourself, lançado em 1989), chegou a estar envolvido no projecto, mas afastou-se quando surgiu a oportunidade de realizar a sua primeira longa-metragem para cinema (Alien 3). Madonna entregou a realização a Alek Keshishian depois de conhecer o seu trabalho no âmbito dos estudos universitários, em Harvard. Foi o próprio Keshishian que, ao acompanhar a preparação da digressão, acabou por sugerir que os bastidores não fossem reduzidos a detalhes mais ou menos pitorescos, adquirindo o peso de um capítulo específico. Consequência prática: o filme divide-se em sequências a cores, para os números musicais, e momentos a preto e branco, acompanhando um pouco de tudo, desde uma das referidas tentativas para suprimir alguns elementos de encenação (em Toronto), até uma conversa telefónica em que o pai de Madonna lhe pergunta se lhe pode arranjar alguns bilhetes…
Para a história, o filme contém momentos que, pela sua singularidade, ajudaram a consolidar a dimensão de objecto de culto. Por exemplo, a chamada do pai ao palco, em Detroit, para que o público lhe cante o “Parabéns a você”, seguindo-se uma cena em que Madonna visita a campa da mãe, ou ainda o crescente mal estar de Warren Beatty (na altura companheiro de Madonna) com a intromissão das câmaras de Keshishian.


Há no filme um intimismo ambíguo que, afinal, ajuda a explicar os dois títulos: Truth or Dare (tal como passou em Cannes), depois Na Cama com Madonna. O primeiro refere-se ao jogo “Verdade ou Consequência” que, a certa altura, domina uma cena de Madonna com vários elementos da digressão; o segundo decorre de uma situação em que os bailarinos se “amontoam” na cama do quarto de Madonna, numa bizarra performance alheia a qualquer divagação erótica, a não ser enquanto celebração e paródia de todas as diferenças sexuais.
A três décadas de distância, compreendemos que, através das apoteoses do espectáculo, a colaboração de Madonna com Keshishian gerou um objecto confessional que não pode ser dissociado da narrativa “auto-biográfica” que a Material Girl foi elaborando através das suas canções. Assim, a condição de estrela envolve um sofisticado paradoxo: viver no coração do espectáculo é também saber gerir as suas imagens privadas.

sexta-feira, junho 11, 2021

Greenpeace na Cornualha

O movimento Greenpeace lançou um espantoso video para acompanhar a reunião do G7 na Cornualha. É o resultado de 300 drones, desenhando vários animais em movimento, num verdadeiro bailado de celebração da riqueza natural — a mensagem é, de novo, Act Now.

quinta-feira, junho 10, 2021

Fernando Santos está a ganhar
4525,62 euros por mês !!!

(Portugal abandona o Euro)

[ Museu Bordalo Pinheiro ]

* E o escândalo rebentou! E ainda bem.

* Afinal, não é apenas Pedro Adão e Silva que, como comissário para as comemorações dos 50 anos do 25 de abril, vai receber aquilo que vai receber.

* Veio a saber-se que Fernando Santos, seleccionador nacional de futebol, também está a ganhar por mês a mesma quantia obscena que Pedro Adão e Silva passa a receber. Ou seja: 4.525,62 euros (3745,26 + 780,36 em despesas de representação).

* O escândalo é ainda maior porque tal verba foi divulgada há vários anos, sem que nenhum governo ou qualquer entidade política tenha posto fim a tal desmando.

* Francisco Rodrigues dos Santos e Rui Rio, há várias décadas empenhados na denúncia dos dinheiros públicos investidos no futebol, exigiram de imediato a retirada da selecção portuguesa do Euro. A proposta foi bem acolhida pelo Presidente da República, pela Federação Portuguesa de Futebol, pelo governo e por todos os partidos com representação parlamentar — a selecção deverá regressar ainda hoje de Budapeste.

