quinta-feira, junho 17, 2021

Redescobrindo "O Mensageiro"

O Mensageiro: Dominic Guard e Julie Christe

Através da reposição de O Mensageiro (1971), de Joseph Losey, reencontramos o fulgor de um cinema em que todas as palavras contam — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 maio).

O reaparecimento nas salas de cinema de O Mensageiro, de Joseph Losey, em cópia restaurada, relança o nosso olhar num tempo em que o cinema vivia irredutíveis convulsões. O filme venceu o Festival de Cannes de 1971 e bastará lembrar alguns títulos da respectiva secção competitiva para reconhecermos a riqueza do momento: Morte em Veneza (adaptação de Thomas Mann por Luchino Visconti), Taking Off/Os Amores de uma Adolescente (estreia de Milos Forman na produção americana), Pânico em Needle Park (com Al Pacino, sob a direcção de Jerry Schatzberg, retratando cenários da toxicodependência), etc.
A direcção fotográfica de Gerry Fisher, em O Mensageiro, contém singularidades cujo fascínio o tempo reforçou. Faltavam décadas para a generalização do digital: a utilização da película de 35mm envolvia desafios, desde logo nos espaços interiores, que implicavam a utilização de variadas fontes artificiais de iluminação. Esse controlado artifício é tanto mais sugestivo quanto o filme integra um importante contraponto visual: uma parte significativa da acção decorre em exteriores (Norfolk, leste de Inglaterra), valorizando os elementos paisagísticos através de um tratamento de luz e cor que nos remete para a herança de pintores ingleses do século XIX como John Constable ou Peter De Wint.
A história do jovem Leo (Dominic Guard), adaptada do romance homónimo de L. P. Hartley, começa mesmo num momento simbólico de viragem, 1900, ano do seu 13º aniversário. Dir-se-ia que as suas memórias implicam uma despedida dos valores de uma época que a passagem do tempo reconfigurou em nostalgia, silêncio e amargura. Convidado de um colega de escola, Leo vai descobrir o esplendor da mansão da família Maudsley, deparando com um mundo cuja riqueza desconhecia, organizado num sistema em que os rituais do luxo são tão importantes quanto as aparências de harmonia e felicidade.
A sua condição de “mensageiro”, entregando as cartas de amor trocadas por Marian (Julie Christie) e Ted (Alan Bates), vai trazer-lhe uma dupla lição. Lição social: as diferenças de classe dos amantes definem o ABC de um escândalo. E inesperada lição existencial: que acontece, afinal, entre Marian e Ted, a ponto de os tornar, não apenas moralmente escandalosos, mas também romanticamente sedutores?
Leo descobre, assim, que o conhecimento da sexualidade, ainda que pressentida num labirinto de olhares, insinuações e subentendidos, esbarra na própria dificuldade de transformar o seu pressentimento em palavras precisas. A certa altura, tenta mesmo que Ted o esclareça, recebendo apenas como resposta uma palavra possível para os enigmas do que acontece entre os amantes: “spooning” (nas legendas portuguesas: “marmelada”). Ted, aliás, reconhece que a palavra é “estúpida”, mas devolve o enigma ao próprio Leo, dramatizando o seu saber feito de coisas por dizer: “Parece que sabes alguma coisa sobre o assunto.”
Harold Pinter
Na verdade, sabe e não sabe, já que o papel que acaba por desempenhar na relação de Marian e Ted não é alheio ao seu fascínio por Marian. Aí, as palavras não lhe faltam: “Acho que ela é estupenda”, diz ele a Trimingham (Edward Fox), personagem “errada” na teia de equívocos em que se move, já que Trimingham é o noivo oficial de Marian… com quem ela não se quer casar. E acrescenta: “Faria tudo por ela.”
Tudo isto é trabalhado não exactamente através do cliché da descoberta “juvenil” da sexualidade, mas sim como algo que persiste através de desejos e emoções que se aquietaram num magma metodicamente solidificado por sucessivas camadas do tempo. A adaptação do romance de Hartley foi feita por Harold Pinter e, para lá dos méritos da realização de Losey, não será abusivo reconhecer que a vibração das palavras ditas em O Mensageiro não é estranha à sua filosofia das imagens: “Quando olhamos um espelho pensamos que a imagem que nos confronta é exacta. Mas basta movermo-nos um milímetro e a imagem muda. De facto, estamos a ver uma interminável variedade de reflexos. Mas por vezes o escritor tem que quebrar o espelho — porque é do outro lado desse espelho que a verdade nos contempla.” São palavras ditas por Pinter, várias décadas mais tarde, a 7 de dezembro de 2005, ao receber o Prémio Nobel da Literatura.