* Fernando Santos passou compulsivamente à reforma, repondo-se, assim, a justiça social: o ex-seleccionador nacional irá receber a quantia mensal de 275,30 euros. É um valor exorbitante, mas tendo em conta os serviços prestados à Pátria, os tribunais autorizaram o respectivo pagamento.

A IMAGEM: Steven Meisel, 2003

STEVEN MEISEL
Linda Evangelista ("Sporting Linda")
VOGUE Itália (Fev. 2003)

terça-feira, junho 08, 2021

Tom Jones na NPR

Gravado em plena pandemia, em março de 2020, Surrounded by Time, 41º álbum de estúdio de Tom Jones, foi lançado cerca de um ano mais tarde, em abril. Testemunho muito real da energia primitiva do rock e soul, é nele que estão as três canções que, agora, Tom Jones apresentou num dos 'Tiny Desk (Home) Concerts' da NPR: One More Cup of Coffee, There's No Hole In My Head e I'm Getting Old. Como escreve Bob Boilen na apresentação, são momentos admiráveis da arte de envelhecer — a NPR divulgou o concerto no dia 7, data do 81º aniversário do cantor.
 

A IMAGEM: Julião Sarmento, 1998

JULIÃO SARMENTO
Alma (6)
1998

segunda-feira, junho 07, 2021

A arte de ser ou não ser
— memória de Julião Sarmento

"Doppelgänger" (2001)
— jogo de espelhos, sedução do duplo

De Julião Sarmento recebemos a herança de um olhar que oscila entre os limites do corpo e uma hipótese de infinito — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 maio).

Ser espectador. Eis a expressão mais simples que, a meu ver, pode definir o paradoxo de avidez e serenidade inscrito na arte de Julião Sarmento (1948-2021). Lembro-me de, um dia, nos tempos heróicos da Secretaria de Estado na Cultura no prédio do restaurante Galeto, na avenida da República, em Lisboa, ele me falar do filme que tinha visto na véspera através de uma confissão em suspenso: “Não sei se gostei ou não gostei…” Não era blague. Não era bluff. Tão só uma manifestação da disponibilidade de quem, sendo espectador, sabe ser também o paciente cultivador das suas próprias dúvidas. E avançar, duvidando.
A pluralidade da sua obra — desenho, pintura, fotografia, cinema, instalações, etc. — decorre dessa mesma disponibilidade, transfigurada em pensamento que caminha, pé ante pé, sobre as fronteiras instáveis de qualquer intervenção artística. O que nos conduz a outro paradoxo: por um lado, Julião possui a consciência moderna (ou pós-moderna, se assim preferirem) que reconhece, e explora, o facto de todas as formas de intervenção artística viverem em permanente contaminação; por outro lado, isso nunca o impediu, bem pelo contrário, de criar objectos que existem como entidades autónomas, por vezes monumentais, alheios ao charivari “multimedia” que, salvo honrosas excepções, passou a sustentar uma espécie de turismo cultural com muitas imagens e escassa imaginação.
Lembro-me, por exemplo, da descoberta da sua instalação intitulada “Rosebud” (Galeria Diferença, Lisboa, 1980). A memória é tanto mais forte quanto a proposta de Julião se distinguia por uma pudica alegria. Em vez de se deixar diluir na agitação “ideológica” que, então, rasgava a sociedade portuguesa, a sua instalação devolvia-nos uma interrogação primordial: afinal, o que vemos? Desembocando na questão política, por excelência: como vemos aquilo que dizemos ver?
O título da instalação convocava a nossa cinefilia para um importante eco simbólico: antes mesmo de entrarem nas três salas da instalação, os visitantes não podiam deixar de recordar “Rosebud” como a palavra que, antes de morrer, Charles Foster Kane pronuncia na cena de abertura do filme O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Welles. Ora, lá dentro, através de um jogo, ou melhor, uma cenografia de ecrãs e diversos elementos figurativos, descobríamos que não se tratava de desmontar o enigma de “Rosebud”, mas sim de resistir a qualquer racionalização fácil e determinista.


Passaram-se mais de quarenta anos sobre a instalação de Julião (e oitenta sobre o filme de Welles), mas a “mensagem” permanece intacta. A saber: podemos querer encerrar o mundo num qualquer sentido redentor, mas os elementos desse mundo multiplicam sempre as suas significações, reabrindo a possibilidade de discutirmos o que representam, dizem ou transmitem. Sem dúvida por isso, Julião gostava de integrar aquilo que, face a uma forma, concreta ou abstracta, humana ou animal, funciona como duplo, sósia ou, no limite, fantasma.
Julião Sarmento
“Doppelgänger”, justamente, é a designação de uma instalação de video com data de 2001, com duas projecções que definem um ângulo perverso: funcionam como espelho uma da outra, mas não mostram o “mesmo”. Também de 2001, também intitulada “Doppelgänger”, é uma tela (aqui reproduzida) em que uma figura feminina surge “duplicada”, coexistindo com um balde que tanto pode ser um objecto de limpeza como o sinal de uma intimidade que fica por explicitar.
Haverá outra maneira, creio, de dizer isto: Julião devolve-nos o mundo como um sistema de elementos em que cada elemento atrai um “duplo” que o confirma e desmente. Como se tudo passasse, realmente, pela herança que recebemos de Shakespeare: “ser ou não ser.”
Esotérico? O esoterismo está na ilusão segundo a qual cada entidade — uma pessoa, um gesto, um golo de futebol — se pode reduzir a um significado único e definitivo, como um destino a que não é possível escapar. Julião Sarmento não pertence a essa religião mediática. Define-se como artista de uma melancolia que nos faz saber que habitamos os limites no nosso corpo, perscrutando o infinito daquilo que podemos ser ou imaginar. Apesar de tudo, somos humanos.

domingo, junho 06, 2021

sábado, junho 05, 2021

Na cama com Billie Eilish

Há 30 anos, Na Cama com Madonna definia uma lógica de activa des-construção do próprio mito que se celebrava. Dito de outro modo: a Material Girl colocava-se em cena para, através de um intimismo in your face, instalar uma paradoxal e triunfante distância em relação ao espectador. Dir-se-ia que, com o teledisco de Lost Cause, do próximo álbum Happier Than Ever [30 julho], Billie Eilish conduz essa lógica a um ponto de assumida irrisão.
Apesar, ou melhor, através das suas abundantes sugestões eróticas, não se poderia imaginar encenação mais assexuada e, mesmo na sua auto-ironia, declaradamente triste — a canção, claro, volta a ser uma belíssima apoteose dessa tristeza, confirmando que Billie Eilish pertence a um campeonato de excelência que, não por acaso, continua a disputar em serena solidão.
 

sexta-feira, junho 04, 2021

London Grammar na BBC1

Lord It's a Feeling é uma canção emblemática da sonoridade dos London Grammar e, em particular, das harmonias do seu terceiro álbum, Californian Soil. Recentemente, foram interpretá-la na BBC1.
 

quinta-feira, junho 03, 2021

Orson Welles
— assim nasceu o cinema moderno [3/3]

Com O Mundo a Seus Pés, depois do teatro e da rádio, Orson Welles estreou-se na realização de filmes: a sua visão, marcada pelo gosto da experimentação, mudou a arte de contar histórias em cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias, por ocasião do 80º aniversário da respectiva estreia (1 maio).
 
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Para Welles, a realização de O Mundo a Seus Pés foi também, num certo sentido, uma passagem do universo das palavras para a dinâmica das imagens. Se ele conseguiu concretizar um projecto tão ambicioso e “marginal” no interior de um grande estúdio, isso ficou a dever-se, em grande parte, à popularidade angariada com uma emissão de rádio que se tornou um fenómeno nacional: em 1938, a sua adaptação de A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, gerou verdadeiras cenas de pânico em ouvintes que acreditaram que o planeta Terra estava mesmo a ser invadido por marcianos.
A Guerra dos Mundos
foi um dos episódios de “The Mercury Theatre on the Air”, programa para a rádio CBS, derivação do labor que Welles ia desenvolvendo no Mercury Theatre, companhia independente, em Nova Iorque, que fundara em 1937 com o actor e produtor John Houseman. No essencial, o elenco de O Mundo a Seus Pés — Joseph Cotten, Agnes Moorehead, Everett Sloane, etc. — é constituído pelos seus actores, aliás devidamente identificados (“The Mercury Actors”) nos cartazes originais do filme.
Apesar de já há alguns anos não ser reposto nas salas de cinema de todo o mundo, o filme de Welles ressurgiu na actualidade graças a Mank, a realização de David Fincher, produzida e difundida pela Netflix, sobre o trabalho de Herman J. Mankiewicz (1897-1953) enquanto argumentista de O Mundo a Seus Pés. Através de um admirável golpe dramático, nele encontramos Mankiewicz (Gary Oldman) frente a frente com Hearst (Charles Dance), além da sua amante, a actriz Marion Davies (Amanda Seyfried) e o próprio Welles (Tom Burke).
O filme de Fincher relança a energia criativa, e também o gosto de experimentação, herdados da obra de Welles. E não deixa de envolver algum simbolismo o facto de Mank ter sido distinguido com um Oscar para a sua fotografia, da autoria de Erik Messerschmidt (o filme ganhou também na categoria de cenografia). As prodigiosas imagens a preto e branco assinadas por Messerschmidt constituem uma homenagem muito directa ao visual de O Mundo a Seus Pés, da responsabilidade de Gregg Toland (1904-1948). Na altura já “oscarizado” pelo seu trabalho na versão de 1939 de O Monte dos Vendavais, Toland viria a revelar-se decisivo na realização de Welles.
“É impossível dar conta de tudo o que devo a Gregg”, diz Welles no livro com Bogdanovich. Além de, na altura, ser “o operador nº 1 do mundo”, foi ele próprio que manifestou o desejo de “trabalhar com alguém que nunca tivesse feito um filme.” Welles recorda-o com tanto mais carinho quanto reconhece que, nos primeiros dias de rodagem, se assumiu como criador da iluminação das cenas… Demonstrando infinita paciência e disponibilidade, Toland disse-lhe, mais tarde, que trabalhar “com alguém que não sabe nada” (de fotografia) é uma boa maneira de “aprender alguma coisa”.
Toland soube potenciar a ousadia de experimentação de Welles, nomeadamente na composição das imagens e na exploração de uma grande profundidade de campo (com os objectos próximos e distantes igualmente focados) — e no modo como tudo isso abria fascinantes possibilidades à arte de contar histórias. A oito décadas de distância, a herança de tal experimentação é cristalina: há um “antes” e um “depois” de O Mundo a Seus Pés, como se Welles tivesse sido o derradeiro dos clássicos e o primeiro dos modernos.

quarta-feira, junho 02, 2021

Charlie Watts, 80 anos

No interior dos Rolling Stones, Charlie Watts é uma espécie de seguro contra todos os riscos. Que é como quem diz: um baterista paradoxalmente discreto e omnipresente, definindo a disciplina e balizando os riscos de todo um colectivo. Por vezes, nos intervalos da vida artística dos Stones, o seu trabalho tem-se "desviado" para paisagens de cor jazzística, afinal ilustrando as singularidades que tão exemplarmente servem a dinâmica da sua banda de raiz.
Charles Roberts Watts, de seu nome completo, nasceu em Bloomsbury, Londres, no dia 2 de junho de 1941 — o mais velho dos jovens Stones faz hoje 80 anos.

>>> Teledisco de I've Got A Crush On You (voz: Bernard Fowler)‬, tema do álbum de Charlie Watts Long Ago and Far Away (1996).
 


>>> Video de parabéns publicado pelos Rolling Stones.


>>> Charlie Watts no Drummerworld.